Parte 2
O dirigível da Princesa Rosália aterrissou no Porto da cidade invertida de Novo Paraíso, que fica abaixo da Ilha de Prata. As fadas acenaram para Rosália quando ela desembarcou na plataforma, acompanhada por seus guardas mais algumas marionetes, ela os cumprimentou de volta com um aceno alegre. As construções de Novo Paraíso eram todas de madeira, com hibiscos espalhados por todos os lados. As pontes que formavam as ruas e estradas eram largas e bastante robustas. Só havia guarda-corpo em lugares turísticos muito movimentados, já que as fadas em geral não precisavam deles. Nessas áreas turísticas, a entrada para os estabelecimentos era conectada às ruas por pontes e escadas, mas na parte mais profunda e vertical da cidade, a entrada para os estabelecimentos costumava ser apenas uma sacada pequena com uma porta, onde as fadas podiam pousar. A iluminação era feita por luzes presas às rochas do teto e por postes espalhados pela cidade.
Rosália pegou o teleférico e desceu até a ária-hospitalar, onde foi recebida cordialmente pelas enfermeiras. A Princesa passou em vários quartos para dizer algumas palavras gentis aos feridos e tentar confortá-los um pouco.
Quando a nuvem púrpura do Lich alcançou as pessoas em Mirante durante o seu ataque, aquelas que conseguiram escapar com vida tiveram a pele, os músculos e até mesmo os ossos apodrecidos em instantes, com a amputação de membros sendo obrigatória na grande maioria dos casos. O sistema único de saúde do Arquipélago cuidaria dos feridos até que eles pudessem voltar à vida normal sem lhes gerar custo financeiro, além de providenciar próteses para os amputados feitos com o mesmo material e encantamento de que eram feitas as marionetes.
A pedido de Rosália, os médicos estavam trazendo crianças de todas as idades ao pátio do hospital para que ela pudesse lhes contar uma história. Com uma música infantil tocando pelo rádio. Além das várias fadinhas de sempre, também havia elfos, pequenos goblins e alguns semi-humanos que vieram para ver o festival. Como um menino lobo de pelagem cinzenta parando de frente para Rosália e olhando para ela com olhos cheios de fascinação. Mesmo que enfaixada, a calda felpuda do lobinho balançava alegremente de um lado para o outro. A princesa albina fez um cafuné na cabeça dele e continuou cumprimentando todos que entravam com um sorriso. De repente, a programação do rádio foi interrompida e o rei fada Bernardo de Lima começou a falar:
— Olá a todos os meus queridos cidadãos do reino das fadas, e a todos os que vieram nos visitar nessa que deveria ter sido uma data comemorativa. Eu venho lhes informar que, após uma longa reunião com o primeiro-ministro Lucas e com os Protetores das Ilhas Flutuantes, além de Edgar, o comandante das forças armadas do Arquipélago, nós chegamos à decisão de que as cidades invertidas devem ser temporariamente fechadas. Isso porque a Deusa do Inverno telefonou pessoalmente para o primeiro-ministro Lucas a fim de contar um sonho em que ela viu as Ilhas Flutuantes caindo do céu. Eu sei muito bem como isso é aterrador! Mas não entrem em pânico! Ao invés disso, façam uma prece à Deusa Cerise, agradecendo por ela ter olhado por nós! Àqueles que vivem na parte superior das Ilhas Flutuantes, sejam cordiais e receptivos para com todos que precisarem de ajuda e abrigo. E a todo o povo fada, lembre-se de que, como anfitriões, nós temos o dever de proteger os nossos convidados. Se o pior realmente acontecer, então, pegue em seus braços alguém que é incapaz de voar e o leve para um lugar seguro!
A música alegre voltou a tocar pelo rádio e Rosália sentiu todos os olhos daquele lugar sobre si.
“O Arquipélago de Lima irá cair?!”
Com o coração querendo sair pela boca, a fada pensava no que poderia dizer.
