Roma, 1952. A luz da tarde penetrava pelas janelas arqueadas do Palazzo Farnese, banhando de dourado os fragmentos de mármore sobre a mesa de trabalho. Isabella Moretti, de cabelos presos num coque elegante e mãos enluvadas, examinava uma escultura danificada de Vênus, com o olhar vago e um braço quebrado.
A agitação da cidade era um zumbido distante; ali, o tempo parecia imóvel. Para Isabella, restaurar arte era mais que um ofício: era um refúgio. Longe de reuniões secretas e da decifração de códigos em manuscritos antigos, ela encontrava serenidade entre as ruínas. O aroma de pedra antiga, o som delicado das ferramentas e a quietude respeitosa dos corredores compunham um universo à parte, onde podia ser apenas uma restauradora, livre do fardo de ser espiã.
— Signorina Moretti? — soou uma voz masculina, grave, com um leve sotaque do norte.
Ela virou-se lentamente. Um homem alto, de terno cinza e olhos da cor de vinho tinto, estava à porta. Não fora anunciado, não usava crachá, mas parecia pertencer ao lugar como uma estátua esquecida.
— Posso ajudá-lo? — indagou Isabella, com profissionalismo.
— Lorenzo Bianchi. Sou historiador. O Ministério da Cultura enviou-me para rever os arquivos da escultura de Vênus. — Ele sorriu, mas o gesto era contido, incompatível com a burocracia.
O nome dele não constava em nenhuma lista da semana, e Isabella verificava tudo. Era parte do seu treino, da sua vida dupla.
— Curioso. Não fui notificada da sua visita — comentou, dirigindo-se à mesa de registros.
Lorenzo aproximou-se, contemplando os detalhes da escultura com reverência.
— Esta peça... dizem ter sido achada perto das ruínas de Óstia. Contudo, há rumores de que foi contrabandeada da Sicília nos anos 30. Acredita em boatos, Signorina?
— Apenas quando acompanhados de provas — retrucou Isabella, sem desviar os olhos.
A conversa prosseguiu, cheia de sutilezas e perguntas veladas. Lorenzo demonstrava saber mais do que revelava, e Isabella, perita em ler nas entrelinhas, notou que o seu interesse ultrapassava a arte.
Naquela noite, ao examinar os documentos, deparou-se com uma nota invulgar no verso de uma fotografia antiga da escultura: “L.B. – Arquivo [Número]. Não confiar.”
O coração dela disparou. Lorenzo Bianchi. Arquivo [Número]. Um processo arquivado pela agência, sobre tráfico de arte sacra e espionagem internacional.
Levantou-se e foi até à janela. O céu de Roma tingia-se de laranja, e as sombras das ruínas estendiam-se como dedos ancestrais a tocar o presente. Isabella compreendeu que nada era por acaso. Lorenzo ressurgira por uma razão, e ela tinha de a descobrir.
No dia seguinte, seguiu-o discretamente por Trastevere. Ele entrou numa livraria antiga, falou com um homem encapuzado e saiu com um envelope pardo. Ela registou tudo com a câmara oculta no seu broche.
De volta ao palácio, analisou as imagens. O envelope continha papéis com o selo do Vaticano e a assinatura do Cardeal M. Rinaldi, um nome que lhe era familiar de uma investigação sobre o desaparecimento de relíquias.
Na reunião da agência, apresentou as suas descobertas. O diretor, Signor Bellini, mostrou-se hesitante.
— Isabella, há forças superiores envolvidas. O Vaticano é um território complexo. E Lorenzo... não é um simples historiador. Já trabalhou conosco. E desapareceu.
— Então, por que voltou agora? — questionou ela.
— Talvez para impedir algo. Ou para encobrir.
Isabella recebeu uma nova tarefa: prosseguir com a restauração, mas vigiar Lorenzo. Devia conquistar a sua confiança, desvendar as suas intenções e, se preciso, neutralizá-lo.
Naquela noite, sonhou com colunas romanas a ruir e, no meio dos escombros, Lorenzo estendia-lhe a mão, mas os seus olhos estavam velados por sombras.
No dia seguinte, ele apareceu com um café e um sorriso.
— Pensei que apreciaria alguma companhia enquanto trabalha.
— A companhia pode ser útil. Ou perigosa — replicou Isabella, aceitando o café. Enquanto ele dissertava sobre arte e história, ela ouvia cada palavra como um código. Porque em Roma, até o silêncio guarda segredos.