Parte 2
As nuvens rosa-alaranjado pairavam na linha do horizonte, com um vento quente e forte soprando do Oeste, fazendo com que a ponte de madeira e corda trançada balançasse assustadoramente. Helena agarrava-se com força ao guarda-corpo. A rainha das fadas Ariadna de Lima, que voava ao seu lado a alguns centímetros da ponte, disse que não havia nada com o que se preocupar, porque a ponte de madeira e corda trançada era extremamente segura. Ariadna estava certa, o guarda-corpo era mais alto do que Helena e não havia como cair sem se esforçar bastante para isso. Mas olhar para o abismo entre nuvens que terminava no mar a fazia perder as forças nas pernas e deixava suas mãos trêmulas e suadas. Ana Laura, uma menina de pele morena, olhos cor de mel e que possuía longos cabelos castanhos, tomou sua mão na tentativa de dar-lhe algum conforto. Os papéis estavam invertidos e Helena sabia disso muito bem. Era ela quem deveria dar conforto e proteção à sua filha de 12 anos, não o contrário. Mas esse gesto singelo e gracioso da filha lhe fez abrir um largo sorriso e lhe ajudou a continuar com a travessia. Já Priscila, sua filha caçula de 10 anos, que possuía pele cor de ébano assim como o pai, olhos castanhos e cabelo crespo encaracolado, passava a cabeça pelas cordas do guarda-corpo a fim de ver melhor o abismo entre nuvens e achava aquela altura descomunal algo superdivertido. Uma rajada de vento repentina fez com que os óculos redondos de Priscila caíssem em direção às nuvens, mas a princesa albina Rosália de Lima mergulhou em direção a eles, pegando-os facilmente. Quando a fada devolveu os óculos para Priscila, a menina deu pulinhos de empolgação e pediu à princesa albina que voasse com ela pelo resto da travessia. Rosália questionou a Helena se podia fazer o que sua filha lhe pedia apenas com um olhar, e quando ela fez que sim, a fada pegou Priscila no colo e elas se afastaram lentamente da ponte suspensa.
— Você quer que eu peça à princesa das fadas para voar com você depois, Ana? — questionou Helena. A filha de 12 anos segurou sua mão com força e balançou a cabeça de um lado para o outro ferozmente.
— Eu não! Também tenho medo de altura, mamãe!
William havia se distanciado o máximo possível na frente, já Eduardo, seu filho mais velho de 16 anos, chamou a atenção de todos para o lugar que acabaram de deixar.
Da Ilha Proibida caía uma coluna de água sobre Enseada. Dessa, uma cachoeira enviava uma torrente para Prata; a quarta ilha. E assim seguia até Mirante, a menor das 7 ilhas flutuantes, estando abaixo de todas as outras. As fadas que viviam em outras ilhas se deixavam cair ao chegar na borda da ilha em que estavam, então voavam em direção a Mirante, fazendo com que as ilhas flutuantes se tornassem enormes cascatas de fadas. Também havia uma grande quantidade de estrangeiros acompanhando a procissão. Estes, assim como Helena e seus filhos, cruzavam a ponte de madeira e corda trançada em direção à Estação 3 de Enseada, onde pegariam um trem a vapor que desceria até Mirante. Além das sete ilhas principais, também havia várias rochas menores orbitando as Asas de Ouro, e era em uma dessas que estava a Estação 3.
Até mesmo William, sempre mal-humorado, ficou impressionado ao ver que abaixo de Enseada havia uma cidade de ponta cabeça, com uma miríade de pontes presas às rochas, servindo como ruas, estradas, becos e vielas. Próximo às ilhas, havia vários dirigíveis que serviam como moradia para as fadas, como meio de transporte de produtos e matéria-prima de uma ilha à outra, como uma extensão de propriedade estacionária no ar ou ponto de comércio. Com os cilindros de gás não inflamável importados de Karlópoles sendo um ativo muito importante da economia local.
Helena se sentiu aliviada quando chegou à Estação 3 e teve rocha firme debaixo dos seus pés novamente. Priscila e Ana Laura pediram por um bonito bolo de cenoura com calda de chocolate que viram na lojinha da estação, e quando Helena foi comprar o bolo para elas viu o comandante Richard ser levado por uma mulher encapuzada.
“Ela não parece ser uma fada.” Pensou Helena, mas não disse nada.
