Há histórias que não pertencem apenas aos homens, mas aos mundos que eles moldaram. Recolho aqui uma memória antiga, quase perdida, de como os reinos de Quimera e Tormenta vieram a existir, pois sinto que essas lembranças podem ser úteis aos que vierem depois de mim.
No início, quando os primeiros Andarilhos cruzaram as fronteiras de Ekhaya, o mundo era jovem e inconstante, ainda se ajustando às emanações dos sonhos humanos. Esses sonhos – feitos da essência mais pura da alma – começaram a se derramar sobre o nosso reino, criando uma tensão entre luz e sombra. Foi assim que surgiram Quimera e Tormenta, dois reinos que não são opostos, mas reflexos complementares da alma humana.
“Dos sonhos, ergueu-se a beleza e o caos.”
Quimera nasceu da esperança. Um momento raro na história da humanidade, quando o otimismo coletivo moldou um reino vibrante. Lembro-me de ouvir os relatos dos primeiros Andarilhos: vastas planícies douradas, castelos flutuantes construídos pelas aspirações mais grandiosas, florestas que cantavam em vozes de harmonia. Tudo lá parecia mutável, um reflexo direto da criatividade humana.
Mas a beleza de Quimera também é instável. Os Andarilhos aprenderam depressa que o reino não apenas reflete suas aspirações, mas também suas dúvidas. O desejo, mal compreendido, pode virar uma armadilha. Testemunhei viajantes ficarem presos em ciclos intermináveis de ilusões, incapazes de distinguir o real do imaginado. Um lugar de inspiração, sim, mas também de perigos sutis.
“Do medo, nasceu o abismo.”
Se Quimera é um sonho desperto, Tormenta é um grito sufocado no vazio. Lembro-me da primeira vez que ouvi falar dele. Um veterano regressou pálido e amedrontado, murmurando sobre florestas de sombras vivas e mares onde algo terrível espreitava. Tormenta nasceu do que há de mais sombrio no coração humano: os medos, os traumas, os horrores enterrados.
Os Devassos, entidades que habitam Tormenta, não são criaturas no sentido usual. Eles são pedaços de pesadelos que ganharam forma. Quem sucumbe a eles... não volta. Já vi muitos jovens Andarilhos desaparecem em Tormenta, atraídos por suas próprias fraquezas.
Dizem que Tormenta é estático, uma prisão onde o tempo parece congelado. Poucos se arriscam a entrar lá, exceto os mais corajosos ou os mais desesperados. E ainda assim, há histórias de almas sendo resgatadas desse abismo, como se a coragem pudesse romper as correntes do medo.
Quimera e Tormenta não podem ser separados. Como o dia não existe sem a noite, esses reinos são interdependentes. Quando um sonho perde seu brilho, ele cai em Tormenta; e quando um pesadelo é superado, sua energia pode ser reciclada para criar algo belo em Quimera.
Há uma lição nisso, talvez: os dois reinos refletem não apenas a humanidade, mas a jornada interna dos Andarilhos. Dominar Quimera significa aprender a discernir entre aspiração e ilusão. Dominar Tormenta exige coragem para enfrentar o que mais nos assusta.
Penso, às vezes, se o equilíbrio entre esses dois reinos não é também o equilíbrio dentro de cada um dos Andarilhos. Quimera nos lembra que os sonhos podem nos elevar, mas também nos perder. Tormenta nos ensina que o medo pode nos esmagar, mas também nos fortalecer.
Eu acredito que os reinos marginais não são o destino final. Eles são espelhos. E aquilo que você vê neles... é você mesmo.
Borko - Guardião de Kalahari e guia de almas perdidas