Capítulo 3
Rumo incerto
Ana Laura
As bandagens improvisadas em seu ombro estavam vermelhas e úmidas de sangue. A dor era terrível, mas Ana fingia estar bem para não preocupar os irmãos. Priscila estava deitada no banco, com a cabeça em seu colo e repetindo “mamãe” soluçantemente. Já William e Eduardo olhavam a mata fechada pela janela do vagão. A ferrovia pela qual seguiam margeava a Grande Floresta de Neverly montanha acima, depois cruzava o Rio Serpente para chegar à Vila Amarela.
Ainda era difícil para Ana Laura Rodrigues assimilar tudo o que aconteceu. Pensar que foi o comandante Richard quem os levou para aquela armadilha e que foi ele quem disparou contra o seu ombro era algo triste e desesperador. O comandante sempre havia sido uma pessoa tão gentil, mas agora ele estava de pé nos fundos do vagão, olhando para eles com olhos desiguais. Havia moscas o rodeando e no buraco em sua têmpora tinha uma profusão de larvas se mexendo. O cheiro de putrefação era forte e nauseante.
Sua mãe havia mostrado um colar de prata com um diamante em forma de lua minguante para Richard, disse ser quem ele queria e pediu por favor para que ele deixasse Ana e os irmãos em paz. Depois disso, um dos mortos revividos com necromancia bateu em sua cabeça com a parte de trás da arma e a levou desacordada.
Após uma aterrissagem assustadora na qual o dirigível onde estavam se chocou violentamente contra o chão, eles foram levados para a estação ferroviária do Velho Vale. Apesar de ser sempre distante e mal-humorado, William foi o primeiro a perguntar como Ana estava. Assim que teve uma oportunidade, o irmão correu para pegar água a fim de lavar o seu ferimento. Depois disso, Will quebrou um dos espelhos da estação, usou o caco para rasgar a manga da própria camisa, então usou essa tira de pano para enfaixar seu ombro direito. Imaginar que as pessoas pálidas e caladas que eles viram na estação poderiam muito bem ser mortos revividos fazia Ana sentir um aperto no peito.
Eduardo tocou sutilmente em seu ombro ferido e questionou se ela ainda sentia dor. Mas antes que Ana respondesse, Will esbravejou:
— Assim você vai machucar ela, imbecil!
— Eu estou bem! — mentiu Ana, tentando evitar que os irmãos brigassem.
Considerando que Will sempre foi um poço sem fim de pura rabugice, era estranho vê-lo superprotetor desse jeito. Eduardo se sentou no banco à frente de Ana e disse em voz baixa:
— Você está chorando, Ana. É por causa do seu ombro? Imagino que esteja doendo muito… eu não quis te machucar…
“É difícil consolar alguém quando você precisa de consolo.”
Pensou a menina de 12 anos enquanto alisava o cabelo crespo encaracolado da irmã menor. Ela fungou, secou as lágrimas e balançou a cabeça de um lado para o outro:
— Eu já falei que estou bem. O que me preocupa é a mamãe. O que será que vão fazer com ela, Du?
— Eu não sei, mas peço aos Deuses para que a protejam — respondeu o irmão mais velho tristemente enquanto Priscila se encolhia mais ainda em seu colo. Ana Laura tocou o rosto da irmã suavemente.
— Vai ficar tudo bem, Pri. Logo estaremos juntos novamente com a mamãe em Karlópoles — disse gentilmente para irmã caçula e para si mesma, então se voltou novamente para Eduardo. — Faz ideia de para onde estamos indo, Du? —
— Essa ferrovia é usada no comércio entre o Arquipélago, a Federação e o Império Élfico. O trem deixa os grãos da Federação no porto das máquinas voadoras aqui, no Condado de Velho Vale. Depois volta com os produtos do Arquipélago, geralmente doces ou até mesmo marionetes exportadas; sendo a Cidade Áurea, capital do Império Élfico, a última estação. Pelo que sei, a próxima parada fica em Vila Amarela, onde Rebeca de Barros, a Protetora do Oeste e uma das ninfas, filha da rainha Adriane de Barros, está. Não sei o que vão fazer conosco, Ana, mas sei que nessa direção também está o Asilo dos Mortos.
A menção a esse lugar agourento fez a pele de Ana Laura se arrepiar. Serem levados para o lugar onde os mortos descansam por um bando de mortos-vivos era um pensamento assustador.