— Ah… é… bem… É como o meu pai disse, não devemos entrar em pânico… O que devemos fazer é agradecer à Deusa Cerise pela sua orientação. Acho que enquanto eu conto a minha história, os médicos irão preparar tudo para a evacuação do hospital… — Ao terminar de falar, Rosália olhava para a médica como se pedisse por uma confirmação. Após ela fazer que sim, a fada desligou o rádio, se sentou no chão junto às crianças e iniciou a sua história.
— … —
O homem e a Valquíria.
Era uma manhã sombria e tempestuosa. A batalha durou apenas um dia e o solo enrubescido era lavado pela chuva forte. O homem colocava em sua bolsa qualquer coisa de valor que encontrasse, enquanto os lupinos se fartavam. Ele se assustou com o som do trovão e viu o raio rasgar o céu em azul-prateado. Após tossir, o homem cuspiu um ranho ensanguentado, foi então que a viu. A Valquíria gesticulava graciosamente sem nenhum motivo aparente. Ela era um ser feito de pura luz prateada. Possuía dois enormes pares de asas emplumadas, usava armadura de couro cozido, placas e anéis de metal, que terminava num longo vestido vermelho. Em seu pescoço pendia um colar de prata com um diamante em forma de lua minguante. Ela possuía longos cabelos dourados divididos em duas tranças e levava uma espada curva embainhada em sua cintura. Seu elmo tinha forma de uma cabeça de águia, enfeitada com plumas douradas do lado direito.
Ao perceber que o homem olhava boquiaberto em sua direção, a Valquíria acenou e questionou incrédula:
— Por acaso, você pode me ver?!
— Sim. Você é a mulher mais bela que eu já vi na vida.
A Valquíria se aproximou, pairando um pouco acima dele e disse:
— Você está pilhando os cadáveres daqueles que morreram em batalha.
— Não me julgue, senhora, não tenho intenção de desrespeitar aqueles que se foram. Mas receio que eles já não precisam de mais nada de valor.
— Eu não estou te julgando. Não me importo com o que você está fazendo ou com os seus motivos. —disse a Valquíria em tom monocórdio. Apesar disso, ela não se afastou e, quando o homem partiu, ela o acompanhou até a cabana da bruxa, onde ele trocou a sua pilhagem por ervas e poções. No caminho para casa, ele questionou:
— Por que está me seguindo, Senhora Valquíria?
Mas a mulher alada não lhe respondeu. O homem tossiu novamente e pareceu bastante frustrado com o sangue em sua mão; o que ele tratou de limpar o mais rápido possível. A chuva seguia sem dar trégua e a estrada era barro escorregadio.
— Você não vai beber a poção da bruxa?
— Não é pra mim.
Ao chegar em casa, o homem foi recebido por sua esposa, que tinha seu filho de quase um ano no colo, sua filha de 10 anos e por um cachorro caramelo.
Sua esposa o envolveu com uma toalha e disse em tom de repreenda.
— Você passa tempo demais na chuva.
O homem morava em um casebre com telhado de taipa em um vilarejo pequeno. No quarto dos fundos, havia um garoto acamado, para quem ele deu o remédio da bruxa com bastante cuidado.
Após trocar de roupa, ele se sentou à mesa; o almoço era sopa de legumes. Quando ele ofereceu um prato à Valquíria, sua mulher perguntou com quem ele estava falando. Foi só então que o homem percebeu que ninguém mais podia vê-la.
Ao cair da noite, o homem foi para a cozinha e preparou um café no fogão a lenha. Depois, sentou-se na cadeira de balanço em sua varanda e ficou olhando a chuva cair. Pela janela, dava para ver seu filho acamado.
— Seu filho está morrendo —disse a Valquíria.
— Eu sei… você está aqui para levá-lo? —questionou o homem infeliz.
— Ainda não.
— Você poderia salvá-lo, Senhora Valquíria?
— Se eu quisesse, sim, poderia.
