Redação Independente, Pinheiros, 01:00 da manhã
Bianca Oliveira encarava o emaranhado de conexões em seu quadro de investigação. Fios vermelhos ligando fotos, documentos, capturas de tela. Seis meses investigando a rede de deepfakes que destruiu sua carreira, e finalmente os padrões começavam a emergir.
— Todas as vítimas incomodavam alguém, vejam só... — ela murmurou para si mesma, traçando uma nova conexão. — Mas não é aleatório. Há uma lógica, uma... curadoria.
Seu telefone vibrou. Número desconhecido. Hesitou antes de atender. Depois do que passou, paranoia tinha se tornado sobrevivência.
— Bianca Oliveira?
— Quem quer saber?
— Meu nome é Marcus Amaral. Detetive. Estou investigando a morte de Júlia Sampaio. Seu nome apareceu nos arquivos dela.
Bianca sentiu o coração acelerar. Júlia tinha procurado sua ajuda duas semanas antes. Desesperada, implorando por orientação. Bianca tinha compartilhado o que sabia, mas aparentemente não foi suficiente.
— Onde podemos nos encontrar, detetive? E antes que me pergunte: sim, sei que é perigoso. Mas já passei do ponto de me importar, tô indo a ferro.
Combinaram um encontro em um café 24 horas na Liberdade. Território neutro, movimento constante, múltiplas rotas de fuga. Bianca tinha aprendido a pensar taticamente.
Chegou trinta minutos antes, escolheu uma mesa com visão clara das entradas. Quando Amaral apareceu, pontual, alerta, claramente avaliando o ambiente, ela soube que podia confiar nele. Tinha o mesmo olhar que ela via no espelho: alguém que tinha visto demais para voltar atrás.
— O que Júlia disse a você? Perguntou ele após as apresentações tensas.
Bianca empurrou uma pasta através da mesa. Ela tinha descoberto algo. Padrões nos códigos dos vídeos. Assinaturas digitais que se repetiam. Estava construindo evidências de que todos vinham da mesma fonte.
Amaral folheou os documentos, seus olhos se arregalando progressivamente. Isso é...
— Prova de conspiração, detetive, isso mesmo. Não são ataques isolados, como poderia parecer. É uma operação coordenada. Profissional. Bem financiada.
— Você sabe quem está por trás?
— Tenho suspeitas. Mas suspeitas não bastam. Júlia estava chegando perto demais. Por isso...
— Por isso a silenciaram.
O silêncio que se seguiu, carregado de coisas não ditas, tomou conta dos dois. foi pesado. Ambos entendiam o que não era dito: se Júlia foi silenciada por chegar perto demais, qualquer um investigando corria o mesmo risco.
— Tenho uma perita digital trabalhando no caso. Carla Vasconcellos. Ela encontrou algo... perturbador. Um algoritmo que não apenas cria deepfakes, mas prevê e induz comportamento suicida.
Bianca empalideceu. Weaponized psychology como diriam os gringos.
— Exatamente, arma psicológica, na maioria das vezes, mortal. Quem está fazendo isso entende tanto de tecnologia quanto de psicologia humana. É uma combinação bem sinistra...
— E letal, detetive Amaral. Eu sei bem, sou prova viva disso.
Ela contou sua história. A investigação sobre crimes digitais que publicou. Os deepfakes que surgiram dias depois. A destruição sistemática de sua carreira, reputação, vida. Como sobreviveu por pura teimosia e raiva.
— Mas você sobreviveu, observou Amaral. Outros não. Por quê?
Bianca deu um sorriso amargo.
— Porque eu esperava. Quando você investiga o inferno, não se surpreende quando o diabo vem jantar sem ser convidado. Júlia, Clara, as outras, todas elas foram pegas de surpresa. Eu estava preparada para a guerra, cara.
— Então me ajude a estar preparado também.
Ela o estudou por um longo momento. Viu determinação, mas também algo mais. Uma rigidez moral que poderia ser tanto força quanto fraqueza.
— Primeiro, entenda uma coisa, Amaral. Não estamos lidando com criminosos comuns. São pessoas em posições de poder, com recursos ilimitados e zero escrúpulos. As regras normais não se aplicam.
— Sou policial. Tenho que seguir regras.
— Se continuar pensando assim, então vai perder. E mais mulheres vão morrer.