A Federação dos Condados Unidos de Neverly é uma monarquia absolutista governada pela Deusa Adriane de Barros. Filha da Deusa da Magia Karla com o Artesão, o Deus da criação. Ela é a deidade criadora da natureza, mãe das ninfas, da Rainha Dragão Cerise, do Deus dos Mares e da pequena Deusa da água Elise. Adriane nomeou sua filha, Érica, como primeira-ministra da Federação quando a ninfa tinha 116 anos de idade para que ela controlasse o —na época recém-criado — parlamento da Federação. E nomeou Rebeca como Protetora do Oeste, quando a semideusa das folhas e raízes fez 500 anos de idade.
— Vocês dois deveriam falar mais baixo, dá pra ouvi-los de longe! — sussurrou William e depois se sentou ao lado de Eduardo.
— O que foi agora, Will? Eu não tenho ânimo para suportar o seu mau-humor! — retrucou Eduardo.
As pessoas no vagão fitavam-nos com olhos desiguais. A pele deles era de um pálido acinzentado, o que fazia Ana acreditar que todos naquele lugar eram mortos revividos com necromancia, assim como o comandante Richard.
— A essa altura, todos já devem estar sabendo o que aconteceu no Arquipélago… — continuou William em voz baixa.
Já havia se passado três dias desde o ataque ao Arquipélago de Lima, nos quais eles foram mantidos reféns na estação de trem sem ter nada para comer. O máximo que tinham era acesso ao banheiro, então podiam beber a água da torneira. Durante o tempo em que estiveram na estação, ninguém disse uma palavra sequer para eles. Mas em momento algum estiveram sozinhos.
— Acha que vão nos resgatar? —questionou Eduardo esperançoso para William.
— Se os Deuses forem bons. Mas eu não quero torcer por um milagre. E se a gente tentasse pular do trem?
— Com ele em movimento? Pra alguém que se acha tão inteligente, você é bem burro, Will!
— Não briguem, meninos… — suplicou Ana Laura e uma pontada de dor irrompeu de seu ombro ferido. Os irmãos perceberam por causa de sua expressão amargurada, mas Ana voltou a dizer que estava bem. William bufou, então continuou:
— Quanto mais longe irmos, pior vai ser. A gente pula do trem quando ninguém estiver olhando. Se seguirmos o Rio Serpente, chegaremos à Vila Amarela ou à Capital Barroca. Se entregarmos os brincos da Ana para um barqueiro, ele nos levará para onde quisermos com um sorriso de orelha a orelha!
Eduardo segurou o próprio queixo pensativamente, então disse após alguns segundos:
— Você está certo em uma coisa, Will, nós temos que dar um jeito de fugir. Mas esse seu plano não passa de um delírio impossível. Devemos chegar em Vila Amarela ao anoitecer. O trem vai parar na estação para que novos passageiros possam entrar, daí a gente sai correndo e pede ajuda a um guarda.
Olhando ao seu redor, Ana via que dificilmente haveria um momento em que eles não estivessem sendo observados. Ela sabia que só um milagre os salvaria. Por isso, Ana fez uma prece aos Deuses, depois questionou a si mesma em pensamento se algum deles lhe ouviria.
Richard se aproximou deles cambaleando, depois questionou o que tanto cochichavam com uma voz rouca e todos disseram “nada” em uníssono. Priscila se sentou no banco rapidamente, olhando-o de baixo para cima e secou as lágrimas. O hálito do comandante era tão horrível que fez Ana tampar o nariz. Olhar as moscas o acompanhando e aquele monte de larvas fervilhando no buraco em sua cabeça fez com que Ana imaginasse esses vermes devorando o seu ombro ferido. A menina se encolheu toda e desviou o olhar para a floresta, que passava em alta velocidade através da janela, até que de repente o comandante pegou Ana pelo braço e a puxou em direção a outro vagão. William pulou em cima dele, praguejando, puxou um pedaço de espelho quebrado do bolço e o enterrou no pescoço de Richard, mas sem demonstrar dor alguma, o comandante ergueu o irmão facilmente e o arremessou longe. Quando Will tentou se levantar, as pessoas no vagão o prenderam no chão.
— Espera! — gritou Eduardo desesperado. — Ela está ferida. Se você quer interrogar alguém, eu vou no lugar da minha irmã. Faço tudo o que mandarem!
Richard inclinou a cabeça, semicerrou os olhos, como se estivesse tentando pensar, enquanto algumas larvas caíam do buraco de sua têmpora. Ele soltou Ana em um movimento repentino e levou o irmão mais velho em seu lugar.
As bandagens improvisadas já não continham mais o sangramento. Ana já não conseguia fingir que estava bem e sentia as lágrimas quentes escorrendo pelas bochechas. Priscila voltou a chorar, e Will tampouco sabia o que fazer. O irmão andava de um lado para o outro repetindo:
— O que eu faço? O que eu faço? O que eu faço?!