Após comer, eles entraram em um vagão reservado para Helena, seus filhos e seus guardas. Richard entrou por último e se sentou nos fundos do vagão, sem falar nada com ninguém. O trem a vapor logo partiu pela ponte fixada nas pequenas rochas flutuantes que havia pelo caminho, e quando passaram pela estação da Ilha de Prata, Helena viu em uma rocha flutuante que orbitava próximo à Ilha a estátua de uma menina harpia com seus dois pares de asas emplumadas bem abertas. Apesar de aquela princesa aparentar ter aproximadamente cinco anos, quando a Deusa Ayla de Lima mandou esculpir essa estátua de sua filha caçula, ela já tinha 15 anos de idade. Na placa de bronze aos pés da estátua estava escrito em élfico antigo:
“Deusa Gentil Larissa de Lima, deidade capaz de cativar o coração de todos.”
Naquela época, Larissa de Lima ainda não havia se autoproclamado como Guardiã dos Mortos.
Os dirigíveis formavam uma enorme arquibancada para a infinidade de fadas que chegavam. Sendo que, após desembarcarem na estação de Mirante, Helena acompanhou a rainha Ariadna até o seu camarote em um desses dirigíveis, onde encontraram o Primeiro-ministro do reino das fadas, Lucas de Sousa, que transbordava de orgulho, pois seu filho, Luiz Henrique de Sousa, teria um papel importante na apresentação que estava por vir. Daquele lugar dava para ver as Asas de Ouro no centro do Arquipélago. Com os seis anéis rúnicos cor de ouro ao seu redor. Essa era a Runa Mágica Primordial do Tempo criada pela Deusa do Céu, que controla as estações e o clima em toda Neverly.
Na ilha de Mirante, lá embaixo, havia fadas, elfos e todo tipo de semi-humano. E na borda da pequena ilha estava a estátua da Deusa Ayla de joelhos, usando seu sabre para cortar as próprias asas. Em uma placa de bronze, à frente da estátua, estava escrito em élfico o encantamento que Ayla de Lima usou para elevar o Arquipélago de Lima ao céu.
“Mais áureo do que o ouro. Brilhante como um pequeno sol. Em troca da minha vida e da minha alma, eu tomo o céu!”
A bandeira verde e dourado, com sete asas no centro dispostas da mesma forma que as ilhas flutuantes, tremulava em todo lugar. Havia música, comida, bebidas, casais dançando alegremente, muitos usando fantasias tradicionais do evento. Helena usava um vestido vermelho e roxo longo com um generoso decote que deixava suas costas nuas e uma perna à mostra. Brincos de ouro e o colar com o diamante em forma de lua minguante. Ana Laura escolheu um vestido cor de rosa e um chapéu rosa com laço, que combinava com os seus óculos também cor de rosa. Priscila usava um vestido de cetim azul e uma tiara de prata. William, um elegante terno azul-escuro com um chapéu coco. Enquanto Eduardo preferiu o smoking com gravata borboleta.
Após o rei fada fazer o seu tradicional discurso em comemoração aos 1130 anos desde que o Arquipélago de Lima foi elevado ao céu, sua filha única, a princesa albina Rosália de Lima, tocou sua harpa e começou uma canção. Sua voz, amplificada pelo microfone de lapela, era doce como a de um rouxinol. Sua pele era alva, seus olhos eram cor de rosa, ela possuía longos cachos loiro-prateados trançados e ornados com fios de ouro branco. Seus lábios eram finos e rosados. Ela usava um diadema de prata decorado com jades, brincos de jade e braceletes com flores também de jade. Suas luvas brancas deixavam os dedos expostos e iam até o fim do antebraço. A princesa albina vestia um lindo vestido branco perolado, meias brancas longas e um salto pequeno.
Em dado momento da apresentação, a orquestra em harmonia continuou a melodia sozinha, pois o noivo da princesa havia tomado a sua mão e o baile celeste se iniciou. Helena conhecia muito bem a tradição das Fadas, na qual o consorte prometido era apresentado ao povo fada durante o grande festival, mas ver isso pessoalmente era gratificante demais: Rosália de Lima girava graciosamente com as mãos dadas a Luiz, depois se deixou cair suavemente em seus braços, então ambos bateram as asas, ganhando altitude e girando um ao redor do outro no céu. Ana Laura, Priscila e Eduardo apreciavam a apresentação o mais próximo possível, segurando-se no parapeito do dirigível arquibancada. Mas William chamou a atenção da mãe para o alto e perguntou intrigado:
— É normal esses bichos esquisitos estarem agitados desse jeito?!
Até então, Helena não havia percebido, mas os Wyvern pareciam irrequietos no céu. O primeiro-ministro Lucas, até então absorto pela apresentação do filho e da princesa, segurou no ombro do garoto e disse gentilmente:
— Fique tranquilo, jovem príncipe William. As Serpentes Voadoras podem ser assustadoras, mas elas não farão mal a… nós… — O primeiro-ministro sequer havia terminado de falar quando o dragão vermelho apodrecido rasgou o céu, agarrou as Asas de Ouro e a Runa Mágica Primordial do tempo, depois tentou puxá-las do lugar.
