Escritório de Eduardo Salles, 20:15
João Elias entrou no escritório de Salles com o coração martelando contra as costelas. O dispositivo de gravação pesava em seu bolso como uma bomba prestes a explodir. A arma de fogo, um peso desconfortável contra suas costelas.
O escritório estava iluminado apenas parcialmente. Salles sentado atrás de sua mesa imponente. Dr. Campos em uma poltrona à direita. Delegado Pimentel de pé junto à janela, olhando para a cidade lá embaixo.
Nenhum sinal do Juiz Menezes ou do Promotor Dantas. Estranho.
— João, — cumprimentou Salles, sem se levantar. — Pontual como sempre.
— Você disse que era urgente… — respondeu João, mantendo a voz firme por puro esforço de vontade.
— E é urgente, sim — confirmou Salles. — Temos uma situação incômoda.
João permaneceu em silêncio, esperando. O dispositivo de gravação estava ativo, capturando cada palavra.
— Nossos sistemas foram comprometidos, — continuou Salles, estudando-o cuidadosamente. — Informações sensíveis foram acessadas. Protocolos de segurança foram violados.
— Eu sei, — respondeu João, decidindo pela honestidade parcial. — Meus servidores foram invadidos há três dias. Desliguei tudo. Implementei protocolos de contenção.
— Sim, você mencionou isso, — disse Salles. — O que não mencionou foi que a invasão continuou. Que dados críticos foram extraídos. Que o Projeto Cassandra foi exposto.
João sentiu o sangue gelar.
— Como...
— Como sabemos? — Salles sorriu. Um sorriso frio, calculado. — Temos nossos próprios sistemas de monitoramento, João. Sistemas que você não conhece. Camadas de segurança além do seu acesso.
Dr. Campos inclinou-se para frente.
— A questão, João, não é como sabemos. É por que você não nos contou toda a verdade.
— Eu... — João hesitou, sua mente trabalhando freneticamente. — Estava tentando conter a situação. Resolver internamente antes de causar alarme desnecessário.
— Nobre atitude, — comentou Pimentel, ainda olhando pela janela. — Mas implausível.
— O que quer dizer com isso? — perguntou João, sentindo gotas de suor formando-se em sua testa.
— Ele quer dizer, — respondeu Salles, — que sua lealdade está em questão, João. Que suas ações recentes sugerem um compromisso dividido.
— Isso é absurdo, — protestou João, com mais veemência do que sentia. — Construí o Projeto Cassandra do zero. Dediquei anos da minha vida a ele. Por que eu comprometeria tudo isso?
— Medo, talvez? — sugeriu Dr. Campos. — Culpa tardia? Ou simplesmente auto-preservação quando percebeu que o barco estava afundando?
João sentiu a armadilha se fechando ao seu redor. Cada palavra o incriminava mais. Cada negação soava falsa até para seus próprios ouvidos.
— Não importa, realmente, — disse Salles, recostando-se. — Seus motivos são irrelevantes neste ponto. O que importa é a contenção de danos.
— Contenção de danos, claro… — repetiu João mecanicamente.
— Sim, sim… — confirmou Salles. — Felizmente, temos protocolos para situações como esta.
Pimentel finalmente virou-se da janela. Seu olhar encontrou o de João. Frio. Calculista. O olhar de um predador avaliando uma presa.
— O Protocolo Phoenix, — disse Pimentel. — Reinicialização completa. Eliminação de vulnerabilidades. Reconstrução a partir do zero.
João conhecia o Protocolo Phoenix. Havia ajudado a projetá-lo, teoricamente. Uma resposta a um comprometimento catastrófico do sistema. Destruição completa de todas as evidências. Eliminação de todos os rastros digitais. E...
A implementação do protocolo o atingiu como um soco físico.
— Eliminação de vulnerabilidades, repetiu lentamente. — Vocês querem dizer... eu.
— Entre outros, — confirmou Salles, sem emoção. — Você. A jornalista. A perita digital. O detetive. Algumas das vítimas mais vocais. Todos os pontos de falha potenciais.