De repente, Will revelou uma garrafinha de água que devia ter enchido no banheiro da estação. Ele lavou o ferimento de Ana como pôde, deixando apenas um pouquinho de água na garrafa.
— Beba, Ana, vai te fazer bem.
Quando a garota pegou a garrafa, percebeu que a mão do irmão também fora cortada com o vidro. Ela bebeu um gole d’água, deixando o resto para Priscila.
— * —
Quando Eduardo por fim retornou, se sentou à frente de Ana e ficou em silêncio com um olhar vago. Ela, Will e Priscila quiseram saber o que aconteceu, mas o irmão mais velho disse que estava tudo bem e continuou em silêncio. Ana Laura suspirou, então disse finalmente:
— Obrigada, a vocês dois.
— Obrigado pelo quê, Ana? — questionou Will sem entender.
— Obrigada por me proteger, garoto tonto! Vocês dois foram muito gentis. — Will esboçou um sorriso tímido, enquanto Eduardo continuou em silêncio. Já Priscilla sorriu devido à pequena discussão dos irmãos, o que fez Ana sentir algum alívio em seu coração.
— * —
A noite caiu gélida e desesperançosa para todos. O trem passou rápido pelo túnel, e a penumbra foi invadida pela luz do luar. Do alto do planalto era possível ver o Rio Serpente entrando em Vila Amarela, depois, seguindo seu curso rumo à Capital Barroca. William havia se sentado ao lado de Ana, mas ela nem havia percebido em que momento descansou a cabeça sobre o ombro do irmão dois anos mais velho. Eduardo continuava em silêncio e Priscila parecia sonolenta, novamente com a cabeça em seu colo. A irmã caçula era a única confortável com aquele frio intenso.
William suspirou, então disse muito sério:
— Nós temos que pular do trem, é a única esperança que temos!
Ana balançou a cabeça de um lado para o outro, desesperançosa.
— Como vamos fazer isso, Will? Todos são mortos-vivos, não vão nos deixar fugir! O Eduardo está certo! Assim que chegarmos à estação de Vila Amarela, as portas vão se abrir para que novos passageiros possam entrar, e daí a gente sai correndo atrás de ajuda! Isso é o mais sensato a se fazer! — Ana queria que o irmão mais velho concordasse com o que ela disse, mas o olhar de Eduardo parecia sem vida e sua voz soou sem um pingo de emoção:
— Não devemos fazer isso. Vamos ficar quietos até chegarmos em nosso destino.
O coração de Ana afundou no peito ao ouvir essas palavras e Will perdeu a cabeça. Ele segurou o irmão pela gola da camisa e vociferou:
— Ficar quietos e irmos como coelhinhos pro abatedouro? É isso o que você propõe, idiota?
— Não briguem, meninos! —suplicou Ana Laura, aprumando-se em seu lugar, surpresa pela completa falta de reação de Eduardo. Ela insistiu que, quando chegassem à estação de Vila Amarela, eles deveriam correr até um segurança, assim que as portas se abrissem, e pedir por ajuda. Até que, mais uma vez, uma pontada de dor irrompeu do seu ombro ferido. Mas quando Will questionou, preocupado, se ela estava bem, a menina olhou para a ferida na mão do irmão e ele escondeu o braço atrás do corpo rapidamente.
— * —
Ana Laura alisou o cabelo crespo-encaracolado da irmã caçula, questionou se ela queria ouvir a história de como o Deus Dragão criou a sua própria Runa Primordial, mesmo que sua mãe, Helena, já houvesse contado essa história para ela e os irmãos várias vezes antes de dormir. Priscila bocejou, acomodou melhor a cabeça no colo de Ana e disse que sim.
— Em uma tarde, o Deus Dragão, ainda muito jovem e pequeno, estava caçando. Quando, ao dar um rasante para pegar sua presa, ele percebeu sua respiração ofegante se transformar em algo quente e luminoso. O mundo antigo era cinzento, não havendo luz, tampouco escuridão. No entanto, por um instante, esse mundo sem brilho ganhou cor. Não demorou para que o pequeno dragão aprendesse a cuspir fogo. Ele então voou até sua mãe, empolgado, para lhe mostrar o que aprendeu a fazer sozinho. E ao exibir o fogo para a Deusa Ayla, o jovem dragão descobriu que os olhos de sua mãe não eram cinzentos, mas sim cor de rosa. Que seu cabelo longo e solto era, na verdade, formado por fios de prata, que sua pele era alva e que suas asas eram douradas e translúcidas.
