Nisto, uma luminescência surgiu na tela. Louis achou que fosse algum peixe abissal, mas a luz tomou forma e tamanho.
Ele pousou o copo, boquiaberto.
Era o topo de uma redoma gigantesca que emergia do fundo oceânico e, através de seu aspecto leitoso, podia-se ver algumas silhuetas dentro dela.
Subitamente, algo passou na frente da câmera e a imagem apagou.
Louis ficou diante do monitor por quase cinco minutos, pasmo, com os olhos fixos no negror da tela como se esperasse que algo novamente surgisse, algo que validasse o que vira.
Mas teria visto mesmo? Não teria sido efeito do vinho?
Teve um estalo e correu os dedos pelo console, até os controles de gravação de imagens, mas os últimos registros eram as imagens captadas pouco antes da pane do robô.
Furioso e frustrado, esmurrou o painel. “Quem foi o idiota que desligou o sistema de gravação?”
Acalmou-se um pouco quando lembrou que fora ele quem ordenara ao assistente para encerrar as gravações, visto crer que não haveria mais nada digno de ser registrado pelo equipamento em sua erraticidade.
Amaldiçoou sua sorte. Que prova teria, agora, do que vira? Mas vira mesmo? Não teria sido uma ilusão?
Melhor esquecer aquilo e ir dormir. No dia seguinte, tudo seria apenas um sonho, uma visão causada pelo álcool.
Foi até sua cabine e se deitou na cama estreita. Tentou dormir, mas a imagem que vira não saía de sua mente.
Todos os seus pensamentos e suas divagações sobre o que vira só conduziam a um nome: Atlântida!
A suposta civilização era um assunto controverso no meio científico. Apesar de muitos a procurarem, oficialmente, era considerada uma lenda.
Pesquisas a respeito, que alegavam ter provas de sua existência, eram relegadas à categoria de fantasias, e aqueles que as propagavam eram taxados, no meio científico, de loucos.
Louis estaria disposto a arriscar sua fama e credibilidade por um assunto tão espinhoso? E que provas ele tinha?
Ora, ele havia visto! Que prova maior haveria que a palavra de um renomado cientista como ele? Não se tratava de fantasias de um ocultista amador! A imagem não lhe saia da mente: a cúpula leitosa, construções… Pirâmides! Agora sua mente trabalhava a imagem, definindo seus contornos.
Levou um susto quando percebeu que a imagem não estava mais em sua mente. Ele a via por seus olhos, projetada contra o teto escuro da cabine.
Havia seres vivos naquela redoma! Seres sapientes e evoluídos que, de alguma forma, haviam embutido aquela imagem em sua mente!
Eles queriam, desejavam ser descobertos! Queriam retornar do fundo do mar para conviver harmoniosamente com seus irmãos da superfície e ajudá-los em seu progresso!
Sim! E ele havia sido escolhido para ser o elo entre as duas culturas!
Louis não tinha mais dúvidas sobre o que precisava fazer.
Colocou-se de pé e foi acordar a tripulação.
A exposição do que vira a seus colegas sonolentos não causou empolgação, pelo contrário. Eles se entreolharam receosos, assustados com a retórica inflamada e sem sentido do cientista.
Louis percebeu a dúvida e a contrariedade em seus rostos. Internamente, ele sabia, o estavam tachando de louco!
Aquilo o irritou. Gritou com eles, dizendo que eles, sim, eram loucos em não acreditar. Será que não ouviam em suas mentes o chamado dos atlantes? Pois ele ouvia! Alto e claro, e iria ao encontro deles sozinho, se preciso fosse!
Dito isto, correu ao leme, acelerou os motores e girou violentamente o barco em direção ao mar aberto.
Os outros, aos tropeços devido ao balanço frenético da embarcação, conseguiram tirar um Louis ensandecido do leme e o trancaram em uma cabine aos gritos de “Eles estão esperando!”.
Agora, três anos depois, Louis contraía os lábios lembrando-se daquela fase.
O médico de bordo lhe aplicara um sedativo, o primeiro dos muitos que tomaria nos dias, semanas e meses seguintes.
Sedativos que lhe aplicavam sempre que passava o efeito do anterior e Louis retomava suas pregações sobre a Atlântida.
Pregações estas que sempre descambavam para a agressão quando ele percebia a incredulidade, ironia e até pena em seus interlocutores. E aí vinham os sedativos.
Mas, um dia, todos à sua volta se cansaram e não lhe davam mais sedativos e nem ouvidos.
Louis perdeu o emprego e o financiamento da universidade. Sua mulher o deixou e levou os filhos.
Mas ele não abandonou sua crença. Usou a internet para dizer o que tinha visto, daquilo que os atlantes lhe diziam em sonho, do desejo de serem contatados. Arranjou uma legião de seguidores virtuais, mas nenhuma ajuda para poder voltar a procurar por Atlântida.
Até que, um dia, bateram em sua porta.
Era um homem, um representante de um bilionário russo que soubera das ideias de Louis e, como um aficionado por lendas e histórias fantásticas, se propunha a financiá-lo em sua expedição, mas com a condição de que apenas ele fosse o beneficiário daquilo que Louis descobrisse.
O bilionário queria ser o primeiro ser humano a ter contato com os atlantes.
Louis aceitou a proposta, não muito certo das intenções altruístas de seu financiador, com quem nunca teve contato direto o que pouco o incomodou. O que importava ele teve: dinheiro e acesso a equipamentos de ponta — barcos, submarinos robôs —, e ainda pôde contratar ótimos profissionais da área.