Ouvindo isso, o homem suplicou à Valquíria que ela salvasse o seu filho, e quando ele se ajoelhou e tentou tocar a barra de seu vestido vermelho, suas mãos a atravessaram.
— Não! —respondeu a mulher alada em tom cortante.
— Eu faço o que você quiser, te dou até a minha vida se assim desejar!
A Valquíria, no entanto, fez que não com um meneio.
— Apenas quem está à beira da morte pode ver um espírito, meu Senhor. Até o amanhecer, eu já terei levado a sua alma. Não está me oferecendo nada que eu já não vá possuir.
Ao ouvir isso, os olhos do homem se encheram de lágrimas, mas ele não se permitiu chorar. Ao invés disso, ele se sentou novamente em sua cadeira de balanço e voltou a tomar o seu café.
— Tem café no mundo dos espíritos, Senhora?
— Não.
— Entendo… imagino que você nunca tenha tomado café antes, você quer provar?
O homem questionou, mas quando a Valquíria foi pegar o copo de café, sua mão atravessou a dele e o copo.
— Nós, Valquírias, não podemos tocar ou interagir com nada que existe no mundo carnal. Eu não entendo, por que vocês mortais se apegam de tal maneira à vida se sua existência é tão sofrida e efêmera?
Ao ouvir o questionamento da Valquíria, o homem ficou pensativo. Mil respostas passaram por sua mente, mas o que ele poderia dizer a um ser criado pela Deusa Larissa, cujo objetivo de existir era levar a alma dos mortos para o mundo dos espíritos?
— Eu não sei dizer se existe uma resposta definitiva para essa pergunta, minha Senhora. O que sei é que tudo o que existe neste mundo, tanto as coisas boas quanto as ruins, você tem que estar vivo para experimentar. Eu só acho que isso tem o seu valor.
O homem adormeceu ouvindo o cair da chuva forte. Ao despertar, ele estava sobre o rio das almas no mundo dos espíritos. Mesmo assim, ele ficou feliz, pois, de alguma forma, o homem sabia que seu filho mais velho não estava ali.
— … —
Após terminar de contar sua história, Rosália se despediu de todos e partiu. Lá fora, era possível ver algumas fadas voando em direção a parte de cima da ilha flutuante de Prata. Já os turistas iam para as estações ferroviárias, que logo estariam lotadas, ou para uma das estações dos teleféricos.
“Que os Deuses nos protejam e que o sonho da Deusa Cerise não se torne realidade…” Rosália não queria voltar ao Palácio Verde ainda.
— Encontro vocês em Mirante! — disse a princesa albina aos seus guardas, então girou graciosamente, ultrapassando a borda da extremamente robusta plataforma de madeira e se permitiu cair. A fada ganhou velocidade e logo passou a Ilha Grande e a Ilha Asa Direita. Quando Rosália estava prestes a se estatelar contra o chão de Mirante, ela bateu as asas velozmente a fim de aterrizar suavemente, com seus guardas e marionetes chegando pouco depois. Ela esticou os braços e os dois pares de asas para o alto, ofegante, e disse satisfeita:
— Que coisa boa! Eu estava mesmo precisando exercitar as asas um pouco! — Rosália voou para a borda da pequena ilha, acenando para todos pelo caminho.
Algumas pessoas se aproximaram dela e questionaram sobre o que ouviram pelo rádio. Uma senhora assustada apontando para um folheto cheio de instruções sobre o que fazer questionou se aquilo era mesmo real. Rosália sorriu, segurou em seu ombro gentilmente e disse:
— Vamos seguir as instruções que nos foram passadas pelos Deuses e, assim, nós vamos ficar bem. Eu sei que é assustador, mas não entrem em pânico!
Apesar de não intender direito o que estava acontecendo, Rosália sabia muito bem que ela, como princesa das fadas, era um símbolo de paz e esperança, e que ela tinha o dever de acalmar o seu povo como podia.