— Isso é loucura! — disse João, recuando instintivamente. — Estamos falando de pessoas reais. Vidas reais.
Dr. Campos riu. Um som genuinamente divertido que enviou arrepios pela espinha de João.
— Agora você se preocupa com 'pessoas reais'? Depois de anos destruindo vidas sistematicamente? Depois de aperfeiçoar algoritmos especificamente projetados para causar máximo dano psicológico? Essa súbita consciência moral é bastante fascinante, do ponto de vista clínico.
João sentiu o pânico crescendo. Não apenas por si mesmo, mas pelos outros. Bianca. Carla. Amaral. Clara. Pessoas que mal conhecia, mas que agora estavam em perigo mortal por causa de sistemas que ele havia criado.
— Não vou participar disso, não mais.
— Não estamos pedindo sua participação, “Architect” — respondeu Salles calmamente. — Apenas sua compreensão. Como cortesia profissional.
Pimentel moveu-se então. Um movimento fluido, quase casual. A mão deslizando para dentro do paletó. Emergindo com uma arma equipada com silenciador.
— Você sempre foi brilhante, João, — disse Salles, quase com pesar. — Um gênio genuíno. É uma pena que tenha desenvolvido estas vulnerabilidades emocionais.
João reagiu instintivamente. Não com a arma – nunca conseguiria sacá-la a tempo. Mas com o telefone. Um movimento rápido. Uma mensagem de texto pré-digitada. Um aviso desesperado.
“Armadilha. Eles sabem. Fuja”.
Enviou no exato momento em que Pimentel apontou a arma.
— Isso não vai ajudar seus amigos, — disse Salles, observando o movimento. — O Protocolo Phoenix já está em andamento. Equipes estão a caminho de todos os alvos identificados neste momento.
João olhou para os três homens à sua frente. Salles, o arquiteto intelectual. Campos, o manipulador psicológico. Pimentel, o executor.
Três faces do mesmo sistema doentio. Três manifestações do mesmo poder corrupto.
— Vocês não vão vencer, — disse, surpreendendo a si mesmo com a calma em sua voz. — O que construímos... o que eu construí... já está além do seu controle. A verdade vai emergir.
— Talvez, quem sabe? concedeu Salles. — Eventualmente. Mas você não estará aqui para ver.
João fechou os olhos. Pensou em todas as vidas que havia ajudado a destruir. Em todas as mulheres que haviam sofrido por causa de seus algoritmos, seu código, sua indiferença moral disfarçada de objetividade científica.
— Estou pronto, disse finalmente.
O silenciador fez seu trabalho. Apenas um suave — pfft ecoou no escritório elegante.
O corpo de João Elias, o gênio tecnológico, arquiteto de sofrimento, colaborador relutante, caiu no tapete persa importado de Eduardo Salles.
Seu último pensamento não foi de medo, ou arrependimento, ou mesmo de auto-preservação. Foi de esperança. Esperança de que sua mensagem final tivesse chegado a tempo. Esperança de que seu dispositivo de gravação tivesse capturado tudo. Esperança de que sua morte pudesse, de alguma forma, começar a compensar o mal que havia feito em vida.
Hotel de beira de estrada, 20:32
— Precisamos sair. Agora. — A voz de Carla transcendia à urgência, mas controlada, profissional. — Protocolo de dispersão imediata.
Não houve discussão. Não havia tempo para debate. Cada segundo era precioso.
Bianca já estava em movimento, juntando apenas o essencial. O dispositivo de transferência. O pendrive de Cristina. Seu próprio laptop.
Amaral verificou sua arma rapidamente.
— Quanto tempo temos?
— Minutos, no máximo, — respondeu Carla, desconectando equipamentos. — Se João conseguiu nos avisar, já estão a caminho.
Clara observava com olhos arregalados, o medo evidente em seu rosto.
— Quem está vindo? O que está acontecendo?
— Protocolo Phoenix, — explicou Carla brevemente. — Eliminação completa de evidências e testemunhas. Incluindo nós.
