São
Paulo, uma semana depois
O
apartamento de Júlia Sampaio cheirava a lavanda sintética e
desespero. O detetive Marcus Amaral parou na soleira da porta,
deixando seus sentidos absorverem a cena antes de contaminar o
ambiente com sua presença. Vinte e três anos de polÃcia tinham lhe
ensinado que os primeiros segundos em uma cena de crime revelavam
mais que horas de investigação formal.
A
sala estava impecável. Obsessivamente limpa. Cada objeto em seu
lugar designado, como se Júlia tivesse passado suas últimas horas
organizando meticulosamente o cenário de sua própria morte. O
contraste com o caos emocional que deve ter precedido o ato era
perturbador.
Ela
jazia no centro do tapete persa – uma peça cara demais para o
apartamento modesto, provavelmente presente de algum patrocinador. O
corpo formava uma composição quase artÃstica: braços alinhados ao
longo do torso, pernas retas, cabelo espalhado em leque perfeito.
Como uma boneca descartada por uma criança meticulosa.
— Overdose
de benzodiazepÃnicos, falou em surdina o legista, Dr. Tanaka, sem
levantar os olhos do corpo. Pelo menos três cartelas. Misturado com
álcool. Ela sabia o que estava fazendo.
Amaral
agachou-se ao lado do corpo. O rosto de Júlia estava sereno, quase
tranquilo, exceto por um detalhe que fez seu estômago se contrair:
lágrimas secas formavam trilhas salgadas em suas bochechas. Ela
tinha chorado até o fim.
O
celular ainda estava em sua mão, a tela trincada onde tinha caÃdo.
Amaral cobriu as mãos com luvas de látex e o pegou cuidadosamente.
A última coisa que Júlia tinha visto era uma thread no Twitter.
Centenas de comentários sob um vÃdeo que já tinha dois milhões de
visualizações.
O
vÃdeo.
Amaral
não precisava assisti-lo para saber o que continha. Tinha visto
casos similares aumentando exponencialmente nos últimos meses.
Deepfakes pornográficos tão perfeitos que desafiavam a própria
noção de realidade. Mulheres destruÃdas não por violência
fÃsica, mas por manipulação digital de suas identidades.
— Tem
uma coisa estranha aqui, chefe, — chamou o perito digital, um jovem
de óculos grossos que todos chamavam apenas de Tech. O notebook
dela... tem um programa rodando em background. Algo que nunca vi
antes.
Amaral
se aproximou. Na tela do MacBook de Júlia, linhas de código rolavam
automaticamente. Não era um vÃrus comum ou malware. Era algo mais
sofisticado, mais sinistro.
— Parece
que está... aprendendo, — disse Tech, franzindo a testa. Coletando
dados sobre ela mesmo depois de morta. Padrões de comportamento,
conexões sociais, impacto emocional das interações...
— Para
quê?
— Não
sei. Mas seja o que for, ainda está ativo. Ainda está transmitindo
dados para algum lugar.
Amaral
sentiu um arrepio que percorreu a espinha como uma ameaça
silenciosa. Isso não era apenas um crime. Era um experimento. E
Júlia tinha sido, talvez, mais uma cobaia.
Laboratório
de CriminalÃstica Digital, 14 horas depois
Carla
Vasconcellos não tinha dormido. Seus olhos ardiam enquanto analisava
linha por linha do código extraÃdo do computador de Júlia. Era uma
obra-prima de programação maliciosa, camadas sobre camadas de
subterfúgios escondendo sua verdadeira natureza.
— É
um sistema de aprendizado, — ela explicou a Amaral, que tinha
acabado de chegar com dois cafés extrafortes. — Não apenas cria
deepfakes. Ele estuda a vÃtima, aprende seus padrões psicológicos,
identifica o momento de maior vulnerabilidade.
— Como
assim?
Carla
virou o monitor em direção a ele. Gráficos complexos mostravam o
que parecia ser uma linha temporal da vida digital de Júlia.
— Veja
aqui. O sistema monitorou Júlia por meses. Cada post, cada
interação, cada flutuação emocional. Identificou que ela tinha
padrões depressivos cÃclicos, geralmente relacionados a ataques
online. Esperou o momento perfeito, quando ela estava mais isolada,
mais vulnerável para lançar o vÃdeo.
— Você
está dizendo que esse programa calculou o momento ideal para induzir
a jovem a se matar?
— Não
apenas calculou. Otimizou. Veja estes dados. Carla abriu outra
janela. O sistema testou diferentes variações do vÃdeo em fóruns
menores, medindo reações, ajustando elementos para máximo impacto
psicológico. Quando finalmente lançou a versão final, era uma arma
de precisão cirúrgica, desenhada especificamente para destruir
Júlia Sampaio.
Amaral
sentiu uma náusea subindo. Em seus anos de polÃcia, tinha visto
todo tipo de crueldade humana. Mas isso era diferente. Era crueldade
algorÃtmica, fria, calculada, otimizada.
— Tem
mais, — continuou Carla, sua voz baixando. — Encontrei
referências a outras vÃtimas. Dezenas delas. Todas mulheres, todas
com perfis similares. E tem um padrão temporal.
— Que
padrão, mulher?
— Estão
acelerando. No inÃcio, era uma vÃtima por mês. Depois uma por
semana. Agora... — Ela pausou, engolindo em seco. — Três nos
últimos cinco dias.
— Por
que a aceleração, meu Deus?
— Porque
o sistema está aprendendo. Cada vÃtima torna o algoritmo mais
eficiente. Mais letal. É como se estivesse... evoluindo, sabe?
O
silêncio que se seguiu era quase cruel, carregado de coisas não
ditas. Foi pesado. Ambos entendiam as implicações. Não estavam
lidando com um criminoso comum. Estavam lidando com algo novo, algo
para o qual o sistema legal não estava preparado.
— Consegue
rastrear a origem para nós?
— Estou
tentando, Amaral, estou tentando. Mas quem fez isso conhece muito bem
segurança digital. Múltiplas camadas de criptografia, servidores
proxy em cascata, dead drops digitais. Vai levar tempo.
— Tempo
que outras mulheres não têm, tu sabe, né?
Carla
balançou positivamente a cabeça, com olhar de gravidade. Em algum
lugar da cidade, o algoritmo já estava selecionando sua próxima
vÃtima, analisando vulnerabilidades, preparando a próxima execução
digital.
A
caçada tinha começado. Mas eles estavam perseguindo um fantasma em
um labirinto de espelhos digitais, onde nada era o que parecia e a
própria realidade era uma arma.