O último Wyvern pareceu sentir sua presença quando ela chegou. Ele se desenrolou, olhou em sua direção por alguns segundos, estendeu suas asas escamadas e partiu. Rosália sentiu uma mistura de alegria e tristeza enquanto observava a Serpente Voadora verde-metálica se distanciando em direção à Ilha Proibida.
— Pelo menos você o viu partir— disse uma voz bastante conhecida. Esse era seu pai, o rei fada Bernardo de Lima. — Vem, vamos tomar um sorvete, filha.
A sorveteria ficava na praça próxima à estátua de Ayla e era uma daquelas em que você mesmo se servia. Enquanto Rosália preparava para si uma casquinha com uma bola de coco, uma bola de morango e uma bola de chocolate. Fadas e semi-humanos se aproximaram do rei para questionar sobre sua mensagem pelo rádio, e Rosália se sentiu aliviada pelo pai estar dizendo coisas muito parecidas com o que ela mesma falou anteriormente. Após acalmar a todos, Bernardo de Lima insistiu para que eles tomassem um sorvete por sua conta. Depois de pagar, eles se sentaram em um banco da praça para tomar o sorvete.
— Qual história você contou para as crianças hoje, filha? — quis saber seu pai. O sorvete de Rosália começava a derreter, por isso ela tentou tomá-lo mais rápido, sentindo o cérebro congelar. Após massagear a testa um pouco, ela respondeu:
— O homem e a Valquíria. Essa é uma história bonita com um final agridoce, do jeito que eu gosto. Eu ouvi a sua mensagem pelo rádio pai. Pensar que o Arquipélago possa mesmo cair é assustador… Já descobriram para onde o Lich foi depois que desapareceu, pai?
Bernardo de Lima fez que não com um meneio e pareceu preocupado.
— Tem guardas acompanhados por marionetes por todo o Arquipélago procurando pelo Lorde Morto-Vivo, mas até agora nada de ele aparecer. Por um lado, tentamos passar a sensação de normalidade, a fim de trazer tranquilidade às pessoas. É por isso que eu vim para Mirante depois de ter dado o meu aviso pelo rádio. Por outro lado, nós sabemos muito bem que ele quer as Asas de Ouro e a Runa Mágica Primordial criada pela Deusa do Céu, e que não vai desistir até consegui-las. Além disso, o primeiro-ministro Lucas recebeu uma ligação da Deusa do inverno. Ela disse ter sonhado com a queda do Arquipélago de Lima. Isso é a última coisa que uma fada quer ouvir vindo de uma vidente, mesmo que a Deusa Cerise tenha dito depois que seus sonhos são apenas possibilidades. Considerando a possibilidade de que o Lich realmente consiga quebrar o encantamento que prende as Asas de Ouro no centro do Arquipélago, eu aconselhei o primeiro-ministro Lucas para que, em parceria com o ministério da defesa, elabore um plano de contingência para o caso de o Arquipélago realmente cair. Sabemos muito bem que isso vai assustar as pessoas, mas panfletos com instruções sobre o que fazer estão sendo distribuídos por todo o Arquipélago nesse momento.
Pensar em tudo isso fazia Rosália sentir um nó no estômago. Originalmente, quem prendeu o Lich dentro de uma Árvore Gigante Dourada, usando para isso o encantamento Cárcere Perpétuo, foi a Deusa da Magia e Fertilidade Karla, mãe de Adriane e primeira esposa do Artesão. Mas para fazer isso, ela se aproximou demais do Lorde Morto-Vivo. Enquanto vinhas e raízes douradas envolviam e aprisionavam o Lich, ele conseguiu atravessar o peito de Karla com a mão e esmagou seu coração. Como tudo o que o Lorde Morto-Vivo toca apodrece, o corpo da Deusa Karla começou a apodrecer a partir de seu ferimento. Por isso, depois que o encantamento Cárcere Perpétuo foi finalizado, a Deusa da Magia e Fertilidade caiu morta e já apodrecida aos pés da árvore áurea onde o Lich foi aprisionado.
