Está frio, muito frio. Essa é a primeira coisa que sinto ao despertar. Minha consciência está voltando lentamente. Uma tontura acompanha o latejar de minha cabeça que parece ecoar as batidas do meu coração. Não sou capaz de distinguir qualquer coisa. Abro meus olhos, mas uma luz intensa brilha rente ao meu rosto me impedindo de mantê-los abertos.
Tento mover meus membros, não sou capaz. O tato que eu recobro aos poucos indica que meu corpo está sob uma superfície plana e dura, preso. Penso em gritar. Movo a língua dentro da boca. Sinto gosto de sangue. Respiro um pouco mais fundo. Tusso como se houvesse algum tipo de líquido em meus pulmões. A dor e o desespero ameaçavam roubar o pouco de lucidez que reuni. Meu corpo se contorce em um espasmo. O gosto de sangue se intensifica trazendo agora também um amargor. Passam alguns minutos, finalmente consigo parar de tossir. Espero a dor diminuir. Respiro lentamente. Procuro reunir ar o suficiente para proferir uma palavra. Emito apenas um ruído mudo e pigarreado.
O desespero está chegando. É inevitável que ele tome conta de mim, porém, antes que ele me invada, busco em minha mente a memória mais recente possível. Nela, vejo meu reflexo no balcão de um bar, estou bebendo vinho. Existe uma garota ao meu lado, não lembro de seu rosto ou nome, mas lembro que ela estava rindo de algo que eu disse quando o mundo começou a girar e meu corpo ficou pesado. Sim, foi naquele momento, me lembro da sensação de ser carregado. Será que bebi demais? Tive um coma alcóolico e vim parar em um hospital?
Não, é outra coisa. Esse lugar não parece um hospital comum. Talvez tenha sido pego por ladrões de órgãos. Sim, eles me manteriam vivo até que encontrassem um comprador compatível ou um colecionador. Me afundo nessa hipótese e em seus desdobramentos até sentir que meu corpo está sendo movimentado. A temperatura se eleva um pouco, meu nariz é invadido pelo cheiro de éter e álcool. A luz é afastada do meu rosto. Posso abrir meus olhos, mas só vejo manchas coloridas que se movem freneticamente. Quando me torno capaz de distinguir formas noto que não estou sozinho. Aquilo se inclina sobre mim, em silêncio. Demoro para focalizar, mas aos poucos o borrão toma forma, uma forma linda. É ela: A moça do bar.
Seu rosto é perfeito. A maquiagem, ainda impecável. O cabelo porém, agora está preso em um coque. Com um sorriso malicioso no rosto ela me mostra o punhal. Encosta a lâmina em meu rosto e deslize até chegar no meu peito, onde crava a ponta atravessando meu coração sem que eu tenha a menor chance de reagir. A dor é excruciante, a superfície onde estou deitado é inclinada para frente até parar no ângulo de 70°. Existe um espelho à minha frente, talvez dois metros de distância. Vejo o que ele reflete, mas não me reconheço no amontoado disforme de cicatrizes e hematomas atados por uma grossa tira de couro no que deveria ser meu tronco, ao qual meus membros, superiores e inferiores, não estão conectados. Há sangue em tudo que sobrou do meu corpo, exceto no peito, onde pende o objeto metálico com cabo de madeira entalhada.
Compreendo que ele fez o buraco, porém também tapou, retendo o sangramento. Por quanto tempo isso funcionaria? O espelho começa a ficar mais distante, pelo reflexo vejo que a mulher está atrás de mim, movendo a maca, vejo ela se aproximando de mim pela lateral, aproximar sua boca de meu ouvido e começar a dizer nomes. Nomes femininos. Cada um deles ativa uma memória, os rostos delas como estava na última vez que lhe vi. O pânico, o terror em cada um daqueles olhares, muito parecidos com minha própria expressão nesse momento.
Fui o último homem de cada uma delas, dezanove no total. Então, entendendo o que faço ali. Agora estamos quitados, eu e as jovens que torturei e matei. A prisão ou a simples morte seriam muito pouco para mim. Ela me deixará frente ao espelho, observando o efeito da anestesia passar e quando acreditar que senti o suficiente da dor que causei, removerá o punhal de meu peito, para que eu tenha o fim merecido. Muito poético. Seria uma pena morrer antes disso devido o sangramento dos outros ferimentos, sem dúvidas um fim como esse seria minha redenção.