Apartamento de Clara Reis, 22:45
Clara acordou sobressaltada, o coração batendo contra as costelas como um animal enjaulado. O mesmo pesadelo, mais uma vez. Ela no centro de um anfiteatro lotado, preparando-se para dar uma palestra sobre distopias tecnológicas nas obras de Orwell. Então, subitamente, as luzes se apagam. Quando voltam, ela está nua. Não metaforicamente – literalmente despida. E nas telas gigantes ao redor, imagens dela. Fazendo coisas que nunca fez. Com pessoas que nunca conheceu. E a plateia, bem... a plateia rindo, apontando, filmando.
Sempre acordava no momento em que tentava gritar e descobria que tinha ficado sem voz.
Sentou-se na cama, respirando com dificuldade. Quatro e dezessete da manhã, como sempre. A mesma hora, todas as noites. Como se seu subconsciente tivesse um alarme interno programado para torturá-la.
O apartamento estava silencioso. Pequeno demais para os livros que acumulara durante anos, mas era o que podia pagar naquele momento. As estantes improvisadas vergavam sob o peso de Dostoiévski, Kafka, Orwell, Atwood. Autores que havia ensinado com paixão. Autores que lia e relia em busca de algum sentido para o absurdo que sua vida havia se tornado.
Pegou o celular, mais por hábito do que por necessidade. Ninguém ligava mais. Ninguém mandava mensagens. Exceto os anônimos. Os perseguidores. Os que tinham visto o vÃdeo e acreditavam ter algum direito sobre ela.
Havia uma notificação. E-mail novo. Remetente desconhecido.
Hesitou antes de abrir. Cada mensagem era uma roleta russa. Poderia ser mais um ataque. Mais uma ameaça. Mais um link para o vÃdeo que havia destruÃdo sua vida.
Mas também poderia ser uma resposta de alguma das centenas de candidaturas de emprego que havia enviado nas últimas semanas. Uma chance de recomeçar. De sobreviver.
Abriu.
Não era nem uma coisa nem outra. Era algo diferente. Algo inesperado.
“Clara, você não me conhece, mas sei o que está passando. Sei sobre o vÃdeo. Sei que é falso. Sei que sua vida foi destruÃda por algo que nunca fez.
Não está sozinha. Há outras. Muitas outras. E estamos conectando os pontos. Descobrindo quem está por trás disso. Construindo um caso.
Precisamos de você. De seu testemunho. De sua coragem.
Se quiser saber mais, venha ao Café Literário na Liberdade amanhã às 15h. Mesa dos fundos. Traga este e-mail impresso.
Não está sozinha, Clara. Você nunca esteve.
C.V.â€
Clara releu a mensagem três vezes. Poderia ser uma armadilha. Mais uma humilhação. Um novo capÃtulo em sua saga de degradação pública.
Mas também poderia ser verdade. Poderia haver outras. Poderia haver explicações. Poderia haver... justiça, talvez?
Justiça. Uma palavra que lhe parecia estranha, distante. Como um conceito de um livro que leu há muito tempo e mal conseguia lembrar.
Olhou para a pilha de livros ao lado da cama. No topo, Crime e Castigo. Abriu em uma página aleatória, um hábito que desenvolvera nos últimos meses. Buscando orientação nas palavras de autores mortos que haviam entendido o sofrimento humano melhor que qualquer terapeuta moderno.
Seus olhos caÃram sobre uma passagem sublinhada: O sofrimento é a única causa da consciência.
Fechou o livro. Já tinha sofrimento suficiente. Consciência demais.
Mas talvez, quem saberia? Talvez fosse hora de transformar esse sofrimento em algo mais. Algo útil. Algo poderoso.
Decidiu que iria ao café. O que mais poderia perder?
Redação da Revista Empresários do Futuro, 10:30
Bianca ajustou os óculos falsos e verificou mais uma vez seu reflexo no espelho compacto. Cabelo castanho, liso, diferente de seus cachos naturais. Maquiagem sutil alterando o formato do rosto. Lentes de contato mudando o castanho de seus olhos para um azul artificial. Roupas conservadoras, profissionais, o oposto de seu estilo habitual.
Beatriz Mendonça estava pronta para sua entrevista com Dr. Eduardo Salles.
— Nervosa? — perguntou o editor-chefe, um homem de meia-idade com barriga proeminente e manchas de suor visÃveis sob os braços.
— Um pouco, — admitiu, modulando a voz para um tom mais agudo que o seu natural. — Sabe como é.. minha primeira grande entrevista.