— Meu Deus, — sussurrou Clara.
— Sem tempo para pânico, — disse Bianca, entregando-lhe uma bolsa. — Pegue isso. Siga Amaral. Não olhe para trás.
— Para onde vamos, meu Deus? — perguntou Clara, agarrando a bolsa como um salva-vidas.
— Separados, um pra cada lado — respondeu Carla. — Rotas diferentes. Destinos diferentes. Comunicação apenas através dos canais de emergência.
— E os arquivos? — perguntou Amaral.
— Já enviados para servidores seguros, — respondeu Carla. — Múltiplas cópias. Múltiplas localizações. Se algo acontecer conosco, tudo vai a público automaticamente.
O som distante de pneus derrapando no estacionamento do hotel acelerou seus movimentos.
— Tarde demais para a saída principal, — disse Amaral, movendo-se para a janela. — Vamos pelo fundos.
Não era um plano elaborado. Não havia tempo para elaboração. Era puro instinto de sobrevivência agora.
Amaral foi primeiro, ajudando Clara a descer pela janela dos fundos. Bianca seguiu. Carla por último, após configurar um pequeno dispositivo junto à porta.
— O que é isso? — perguntou Bianca.
— Distração, uns vinte segundos após a porta ser aberta. Nada letal, mas vamos ganhar tempo.
Moveram-se rapidamente através do estacionamento dos fundos. Separaram-se em pares. Amaral com Clara, Bianca com Carla.
— Ponto de encontro Delta em 24 horas, — disse Carla. — Se um de nós não aparecer...
— Protocolo Cassandra, — completou Bianca. — Liberação completa de todos os arquivos.
Abraçaram-se brevemente. Um momento de conexão humana antes de mergulharem novamente na escuridão.
— Tenha cuidado, — sussurrou Bianca.
— Você também, — respondeu Carla. — Lembre-se: eles são poderosos, mas não são invencíveis.
E então estavam correndo em direções opostas. Fugindo das luzes que se aproximavam. Das vozes autoritárias. Do poder institucional corrompido que agora os caçava ativamente.
Bianca correu noite adentro, consciente de que cada passo a afastava da segurança relativa do anonimato. Sabia que agora era oficialmente uma fugitiva. De que as mesmas pessoas que haviam destruído sua vida uma vez agora ativamente buscavam terminá-la permanentemente.
Mas também corria em direção a algo. À verdade. À justiça. À possibilidade, por mais tênue que fosse, de um mundo onde algoritmos não pudessem ser usados como armas contra os mais fracos.
E isso, decidiu enquanto desaparecia nas sombras da cidade, valia qualquer risco.
Delegacia Central, 21:15
O Delegado Pimentel entrou na delegacia como uma tempestade. Oficiais experientes desviaram-se de seu caminho instintivamente, reconhecendo os sinais de fúria contida.
— Relatório, agora! — Exigiu ao Sargento Mendes, que o esperava nervosamente.
— Alvos não encontrados, senhor, — respondeu Mendes, evitando contato visual. — O hotel estava vazio quando a equipe chegou. Sinais de saída apressada. E um... dispositivo.
— Que tipo de dispositivo?
— Não letal, senhor. Algum tipo de bomba de fumaça com componente sonoro. Desorientou a equipe por alguns minutos. Tempo suficiente para...
— Para escaparem, — completou Pimentel, a voz perigosamente calma. — Tempo suficiente para quatro civis amadores escaparem de uma equipe tática profissional.
Mendes engoliu em seco.
— Sim, senhor.
— E as outras equipes?
— Mesma situação, senhor. O apartamento da Dra. Vasconcellos estava vazio. A residência do Detetive Amaral também. A professora Reis não foi encontrada em seu endereço registrado.
Pimentel respirou fundo, controlando a raiva.
— Eles foram avisados. Estavam preparados.
— Parece que sim, senhor.
— E João Elias?
Mendes hesitou.
— Neutralizado, conforme instruções, senhor. Mas...
— Mas o que, homem?