Atualmente, os únicos seres capazes de recriar este encantamento eram Adriane de Barros e suas filhas ninfas; isso porque para criar o Cárcere Perpétuo, Karla usou o cajado mágico que foi dado a ela como um presente de aniversário de 1500 anos por sua filha Adriane, e nele residia o poder da Deusa da Natureza.
Enquanto conversavam, seu pai revelou que havia ligado para a rainha Adriane e pedido para que ela viesse até o Arquipélago a fim de ajudar a encontrar o Lich e aprisioná-lo novamente. Apesar de a Deusa ser uma mulher extremamente ocupada, ela tinha motivos pessoais para querer o Lorde Morto-Vivo aprisionado. Rosália concordava que isso seria o melhor para acontecer, afinal, como as fadas poderiam matar alguém que já estava morto? Por isso, a princesa albina decidiu acrescentar em sua prece diária um pedido à Deusa da Natureza para que ela viesse em socorro das fadas.
— * —
Helena havia se juntado à mesa para o jantar e parecia estar bem melhor, apesar de raramente falar alguma coisa. Em seu pescoço ainda pendia o colar de prata com o diamante em forma de lua minguante sobre o qual haviam conversado alguns dias atrás. No entanto, ela comia com a boca aberta, deixando que uma parte da comida caísse de volta no prato. Sua baba era viscosa, pegajosa, com um tom púrpura, e seu hálito era horrível. Helena pegou a coxa de pato assado com as duas mãos, então rompeu carne e osso com uma única mordida, quase arrancando também um pedaço dos dedos, que agora estavam ensanguentados. Todos olhavam bestificados para a princesa de Karlópoles e foi o rei fada, Bernardo de Lima, quem quebrou o silêncio:
— Você está bem, Senhora Helena?! — Helena se virou para Bernardo, mas não lhe respondeu. Seus olhos haviam se transformado em um abismo escuro com uma chama púrpura no final. Do galo em sua testa surgiu um chifre robusto em forma de espiral, arrebentando a pele. Helena subiu em cima da mesa e comeu o resto do pato assado como se fosse uma felina selvagem faminta há dias. Quando terminou, um olho púrpuro estava sobre Rosália e o outro sobre o seu pai.
— Por que eu não consegui arrancar as asas de ouro do lugar? O que as prende? — questionou Helena com uma voz rouca e Rosália sentiu seu coração ser tomado pelo terror. Seu pai fez um sinal discreto para que ela e sua mãe saíssem da sala de jantar, então se aproximou de uma Helena possuída, a olhando de baixo para cima e respondeu ao seu questionamento:
— O encantamento criado pela Deusa Ayla tem como fonte de poder o seu próprio sangue, alma e ser! Não há como quebrá-lo, grande e antigo Deus que morreu e se transformou neste ser corrompido. — Bernardo de Lima colocou a mão sobre o peito e se curvou perante o Lich. — Por favor, eu imploro para que você tenha piedade do povo fada, não nos faça mais nenhum mal e vá embora.
Enquanto se afastava sorrateiramente, Rosália percebeu os guardas indo em direção a Helena apontando armas. A fada questionou a si mesma em pensamentos se eles atirariam, se a senhora Helena ainda poderia estar viva de alguma maneira e o que o rei de Karlópoles pensaria após descobrir o que aconteceu com sua filha única.
De repente, Rosália percebeu que sua mãe não havia se levantado da cadeira e que ela sequer havia tocado na comida até então.
— Mãe! Vamos!— suplicou Rosália, esforçando-se para suprimir o desespero em sua voz. Sua mãe, no entanto, disse num tom de voz assustadoramente calmo:
— Está tudo bem, filha. Não há por que temer o Deus Corrompido.
As lágrimas irromperam dos olhos de Rosália.