O desafio pairou entre eles. Amaral lutava visivelmente com o dilema. Seu treinamento versus a realidade brutal que Bianca apresentava.
— O que você sugere, Bianca?
— Formamos nossa própria rede. Operamos nas sombras, como eles. Reunimos evidências por meios... criativos. E quando tivermos o suficiente, tornamos tudo público de uma vez, de forma que não possam abafar ou desacreditar.
— Isso é, como posso dizer...
— Ilegal? Antiético? Perigoso? — Bianca se inclinou para frente. — Sim. Todas as anteriores. Mas também é a única chance que temos.
Amaral ficou em silêncio por um longo momento. Bianca podia praticamente ver os conflitos internos em seu rosto. Finalmente, ele deu o braço a torcer.
— O que precisamos fazer, então?
— Primeiro, identificar todas as vítimas. Vivas e mortas. Mapear conexões, encontrar o elo comum. Segundo, infiltrar a operação deles. Precisamos de alguém por dentro.
— Isso parece impossível.
— Não, detetive Amaral. — Corrigiu Bianca, um brilho perigoso em seus olhos. — Apenas muito, muito arriscado. Mas conheço alguém que pode estar disposta. Alguém com as habilidades necessárias e motivação pessoal suficiente.
— Quem?
— Eu.
Apartamento de Carla Vasconcellos, 03:00 da manhã
Carla não conseguia dormir. O código do algoritmo dançava atrás de suas pálpebras toda vez que fechava os olhos. Havia algo familiar nele, algo que coçava no fundo de sua mente como uma música esquecida.
Levantou-se e voltou ao computador. Ignorou os protestos de seu corpo exausto e mergulhou novamente no código. Linha por linha, função por função, procurando o que sua mente subconsciente tinha detectado.
E então viu.
Um comentário enterrado profundamente no código. Apenas três palavras, mas que fizeram seu sangue gelar:
arduino
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// Prometheus Rising Again
Ela conhecia essa assinatura. Tinha visto anos atrás, em um caso de hack ativismo que investigou no início da carreira. Um grupo de programadores brilhantes que acreditavam em evolução digital forçada. Foram presos, o grupo dissolvido.
Ou assim pensavam.
Com dedos trêmulos, Carla acessou arquivos antigos, comparou códigos, verificou padrões. A evidência era inegável: pelo menos um membro do Prometheus tinha ressurgido. Mais sofisticado, mais perigoso, mais ambicioso.
Pegou o telefone para ligar para Amaral, mas hesitou. Se o Prometheus estava realmente envolvido, significava que estavam lidando com algo muito maior do que imaginavam. Não apenas crimes isolados, mas uma ideologia. Uma visão distorcida de futuro onde apenas os digitalmente aptos sobreviveriam.
Seu computador emitiu um alerta. Alguém estava tentando hackear seu sistema. Não um ataque amador. Eram sondagens sutis, procurando vulnerabilidades.
Carla sorriu amarelo e ativou suas contramedidas. Dois podiam jogar esse jogo. Enquanto o atacante procurava uma entrada, ela rastreava a origem. Camadas de proxies, criptografia militar, mas havia sempre um erro, sempre uma...
— Peidou, seu filho da puta!
Um endereço IP que ficou exposto por uma fração de segundo. Suficiente para triangular uma localização aproximada. Zona Leste de São Paulo.
O caçador tinha se tornado caça.
Carla salvou toda a informação em drives criptografados, preparou backups, ativou protocolos de segurança. Se algo acontecesse com ela, a informação sobreviveria.
Então fez algo que sabia ser estupidamente perigoso: enviou uma mensagem através do mesmo canal que o hacker tinha usado.
— Sei quem você é, Architect. Prometheus nunca morreu, apenas evoluiu. Mas evolução pode ser uma faca de dois gumes. Vamos ver quem se adapta mais rápido.
A resposta veio em segundos:
— Finalmente, um oponente quase à minha altura. O jogo começa agora, Carla Vasconcellos. Tente não desapontar como as outras, ok?
Carla sentiu um arrepio que percorreu a espinha como uma ameaça silenciosa a tomar conta de sua alma. Não de medo, mas de antecipação. Pela primeira vez em meses, sentia-se viva. A caçada estava prestes a se intensificar, e ela mal podia esperar.