— A equipe de limpeza encontrou um dispositivo de gravação em seu corpo. Sofisticado e ativo.
Pimentel sentiu uma onda de gelo percorrer sua espinha.
— A reunião inteira?
— Aparentemente, senhor.
— E os dados?
— Já transmitidos, senhor. Automaticamente. Para servidores desconhecidos.
Pimentel fechou os olhos brevemente. A situação estava se deteriorando rapidamente. O que começara como uma operação de contenção limpa estava se transformando em um pesadelo de segurança.
— Convoque o juiz Menezes e o promotor Dantas. Reunião de emergência em uma hora. E entre em contato com Salles. Diga-lhe que o Protocolo Phoenix falhou. Precisamos passar para contingências.
— Sim, senhor, — respondeu Mendes, afastando-se rapidamente.
Pimentel entrou em seu escritório, fechando a porta com mais força que o necessário. Sentou-se pesadamente em sua cadeira, a mente trabalhando freneticamente.
O Projeto Cassandra estava comprometido. Anos de trabalho meticuloso. Milhões investidos. Uma rede cuidadosamente construída de influência e controle.
Tudo ameaçado por uma jornalista desacreditada. Uma perita digital persistente. Um detetive com excesso de consciência. E um programador que desenvolvera escrúpulos tarde demais.
Seu telefone tocou. Era Salles.
— Eles escaparam, — disse Pimentel sem preâmbulos.
— Eu sei, porra! Tenho minhas próprias fontes.
— João Elias tinha um dispositivo de gravação. A reunião inteira foi capturada.
Um silêncio pesado do outro lado da linha. Então:
— Isso complica as coisas.
— Complica? — repetiu Pimentel, incrédulo. — É um desastre completo. Temos quatro pessoas com evidências suficientes para destruir todos nós, agora com ainda mais motivo para usá-la.
— Mantenha a compostura, Augusto, — disse Salles, a voz recuperando sua calma habitual. — Ainda temos recursos. Ainda temos controle institucional. Ainda temos o poder.
— Por enquanto, né? respondeu Pimentel. — Mas se esses arquivos forem a público, estamos todos fodidos. E mal pagos.
— Então vamos garantir que ninguém acredite neles, — completou Salles. — É o que sempre fizemos, não é? Controlar a narrativa. Desacreditar os mensageiros. Manipular a percepção pública.
— Isso funcionou quando estávamos atacando mulheres isoladas, mas agora estamos enfrentando um caso sistemático. Evidência corroborativa. Múltiplas fontes.
— Então mudamos de tática, simplesmente. Se não podemos desacreditar a mensagem, eliminamos os mensageiros. Para sempre, me entende?
Pimentel sentiu um arrepio. Sempre soubera que Salles era capaz de crueldade calculada. Tinha testemunhado essa frieza em operações anteriores. Mas havia algo na calma com que ele falava sobre assassinatos múltiplos que perturbava até mesmo um policial endurecido como ele.
— Estamos falando de um detetive da polícia, — lembrou Pimentel. — Uma perita criminal. Uma professora universitária. Uma jornalista conhecida. Não são alvos anônimos que podem simplesmente desaparecer.
— Todo mundo pode desaparecer, Augusto, é apenas uma questão de metodologia adequada e precisão na ação.
— E se o “dead man's switch” deles for acionado? Se todos os arquivos forem liberados automaticamente?
— Então enfrentaremos essa tempestade também, tenho pensado em tudo isso, desde que começamos a operação. Tenho contingências para todas as contingências. Sempre tive, meu caro.
Pimentel não estava convencido, mas sabia bem que, era melhor não questionar Salles diretamente.
— Qual é o próximo passo, então?
— Continue a busca, sem trégua. Use todos os recursos. Ative todos os contatos. Encontre-os antes que possam organizar qualquer tipo de contra-ataque.
— E quando os encontrarmos?
— Sem prisões, sem registros, sem testemunhas e se não for pedir demais, sem falhas desta vez.
A linha ficou muda. Pimentel encarou o telefone por um longo momento, sentindo o peso da decisão que acabara de aceitar.