“Deuses, por que isso está acontecendo?” Questionou a fada a si mesma, paralisada e horrorizada. Helena pegou o colar de prata com um diamante em forma de lua minguante nas mãos e voltou a questionar o que prendia as Asas de Ouro e como libertá-las.
Os guardas só pararam de disparar depois que Helena Rodrigues estava caída no chão. No entanto, ela se levantou cambaleante. Ouviu-se o som de ossos se quebrando, suas costas se abriram e o Lich saiu ensanguentado de dentro da princesa de Karlópoles. A criatura morta-viva tinha músculos e ossos a vista, com metade do rosto totalmente descarnado. Ele exalava um forte cheiro de carniça, seus chifres eram robustos e espiralados, sobre ele pairava um manto púrpura e negro de magia corrompida. Dos quatro braços que ele possuía, só um parecia normal. Dois eram músculos e ossos, sendo que o último era puro osso, com as articulações necessárias para a sua movimentação sendo formada por magia corrompida.
Uma marionete voou em direção ao Lorde Morto-Vivo, sua lâmina foi capaz de separar cabeça e corpo antes de enferrujar e virar pó. Mas as partes logo se juntaram novamente. O Lich enfiou a mão de ossos inteira dentro da própria boca e puxou o Martelo Bico de Corvo criado pelo Artesão coberto por uma baba pegajosa. Então, ele foi contra os guardas, dando gargalhadas enquanto abria cabeças com o Martelo Bico de Corvo; uma arma que parecia ser uma lança fundida a um martelo de combate medieval.
Em poucos minutos, só havia pedaços apodrecidos de fadas e uma vastidão de sangue negro coagulado. As marionetes que o atacaram, ou foram quebradas pelo Martelo Bico de Corvo, ou enferrujaram e apodreceram após entrar em contato com o Lorde Morto-Vivo. O Lich então foi até onde estava o cadáver da Senhora Helena, primeiro ele comeu a cabeça, depois o tronco e, por fim, as pernas. Então deu tapinhas no estômago e soltou um arroto cheio de prazer. Rosália perdeu as forças nas pernas depois de presenciar esse horror e caiu de joelhos no chão mortificada. Com aquela risada aterradora ecoando em sua cabeça.
— Diga-me, rei fada, você sabe o que é fome? — questionou o Lich em tom sombrio. — Consegue imaginar a sensação de ficar aprisionado sem poder mover um músculo se quer por séculos e séculos? Sentir o estômago dobrar sobre si mesmo até chegar ao ponto de abraçar as costelas? E quando enfim você coloca na boca o melhor pedaço de carne que poderia encontrar, você não faz nada… você tem de esperar pacientemente, enquanto sente a carne apodrecendo em volta do seu corpo…
“Nem vivo, nem morto… a maldição lançada pela Deusa Karla e pela Deusa Ayla tirou a sua vida… mas ele voltou do mundo dos espíritos e se tornou esse ser corrompido, sempre em busca de um novo recipiente para habitar. Por que, Deusa Gentil…? Por que você o deixou voltar para Neverly?”
Um guarda surgiu atrás de Rosália, sacudiu seus ombros e vociferou:
— Vamos, princesa!
Eles voaram em disparada para a saída mais próxima, mas quando Rosália olhou para trás, viu uma nuvem púrpura e negra em seus calcanhares. A fada caiu no chão quando a nuvem de miasma lhe alcançou, com o guarda caindo ao seu lado. De repente, o Lich apareceu e esmagou a cabeça dele com o Martelo Bico de Corvo. O Lorde Morto-Vivo pegou a fada pelo braço direito e começou a rir. Rosália de Lima sentiu a podridão comer o seu membro a partir do toque do Lich. Desesperada, ela tentou chutar a cara dele, mas sua perna esquerda também foi pega. A princesa das fadas se sentia como uma mariposa presa pelas patas. Mas quando as suas esperanças haviam se dissipado, seu pai se lançou sobre o Lich, dando-lhe a oportunidade de escapar voando dali.