— Não se preocupe. Salles é um charme em pessoa. Adora jornalistas jovens e bonitas, — disse ele, com uma piscadela que fez o estômago de Bianca revirar.
— Farei o meu melhor, — respondeu, forçando um sorriso.
O editor não sabia, claro. Não sabia que Beatriz Mendonça não existia até três semanas atrás. Não sabia que seu currÃculo impressionante era uma ficção cuidadosamente construÃda, apoiada por sites falsos, perfis sociais fabricados e referências que direcionavam para números esquentados operados por Carla. Uma identidade digital tão meticulosamente fabricada quanto os deepfakes que investigava.
A ironia não lhe escapava. Estava usando as mesmas ferramentas, as mesmas técnicas que seus inimigos. Manipulando a realidade digital para criar uma narrativa convincente. A diferença, dizia a si mesma, era o propósito. Não estava destruindo vidas. Estava tentando salvá-las.
O táxi parou em frente a um edifÃcio imponente no coração financeiro da cidade. Vidro e aço se erguendo trinta andares em direção ao céu, como um monumento à riqueza e ao poder. O tipo de lugar projetado para fazer pessoas comuns se sentirem pequenas, insignificantes.
Na recepção, uma mulher de beleza artificial e sorriso ensaiado a recebeu.
— Srta. Mendonça? Dr. Salles está esperando. Vigésimo oitavo andar.
O elevador subia silenciosamente, parecia que nem mesmo o som era permitido a perturbar o santuário do poder. Bianca usou os segundos para centralizar-se. Para lembrar quem era. Ou melhor, quem estava fingindo ser. Beatriz Mendonça. Jornalista ambiciosa. Impressionável. Ligeiramente intimidada pela presença de homens poderosos. O tipo de mulher que Eduardo Salles adoraria moldar, influenciar, impressionar.
As portas se abriram diretamente em um escritório panorâmico. Janelas do chão ao teto ofereciam uma vista de 360 graus da cidade. São Paulo se estendia em todas as direções, cinzenta e caótica lá embaixo, enquanto ali em cima tudo era ordem, luxo, controle.
Eduardo Salles estava de pé junto à janela, de costas para ela. Alto, elegante no terno feito sob medida, cabelos grisalhos nas têmporas conferindo-lhe um ar de autoridade madura. Quando se virou, seu sorriso era calculado para o efeito máximo. Confiante sem ser arrogante, charmoso sem ser predatório. Um sorriso que dizia: Sou exatamente o que você esperava, apenas melhor.
— Srta. Mendonça, — disse, estendendo a mão. — Ou posso te chamar de Beatriz?
— Beatriz, por favor, — respondeu, aceitando o aperto de mão. Firme, mas não dominador. Outro cálculo preciso.
— Eduardo, — então, respondeu ele, indicando uma poltrona de couro. — Nada de formalidades entre nós. Afinal, vamos criar algo especial juntos, não?
A escolha de palavras – criar algo juntos – não era acidental. Nada no comportamento de Salles era acidental. Cada gesto, cada inflexão, cada olhar era cuidadosamente calibrado para estabelecer uma dinâmica especÃfica. Ele no controle. Ela receptiva. Ele generoso. Ela grata.
A entrevista começou com as perguntas padrão. Sua trajetória profissional. Seus empreendimentos. Sua filosofia de negócios. Salles respondia com histórias bem ensaiadas, anedotas polidas pelo uso repetido, insights que soavam profundos mas eram essencialmente vazios.
Bianca interpretava seu papel com precisão cirúrgica. Olhos ligeiramente arregalados de admiração. Pequenos acenos de cabeça nos momentos certos. Anotações frequentes, como se cada palavra dele fosse preciosa demais para confiar apenas à memória ou ao gravador.
— Seu trabalho filantrópico é impressionante, Eduardo. — comentou, inclinando-se ligeiramente para frente. — Especialmente seu interesse em tecnologia educacional para jovens mulheres.
Algo brilhou nos olhos de Salles. Um lampejo quase imperceptÃvel de... o quê? Orgulho? Diversão? Algo mais sinistro?
— Acredito no potencial feminino, — respondeu, usando uma voz modulada para transmitir sinceridade. — Mas também acredito que esse potencial precisa ser direcionado adequadamente.
— Direcionado para onde? — perguntou Bianca, mantendo o tom inocente.
— O mundo digital é perigoso, Beatriz. Especialmente para jovens mulheres. Tantas armadilhas. Tantas formas de exposição indesejada, você entende?
