Eu ainda consigo ver.
Fecho os olhos e volto naquele dia, e nada desaparece.
Sundara foi a primeira. Eu me lembro do calor. Não era o calor comum do deserto, aquele que faz a pele queimar devagar. Era diferente. Mais pesado. O ar cheirava a pedra rachada, a couro queimado das barracas do mercado, a especiarias misturadas com pó. Eu tropeçava nos becos, e o chão parecia vibrar, como se a cidade inteira respirasse pela última vez.
Vi Niara na praça do oásis. Ela estava coberta de pó e sangue, puxando pessoas debaixo de pedras que antes eram paredes. O lago no centro já fervia, como se algo o tivesse contaminado por dentro. As árvores estavam retorcidas, secas de repente. E ela… ela não parava. Sempre mais uma criança, mais uma mão a segurar. Eu quis ajudá-la, mas os Kabûs vieram. Eles saíam do nada...das sombras das arcadas, do próprio chão. Sombras com dentes, olhos onde não deviam existir. Não havia tempo para contar quantos eram.
Depois, Zephyria.A cidade suspensa.
Eu me lembro do som das passarelas estalando antes de cair no desfiladeiro. Borko estava na ponte central, sozinho. Defendia o último caminho para os bairros flutuantes. O vento, que sempre foi nosso aliado, estava diferente. Uivava como se chorasse. Carregava vidro quebrado, areia, estilhaços de madeira.
Eu vi quando uma das torres caiu. Vi também quando ele segurou uma criança e a lançou para um lugar seguro. E depois… nada. Só a ponte cedendo, o vidro se partindo, o corpo desaparecendo na correnteza de vento e poeira.
Não havia corpos. Nem de Niara, nem de Borko. Só rastros.
Na areia de Sundara, garras fundas marcavam o chão, sulcos que pareciam não ter fim. No vidro de Zephyria, rachaduras em forma de relâmpago. E pedaços dos Kabûs espalhados: braços, rostos incompletos, bocas que ainda se mexiam mesmo sem corpo. Alguns se desfaziam quando eu chegava perto, outros simplesmente ficavam ali, se contorcendo até sumir.
Andei pelas ruas em silêncio. As fontes estavam secas, a água transformada em lama escura. As torres eólicas caídas formavam cruzes no chão. Em cada canto havia sinais da contenção: pedras fundidas em vidro, símbolos queimados, fissuras que ainda brilhavam fraco, como se guardassem restos da batalha.
Mas, o pior não foi o que eu vi. Foi o que senti.
O Devorador ainda estava ali, mesmo preso em Irkalla. Seu poder vazava pelas brechas, encharcava o ar, grudava na pele. Era como andar dentro de um pesadelo sem conseguir acordar. Não importava quão longe eu fosse, a sensação não desaparecia.
Sundara e Zephyria não eram apenas cidades. Eram parte de nós. E agora eram só ruínas.
Eu tentei respirar fundo, mas o ar estava pesado demais. O gosto era de cinza. A garganta ardia. A cada passo, lembrava dos mercados cheios, dos jardins suspensos, do som das crianças correndo entre as fontes. Agora só havia silêncio.
Não encontrei Niara. Nem Borko. Só os lugares onde estiveram, só as marcas da luta. E eu fiquei com a sensação estranha de que eles ainda estavam ali, não em corpo, mas gravados nas pedras que defenderam até o último instante.
Voltei sozinha.
E aprendi que sobreviver não é alívio. É carregar tudo isso dentro de mim, todos os dias.
Ekhaya nunca será a mesma. Nem eu.
Liora - Guardiã de Meru