Tinha cruzado muitas linhas ao longo dos anos. Tinha comprometido seu juramento, sua integridade, seu dever para com o público. Mas sempre havia mantido uma fachada de legalidade. Uma ilusão de que ainda operava dentro dos limites do sistema de justiça, por mais distorcidos que fossem.
Agora, essa última pretensão estava sendo abandonada. Não era mais um policial corrupto. Era um assassino a serviço de um poder mais sombrio.
E o mais perturbador? Não via alternativa. Tinha ido longe demais para voltar atrás.
Estrada para Campinas, 22:40
O ônibus noturno balançava suavemente, seus poucos passageiros dispersos em assentos distantes uns dos outros. Perfeito para quem buscava anonimato.
Bianca olhava pela janela, observando as luzes da cidade diminuírem gradualmente enquanto avançavam para o interior. Ao seu lado, Carla trabalhava silenciosamente em um laptop, conectada através de uma rede móvel altamente criptografada.
— Alguma notícia de Amaral e Clara?
— Nada direto, Bianca, mas os protocolos de segurança estão ativos. Sinais automáticos a cada hora. Eles estão vivos e em movimento.
— Para onde será que estão indo?
— Melhor não sabermos os detalhes específicos, sistema de compartimentalização, lembra?. Se um de nós for capturado, não podemos comprometer os outros.
— Não pode revelar o que não sabe, né mesmo? Entendo o conceito.
Voltaram ao silêncio. Não era desconfortável. Era o silêncio de duas pessoas que haviam ultrapassado a necessidade de conversa fiada. Que estavam unidas por algo mais profundo que palavras.
— João está morto, não está, Clara? Eu sei que está.
Carla parou de digitar. Olhou para Bianca com olhos cansados.
— Quase certamente.
— Ele nos avisou. Pelo menos no final, ele escolheu o lado certo.
— Depois de anos escolhendo o errado, — lembrou Carla. — Depois de destruir dezenas de vidas. Depois de criar sistemas projetados especificamente para causar sofrimento máximo.
— Ainda assim, amiga — insistiu Bianca. — No final, ele fez a escolha certa.
Carla considerou isso por um momento.
— Talvez. Ou talvez apenas tenha calculado que era sua melhor chance de sobrevivência.
— Você não acredita em redenção?
— Acredito em evidência, Bianca. Em dados. Em padrões observáveis. — Fez uma pausa. — Mas também acredito que pessoas podem mudar. Que sistemas podem ser reformados. Que algoritmos podem ser reescritos.
Bianca sorriu levemente.
— Para alguém tão lógica, você tem um lado surpreendentemente filosófico.
— Lógica e filosofia não são opostos, são complementares. Como código e propósito. Um sem o outro ém vejamos... incompleto.
O ônibus parou em um posto de gasolina. Alguns passageiros desceram para esticar as pernas. Outros embarcaram.
— Precisamos verificar se estamos sendo seguidas, cochichou Carla.
Bianca entendeu a dica,
— Vou descer. Observar quem embarca. Você monitora de dentro.
— Tenha cuidado.
— Sempre.
Bianca desceu do ônibus, fingindo ir ao banheiro. Na realidade, posicionou-se estrategicamente para observar todos os novos passageiros. Analisando rostos. Linguagem corporal. Padrões de movimento.
Nada suspeito. Apenas viajantes comuns. Trabalhadores retornando para casa. Estudantes. Um casal de idosos.
Estava prestes a retornar ao ônibus quando notou um carro estacionando discretamente nos fundos do posto. Sedan preto. Vidros escurecidos. Dois homens saindo, escaneando o ambiente com a precisão treinada de profissionais.
Policiais. Ou algo pior.
Bianca não correu. Correr chamaria atenção. Em vez disso, moveu-se casualmente para dentro da loja de conveniência. Pegou um refrigerante. Pagou lentamente. Observou pelo reflexo da vitrine.
Os homens estavam se aproximando do ônibus. Metodicamente. Verificando cada passageiro que embarcava.