A ironia era tão espessa que Bianca quase podia senti-la fisicamente. O arquiteto da destruição digital de mulheres, fingindo preocupação com sua segurança online.
— É por isso que desenvolvemos programas educacionais especÃficos, ensinando jovens mulheres a protegerem sua presença digital. A entenderem as consequências de cada post, cada foto, cada opinião expressa online.
— Consequências, quais, posso saber? — repetiu Bianca, permitindo-se parecer ligeiramente confusa.
Salles sorriu. Um sorriso meio tÃmido, de entrelábios.
— Vivemos na era da permanência digital, Beatriz. Nada realmente desaparece. Cada escolha online deixa rastros. Cria vulnerabilidades.
A palavra pairou entre eles, carregada de significados ocultos.
— Fascinante, muito fascinante, realmente. — respondeu Bianca, forçando entusiasmo na voz. — Confesso, gostaria muito de conhecer mais sobre esses programas. Talvez até observar pessoalmente?
Era um movimento arriscado. Pedindo acesso mais profundo tão cedo. Mas precisava testar os limites, ver até onde ele permitiria que ela se aproximasse.
Salles a estudou por um momento. Seus olhos, treinados por décadas de avaliação clÃnica, percorreram seu rosto, seu corpo, sua postura. Procurando sinais de desonestidade. De segundas intenções.
— Por que não? Estamos organizando um evento beneficente na próxima semana. Lançamento de uma nova iniciativa. Você poderia comparecer como minha convidada especial. Ver nosso trabalho em primeira mão.
— Seria uma honra, — respondeu Bianca, com o entusiasmo calibrado de uma jornalista ambiciosa vendo uma oportunidade de ouro.
— Excelente. Minha assistente entrará em contato e te passará os detalhes. — Ele fez uma pausa, estudando-a novamente. — Sabe, Beatriz, há algo em você, uma vibração intrigante, uma intensidade. Uma perspicácia que não é comum em jornalistas tão jovens.
Bianca sentiu um arrepio que percorreu a espinha como uma ameaça silenciosa percorrer sua espinha. Estava vendo através dela? Ou apenas flertando de forma velada?
— Capaz, apenas levo meu trabalho a sério, — respondeu, baixando os olhos em uma demonstração calculada de modéstia.
— Assim como eu, pode acreditar. — respondeu Salles. — É por isso que nos daremos bem, tenho certeza.
Quando o elevador fechou suas portas, a levando de volta ao térreo, Bianca finalmente permitiu que a máscara escorregasse. Suas mãos tremiam. Não de medo, embora houvesse medo, certamente, mas de raiva contida. De nojo. De determinação feroz.
Porque ali, na teia da aranha, no covil da vÃbora, agora tinha certeza. Não era apenas suspeita ou teoria. Tinha visto nos olhos dele. Tinha ouvido nas entrelinhas de cada frase cuidadosamente construÃda.
Eduardo Salles não era apenas um financiador distante. Era o arquiteto intelectual. O maestro conduzindo uma sinfonia de destruição digital. E estava prestes a convidá-la para os bastidores do espetáculo.
Café Literário, Liberdade, 15:03
Clara Reis entrou no café com passos hesitantes. Havia escolhido roupas discretas – calça jeans, camiseta preta, casaco largo que praticamente a engolia. Um boné puxado sobre os olhos. Óculos escuros, mesmo em ambiente interno. O uniforme dos que não querem ser reconhecidos.
O Café Literário era um lugar aconchegante. Estantes de livros cobriam as paredes. Mesas de madeira escura espalhadas em padrão aparentemente aleatório. Iluminação suave, música ambiente em volume baixo. O tipo de lugar onde ela teria passado horas em sua vida anterior. Lendo, preparando aulas, conversando com colegas sobre Kafka e Joyce.
Agora, cada espaço público era um campo minado. Cada rosto desconhecido, uma potencial ameaça. Cada olhar em sua direção, um possÃvel reconhecimento.
Escaneou o ambiente rapidamente. Mesa dos fundos. Uma mulher sentada sozinha. Trinta e poucos anos, cabelo curto, olheiras profundas, postura alerta. Um laptop aberto à sua frente, mas seus olhos estavam fixos na porta. Esperando.
Clara respirou fundo, como se tentasse conter o pânico e aproximou-se.
— C.V.? — perguntou, a voz quase inaudÃvel.
A mulher confirmou. Carla Vasconcellos. Você deve ser Clara Reis.
Clara sentou-se, mantendo os óculos escuros. Colocou o e-mail impresso sobre a mesa, como uma forma de identificação.
— Por que estou aqui, afinal?