Por um momento, todo o Arquipélago de Lima tremeu, até que uma nuvem de Wyvern caiu sobre a criatura, cuspindo ácido, mordendo e dando ferroadas. O Dragão Morto-Vivo se chocou contra Mirante, fazendo um grande estrondo. As pessoas se afastaram, a orquestra cessou sua melodia, a princesa albina e seu noivo aterrissaram entre seus guardas e marionetes em Mirante. Havia uma profusão de pessoas em pânico questionando o que tinha acabado de acontecer. O Dragão Apodrecido era de um vermelho arroxeado, estava inchado e coberto por vermes. O sangue em suas feridas era um coágulo negro, seu maxilar estava quebrado e lhe faltava um olho, havendo marcas de um combate feroz por todo o seu corpo. O cheiro de carniça era tão forte que o estômago de Helena se revirou.
De repente, as costas do Dragão Apodrecido se abriram, então o Lich saiu de dentro dele coberto por um manto púrpura de magia corrompida.
“Ele está aqui! O Lich realmente se libertou de seu cárcere e está aqui, no Arquipélago de Lima! Ó, Artesão, tenha piedade de nós, suas frágeis e humildes criações…”
Enquanto o medo e a aflição queimavam no peito de Helena, O Lorde Morto-Vivo olhava para as Asas de Ouro e para a Runa Primordial Cor de Ouro ainda em seu lugar original, pelo que pareceu ser uma eternidade. As marionetes voaram até ele e o perfuraram com suas lâminas. Se a criatura com mais de 3 metros de altura, quatro braços; sendo um deles apenas osso. Com pele apenas na parte esquerda do crânio e com enormes e robustos chifres em forma de espiral, se sentiu alguma dor, ele não demonstrou. As lâminas das marionetes enferrujaram, a madeira apodreceu e se desfez, os cabos de aço que formavam suas articulações se rebentaram ruidosamente.
O Lich abriu uma bocarra. Seu maxilar e o lado direito do seu rosto eram totalmente descarnados. Seus olhos eram um abismo escuro com uma chama púrpura no final. Ele deixou escapar uma nuvem negra e púrpura de miasma que se espalhou rapidamente por toda Mirante, alcançando os turistas e algumas fadas que não conseguiram voar para longe rápido o suficiente. De repente, o comandante Richard abriu caminho pela multidão até Helena e a chamou para o seu dirigível, que estava no hangar aguardando para quando eles fossem embora no fim do evento.
A comemoração das fadas havia se transformado em uma profusão de gritos e disparos. Eduardo, Priscila e Ana Laura pareciam abismados pelo que acontecia lá embaixo, sendo tirados do parapeito pelos guardas de Helena. As marionetes os carregaram voando às pressas até o outro dirigível.
Enquanto se afastavam de Mirante em segurança dentro de seu dirigível, Helena viu pela janela redonda os Wyvern mergulhando mais uma vez contra o Lich cuspindo ácido, mas os que se aproximaram demais da nuvem de miasma caíram como moscas. De repente Helena ouviu o som de disparos ao seu lado. Seus ouvidos zuniram e, antes que ela pudesse entender o que tinha acabado de acontecer, três marionetes estavam entre ela, seus filhos e os homens armados. Por algum motivo, seus guardas haviam matado uns aos outros. Helena sentiu um forte frio no estômago quando percebeu uma arma apontada em sua direção, mas outra fada de madeira voou até o assassino e abriu sua garganta com uma lâmina. Então, o comandante Richard pegou Ana Laura como refém de repente.
– Paradas! – ordenou ele. As fadas de madeira pareciam não saber o que fazer e o coração de Helena se afundou em seu peito.
– Richard, por quê?! Eu confiava em você! –esbravejou a princesa de Karlópoles indignada. Richard levou a mão que segurava a arma até a própria cabeça, então balbuciou.
— V-você confiava em mim…? M-mas quem é você…? Q-quem é Richard? Esse sou… s-ou… sou… sou… e-eu…?
O disparo da marionete acertou na cabeça de Richard, que cambaleou, mas ao invés de cair, segurou a menina com força e disparou contra o seu ombro, depois ordenou a Helena para que desativasse as fadas de madeira.
– Seus serviços são desnecessários – disse Helena, olhando de forma incrédula para o buraco na têmpora de Richard. Os olhos das fadas de madeira perderam o brilho azul e elas caíram de joelhos; podendo-se ouvir o estalar da madeira e metal de seus joelhos batendo contra a madeira do chão do dirigível. Aquele que foi abatido pelas marionetes se levantou, caminhou até os guardas de Helena que foram assassinados, desenhou no ar algo que lembrava a Runa Mágica Primordial da Vida e eles reviveram.
— Isso é necromancia!? —arfou Helena para si mesma horrorizada.