Precisava avisar Carla. Mas não podia usar o telefone. Muito arriscado. Não podia retornar ao ônibus, poderia ser capturada.
Tomou uma decisão rápida. Moveu-se para os fundos da loja. Encontrou a saída de emergência. Deslizou para fora, para a escuridão.
Contornou o posto de gasolina, mantendo-se nas sombras. Aproximou-se do ônibus pelo lado oposto aos homens. Viu Carla ainda sentada, concentrada no laptop.
Como avisá-la?
Seu olhar caiu sobre uma pedra pequena. Pegou-a. Mirou cuidadosamente. Arremessou contra a janela próxima a Carla.
O som foi mínimo, mas suficiente. Carla olhou para fora, confusa. Viu Bianca nas sombras. Viu seu gesto repleto de urgência; notou que era um aviso.
Compreensão imediata. Carla fechou o laptop, deslizou-o para dentro da bolsa. Moveu-se casualmente em direção à saída traseira do ônibus.
Os homens estavam agora embarcando pela frente, mostrando algum tipo de identificação ao motorista.
Bianca recuou mais para as sombras, coração acelerado. Viu Carla descer discretamente pela porta traseira. Viu-a mover-se rapidamente, mas sem correr, em direção a um pequeno bosque adjacente ao posto.
Encontraram-se entre as árvores, ambas ofegantes mais de adrenalina que de esforço físico.
— Policiais, o que acha, Bianca?
— Ou agentes privados, mas são profissionais, definitivamente.
— Como nos encontraram tão rápido?
— Câmeras de reconhecimento facial, provavelmente. Devem estar monitorando todas as saídas da cidade.
Carla concordou, já trabalhando no próximo problema.
— Precisamos de transporte alternativo.
— E disfarces melhores, pois assim somos presas fáceis..
Observaram o posto de gasolina à distância. Os homens desceram do ônibus após alguns minutos, claramente frustrados. Falaram brevemente em seus rádios. Retornaram ao carro.
— Vão reportar que perderam nossa trilha, — disse Carla. — Vão expandir a busca.
— Quanto tempo temos?
— Minutos. Poucos minutos.
Bianca escaneou o ambiente, mente trabalhando freneticamente. Viu um caminhão estacionado na área de descanso para motoristas. Um homem de meia-idade checando os pneus.
— Tenho uma ideia, venha e siga minha deixa. E... desculpe antecipadamente.
— Pelo quê?
— Por isso, — respondeu Bianca, rasgando deliberadamente a própria blusa, despenteando o cabelo, criando a aparência de alguém que havia passado por uma experiência traumática.
Carla compreendeu imediatamente.
— Brilhante. Mas arriscado.
— Tudo é arriscado agora, temos que nos manter firmesl Vamos.
Aproximaram-se do caminhoneiro, Bianca à frente, interpretando perfeitamente o papel de mulher em pânico. Lágrimas. Voz trêmula. História sobre um namorado abusivo que as havia deixado na estrada após uma discussão.
O homem era exatamente como esperavam: decente, preocupado, ligeiramente desconfortável com emoções femininas intensas.
— Só precisamos chegar até a próxima cidade, moço. Minha irmã tem amigos lá. Estaremos seguras.
O caminhoneiro hesitou apenas brevemente antes de concordar.
— Posso levá-las até Campinas. É minha parada final.
— Obrigada, meu bom homem. — disse Bianca, com gratidão genuína misturada à performance. — Nunca esqueceremos isso.
Enquanto subiam na cabine do caminhão, viram os homens do sedan preto retornando, agora acompanhados por outros dois. Expandindo a busca, exatamente como Carla previra.
O caminhão saiu do posto lentamente, sem pressa suspeita. Apenas mais um veículo na estrada rompendo a escuridão.
Bianca olhou para Carla no espaço confinado da cabine. Um olhar que comunicava tudo o que não podiam dizer em voz alta na presença do motorista.
Haviam escapado. Por enquanto.
Mas a caçada estava apenas começando.