A Deusa do Céu estava maravilhada. Ela batia palmas a cada rajada de fogo, depois pedia ao seu filho para iluminar o mundo uma outra, outra e outra vez. Incentivado por sua mãe, o Deus Dragão levantou voo e logo ultrapassou as nuvens. Alcançou o limiar que separa esse mundo do vazio absoluto e o ultrapassou também. Chegando em um lugar gélido, muito além de Neverly, onde há tudo e, ao mesmo tempo, não há nada. Lá, o Deus Dragão não conseguia respirar. Mesmo assim, ele tentou criar a maior e mais poderosa bola de fogo possível, mas por algum motivo o fogo não saiu de sua boca ou de suas narinas.
O Deus Dragão se percebeu fraco e prestes a perder a consciência, mas ainda determinado a iluminar o mundo para sua mãe, ele usou todo o seu poder mágico para criar a Runa Mágica Primordial da Luz e do Calor, então caiu de volta em Neverly inconsciente. Mas quando estava prestes a se estatelar contra o chão, a Deusa Ayla o pegou no colo.
Quando o jovem e pequeníssimo Dragão despertou, o mundo já não era mais cinzento e ele estava nos braços afetuosos de sua mãe, que chorava enquanto o abraçava.
Ana percebeu sua voz bem fraca no fim de sua história e Priscila já havia adormecido com a cabeça repousada em seu colo. Sua visão estava meio turva, ela estava faminta e febril. Ana Laura não sabia distinguir se estava apenas sonolenta ou à beira de um desmaio. Tinha medo do que poderia acontecer se perdesse a consciência. Por isso, a menina de 12 anos se esforçava para permanecer acordada. William havia pedido algo de comer a Richard, mas o comandante continuou encarando-os em silêncio.
A ponte que cruzava o Rio Serpente foi deixada para trás. Os campos de girassol — que são o motivo deste lugar se chamar Vila Amarela — pareciam um mar infinito nas janelas de ambos os lados do vagão. E à medida em que o trem se aproximava da estação, Will ia ficando inquieto. Ana acordou Priscila, segurou firme em sua mão e estava pronta para sair correndo assim que as portas se abrissem. No entanto, o trem não parou, e a pequena esperança que tinham se dissipou. Frustrado, William socou a parede de madeira do vagão em que estavam.
— Maldição! Se esse trem desgraçado não parou, então, até mesmo o maquinista deve ser um morto-vivo! É como eu pensei… Nós temos que pular do trem, mesmo com ele em movimento, se quisermos escapar! —disse William, rangendo os dentes e com lágrimas nos olhos. Eduardo continuou com uma voz calma e um olhar vago:
— Não tem por que fugir. Vamos apenas esperar.
A forma tranquila com que Eduardo falava irritou Will, por isso Ana pediu ao irmão que se acalmasse. Mas ela começava a questionar o que fora feito com o seu irmão mais velho para que ele ficasse tão estranho daquele jeito. Pensando bem, Eduardo era o único que não havia movido um músculo sequer quando o trem estava se aproximando da estação de Vila Amarela.
De repente, Ana Laura viu pela janela do vagão que vinhas e raízes surgiram ao redor do trem em movimento. O Trem diminuiu a velocidade bruscamente e então parou. As raízes arrancaram a parede do vagão. Goblins surgiram apontando armas e mandando todo mundo ficar quieto. Eles deviam ter aproximadamente o mesmo tamanho de Ana. Tinham pele verde, orelhas enormes e arqueadas, nariz de batata e voz esganiçada. Um homem de pele acinzentada puxou uma pistola do paletó e foi alvejado em sequência por um goblin. Seu sangue era coagulado, escuro e malcheiroso. E mesmo depois de cair, ele não demonstrou dor alguma e já estava se levantando todo troncho. Will abraçou Ana e Priscila, então se jogou no chão. Tudo aconteceu rápido demais, de repente o mundo começou a girar ao redor de Ana Laura.
Bastou vê-la sentada sobre o galho de uma árvore, fumando o seu cigarro, para saber que os Deuses ouviram a sua prece. Aquela era a semideusa das Folhas e Raízes, Rebeca de Barros. A ninfa tinha pele esverdeada, suas sardas eram azuladas, ela possuía grandes e redondos olhos cor de âmbar. Havia vários brincos de ouro em formato de argolas em suas orelhas grandes e pontudas. Seu cabelo curto era formado por folhas verdes e amarelas ao invés de fios. Seus enormes chifres afiados tinham forma de espirais. A ninfa vestia um fino e curto vestido amarelo com um decote generoso, meia calça e botas. Ela era uma mulher esguia de aparência jovial, com 1 metro e 60 centímetros de altura. Em seu pescoço pendia um colar com um lápis-lazúli em forma de obelisco.
Enquanto perdia a consciência, Ana Laura sentiu as raízes da ninfa lhe envolvendo de forma gentil.