— Porque você é uma vÃtima. E porque precisamos de vÃtimas dispostas a falar. A testemunhar. A lutar.
— Lutar contra o quê? Contra quem? Você tem ideia do que é ter sua vida destruÃda por algo que você nunca fez? Ter pessoas que você respeitava, que confiavam em você, de repente olhando para você, como se você fosse... suja?
— Sei exatamente como é, não pessoalmente, felizmente, mas através dos olhos de dezenas de mulheres como você. Mulheres cujas vidas foram meticulosamente desmanteladas por um sistema projetado especificamente para isso. Posso sentir a dor de vocês no olhar.
— Sistema, que sistema, porra?
Carla girou o laptop, mostrando a tela para Clara. Um mapa da cidade com pontos vermelhos pulsantes. Ao lado de cada ponto, um nome. Um rosto. Uma história.
— Você não é um caso isolado, Clara. Não é coincidência. Não é azar. É um padrão. Um projeto. Uma operação coordenada.
Clara estudou a tela, reconhecendo alguns nomes. Júlia Sampaio, a influenciadora que havia se suicidado. Amanda Torres, a atleta de vôlei cuja carreira implodiu. Marina Costa, a médica forçada a deixar o hospital chique onde trabalhava. Histórias que havia lido, acompanhado à distância, sem jamais imaginar que estava conectada a elas por um fio invisÃvel de destruição programada.
— O que eles querem, meu Deus? Por que estão fazendo isso?
— Controle, poder. Manutenção de um status quo. Cada mulher neste mapa representava algum tipo de ameaça a estruturas estabelecidas. Cada uma estava, , desafiando limites impostos. Ocupando espaços tradicionalmente negados.
Clara sentiu um arrepio que mexeu com cada fio de cabelo em seu corpo. Era uma ameaça silenciosa que a tomava de assalto. Seus artigos sobre misoginia em ambientes virtuais. Suas palestras sobre ética na era digital. Seu simpósio planejado sobre os perigos da tecnologia sem supervisão ética.
— Estou aqui porque descobrimos quem está por trás disso, Clara. E estamos construindo um caso. Reunindo evidências. Conectando vÃtimas. Preparando um contra-ataque.
— Que tipo de contra-ataque? O que posso fazer? Já perdi tudo. Meu emprego, minha reputação, minha credibilidade, não me resta muito a oferecer.
— Mas não perdeu sua voz, nem o senso ético, imagino. E é isso que eles mais temem. Mulheres que, mesmo depois de tudo, ainda se recusam a ficar em silêncio.
Clara removeu os óculos escuros lentamente. Seus olhos, antes vibrantes e curiosos, agora estavam opacos, cercados por olheiras profundas. Mas havia algo ali. Uma faÃsca. Um resquÃcio de determinação que nem mesmo meses de humilhação contÃnua haviam conseguido extinguir completamente.
— O que exatamente você está me pedindo?
— Seu testemunho. Sua história. Sua disposição para, quando chegar o momento certo, ficar de pé e dizer: “Isso foi feito comigo. E sei quem fez.â€
— E quando será esse momento, posso saber?
— Em breve, pode confiar. Estamos nos infiltrando. Reunindo provas irrefutáveis. Construindo um caso tão sólido que nem mesmo as conexões poderosas deles poderão abafar.
Clara ficou em silêncio por um longo momento. Pensando nas noites insones. Nos ataques de pânico. Nos olhares de julgamento. No desespero sufocante que havia se tornado sua companhia constante.
— Se eu fizer isso, se eu me expuser novamente, o que garante que não serei destruÃda uma segunda vez?
— Vou ser honesta com você. Nada, nada garante nada. Não posso prometer segurança. Não posso garantir que não haverá consequências. O que posso oferecer é a chance de transformar sua dor em algo significativo. De usar sua experiência para garantir que outras mulheres não passem pelo mesmo.
Clara pegou a xÃcara de café que havia esfriado sem ser tocada. Suas mãos tremiam levemente. Não de medo, percebeu. De raiva. Uma raiva que havia suprimido por meses. Uma raiva que agora encontrava um alvo especÃfico, uma direção, um propósito.
— Quero nomes, quero os nomes desses filhos da puta do caralho! — disse, a voz firme pela primeira vez. — Quero saber exatamente quem fez isso comigo.
Carla sorriu. Não um sorriso de alegria, mas de reconhecimento. De compreensão compartilhada.
— Vamos começar pelo topo, — disse, abrindo uma nova janela no laptop. — O rato maior, o Dr. Eduardo Salles.