CAPÃTULO
2 - ARQUITETURA DO MEDO
Bairro
nobre de São Paulo, mesmo dia, 22:30
Dr.
Eduardo Salles girou o uÃsque de 30 anos em seu copo de cristal,
observando as luzes da cidade através da janela panorâmica de sua
cobertura. Aos 52 anos, tinha construÃdo um império. ClÃnicas de
estética, laboratórios farmacêuticos, investimentos em tecnologia.
Mas seu verdadeiro poder não vinha do dinheiro.
Vinha
do medo.
O
telefone seguro tocou. Apenas três pessoas tinham aquele número.
— Está
feito, — disse a voz do outro lado. Architect nunca se
identificava, mas Salles reconheceria aquele tom monocórdico em
qualquer lugar.
— Vi
as notÃcias. SuicÃdio. Muito limpo.
— Como
solicitado. O algoritmo funcionou perfeitamente. Margem de erro de
menos de 3% na previsão do desfecho.
— E
os rastros?
— Inexistentes.
Mesmo se encontrarem o código, levarão meses para decifrá-lo. E
quando conseguirem, encontrarão apenas mais camadas de ofuscação.
Salles
sorriu. Era por isso que pagava tão bem. Architect não era apenas
um programador; era um artista da destruição digital.
— A
próxima da lista?
— Clara
Reis. Professora. Já iniciamos a fase de reconhecimento. Perfil
psicológico indica alta susceptibilidade a pressão social.
Estimativa de quebra: duas semanas após a implantação.
— Acelere.
Quero resultados em uma semana, entendeu?
Houve
uma pausa. Quando Architect falou novamente, havia algo diferente em
sua voz. Algo que Salles não conseguia identificar.
— Acelerar
compromete a precisão. Aumenta o risco de detecção, acredito que
você saiba disso.
— Não
me importa. Temos uma janela de oportunidade. O projeto de lei sobre
crimes digitais vai a votação em três semanas. Preciso de um
impacto suficiente para influenciar a narrativa.
— Entendido.
Mas isso terá um custo adicional.
— Sempre
tem, — respondeu Salles, encerrando a ligação.
Sozinho
novamente, permitiu-se um momento de satisfação. O mundo estava
mudando rápido demais. Mulheres ocupando espaços que não lhes
pertenciam, questionando estruturas que funcionaram por séculos,
ameaçando a ordem natural das coisas.
Mas
a tecnologia que elas abraçavam tão entusiasticamente seria sua
ruÃna. Cada selfie, cada post, cada momento compartilhado online era
munição. E Salles tinha o melhor atirador do mundo digital em sua
folha de pagamento.
Seu
telefone pessoal vibrou. Uma mensagem de sua filha, estudando
medicina em Harvard: “Pai, vi as notÃcias sobre aquela influencer.
Que tragédia,né? Ela era tão jovem...â€
Salles
digitou uma resposta cuidadosa: “Realmente trágico, filha. É por
isso que sempre digo para você ter cuidado com o que posta online,
querida. Tá bem?â€
A
ironia não lhe escapou. Protegia a própria filha do mundo que ele
mesmo estava criando. Mas assim sempre foi com homens de visão:
constroem o futuro enquanto preservam o passado para os seus.
Zona
Leste de São Paulo, 23:45
João
Elias – o homem por trás do pseudônimo Architect – desligou o
telefone seguro e voltou sua atenção para os seis monitores que
dominavam seu escritório improvisado no porão. Cada tela mostrava
um aspecto diferente de sua operação: análise de dados,
renderização de vÃdeos, monitoramento de impacto, mineração de
vulnerabilidades.
Mas
era o monitor central que prendia sua atenção. Nele, o rosto de
Clara Reis sorria em uma foto tirada durante uma formatura.
Professora de literatura, 35 anos, solteira, idealista. O algoritmo
já tinha processado 3.847 imagens dela, construindo um modelo 3D
perfeito de seu rosto, aprendendo cada nuance de suas expressões.
“Fase
de reconhecimento 87% completadaâ€, anunciou o sistema com voz
sintetizada.
João
abriu um energético dos mais fortes e começou a trabalhar. Salles
queria acelerar? Teria aceleração. Mas o velho idiota não entendia
a beleza do que tinham criado. Para ele, era apenas uma ferramenta de
controle, de manutenção de poder.
Para
João, era muito mais.
Era
evolução. Seleção natural digital. As fracas seriam eliminadas,
as fortes sobreviveriam e se adaptariam. Estava acelerando a evolução
humana, forçando a espécie a desenvolver resistência psicológica
à manipulação digital.
Darwin
ficaria orgulhoso.
Seus
dedos voaram sobre o teclado, ajustando parâmetros, refinando
algoritmos. Clara Reis seria um caso interessante. Professora
respeitada, sem grandes vulnerabilidades óbvias. O sistema teria que
cavar mais fundo, encontrar as rachaduras em sua armadura
psicológica.
“Análise
de rede social iniciadaâ€, informou o sistema. “Identificados 234
contatos primários, 1.892 secundários. Mapeando pontos de pressão
social...â€
João
se reclinou na cadeira, observando o algoritmo trabalhar. Era
hipnotizante ver a máquina dissecar uma vida humana, reduzindo anos
de experiências e relacionamentos a pontos de dados, probabilidades,
vetores de ataque.
Um
alerta soou. Anomalia detectada. João franziu a testa e abriu o log
de sistema.
Alguém
estava investigando. Alguém com conhecimento técnico real. Os
honeypots que tinha espalhado pela rede estavam sendo acionados, mas
de forma cuidadosa, metódica. Quem quer que fosse, sabia o que
estava fazendo.
— Interessante,
muito interessante... — murmurou João, abrindo uma nova janela de
terminal.
A
caça funcionava nos dois sentidos. Enquanto investigavam o predador,
tornavam-se presas. E João Elias, o Architect, adorava quando a
presa mostrava os dentes.
Tornava
suas vitórias muito mais satisfatórias.