E, nestes anos todos, Louis mantinha acesa a chama do interesse de seu benfeitor enviando-lhe fotos de ruínas submarinas que ele baixava da internet, bem como cacos de cerâmica de algum vaso que ele mesmo quebrava e deixava algum tempo mergulhado em água salgada.
Com isto, o homem ficava feliz em mostrar suas “raridades” a seus amigos ricos e deixava Louis trabalhar em paz.
Não que ele não tivesse localizado nada em suas pesquisas, muito pelo contrário. Fizera uma descoberta excepcional.
Descobrira, no fundo dos três oceanos, grandes estruturas em formato de cogumelo feitas em pedra.
A princípio achou que estas torres fossem formações naturais, mas a precisão de suas formas o levou a concluir haverem sido construídas.
Elas estavam ocultas nos sedimentos do fundo, ou cobertas por algas e corais, e até estas coberturas pareceram, para Louis, terem sido propositadamente colocadas ali para ocultar as estruturas, o que lhe reforçava cada vez mais a convicção de que eram obras dos atlantes.
Ele teve certeza quando seus robôs descobriram, incrustados na superfície das estruturas, cristais de várias formas e tamanhos. Em suas pesquisas sobre Atlântida, várias vezes havia encontrado referências ao uso de cristais por esse povo.
As torres se estendiam a distâncias regulares, sempre acompanhando a linha do equador. Louis tinha certeza de que elas se iniciavam, ou terminavam, na cidade que tinha visto anos antes.
Então, quando localizou as primeiras torres no Pacífico e viu que elas continuavam no Índico até a costa africana, pulou o lugar onde seria a sequência lógica das torres — a costa ocidental da África — e foi direto ao centro do Atlântico.
Por dois anos vasculhou a dorsal atlântica, mas nada descobriu, apenas mais torres. Chegou à conclusão de que elas contornavam o planeta como um cinturão. Com qual finalidade, ele desconhecia.
Por hora, havia abandonado a procura pela cidade e voltara a se concentrar no estudo das estruturas e de seus cristais. Resolveu mapeá-las todas para buscar, então, a solução daquele mistério.
Quando retornou à última torre que prospectara no Índico, para dali reiniciar os trabalhos, teve uma surpresa.
A estrutura, que antes estivera praticamente enterrada nos sedimentos do fundo, estava agora totalmente exposta. Retornou à penúltima torre e encontrou a mesma situação.
Um início de pânico tomou conta de Louis.
Ele mantinha a tripulação devidamente subornada para que este segredo não se espalhasse, mas, agora que estavam expostas, as torres podiam ser descobertas por outras pessoas.
Tudo bem que elas se encontravam, em sua grande maioria, em áreas muito profundas, algumas abissais, e somente alguém com equipamentos e métodos adequados poderia descobri-las, mas ele não podia correr o risco. Só ele tinha o direito de revelar Atlântida para o mundo!
Ele acelerou os trabalhos. Dirigiu-se ao Atlântico para continuar o mapeamento das torres e encontrou todas na mesma situação de exposição.
Em um início de noite, enquanto a tripulação se entretinha em suas cabines, Louis estava sozinho monitorando um submarino robô que analisava a abóbada curva de uma delas, examinando atenciosamente os cristais que agora se encontravam totalmente livres de resíduos e brilhavam leitosos sob a luz das lâmpadas do equipamento.
Tentava imaginar qual teria sido a técnica usada para lapidar aqueles cristais de forma tão perfeita quando algo chamou sua atenção.
Havia um brilho no interior do cristal. A princípio, pensou se tratar de um reflexo dos faróis, mas aquele brilho começou a aumentar.
No alcance de visão que a câmera proporcionava, Louis percebeu que os demais cristais da torre estavam aumentando também o seu brilho. Em breve, a luminosidade era tão forte que ofuscava os faróis do submarino.
O grande barco de pesquisas começou a se movimentar, mostrando que o mar estava se tornando revolto.
Subitamente, os equipamentos começaram a falhar.
A tela de monitoramento, em um primeiro momento, ficou completamente branca, tão intensa era a luz emitida pelos cristais, e depois se apagou por completo.
Um forte movimento lateral do barco jogou Louis de sua cadeira ao chão. Ao tentar levantar-se, um forte impacto jogou Louis ao encontro do teto da embarcação. Bateu a cabeça e caiu desmaiado.
Quando dolorosamente abriu os olhos, viu uma luminosidade amarela entrando pelas janelas estilhaçadas do barco.
Estava amanhecendo, então ele devia ter ficado desacordado por uma ou duas horas no máximo.
Tudo estava calmo, o barco nem sequer se mexia. Sentou-se, sentindo-se tonto.
Pensou em seus colegas que estavam nas cabines que ficavam no nível mais baixo do casco.
Engatinhando, se arrastou até a escada que dava acesso ao nível inferior, mas não a encontrou. Onde devia estar a abertura, havia um amontoado de metal amassado.
Louis demorou um pouco para perceber que aquilo que via era o casco do barco.
Algo atingira a embarcação por baixo, esmagando o casco contra o nível superior. Ele sentiu o estômago revirar ao pensar na morte horrível que as pessoas lá embaixo tiveram.
Recostou-se contra uma das paredes, segurando a cabeça entre as mãos. Foi quando algo chamou sua atenção, ou melhor, a falta de algo.
Por que o barco não se mexia? Onde estava o movimento causado pelo vai e vem das ondas?
Levantou-se, apoiando-se em um móvel semidestruído. Quando olhou por uma das janelas, não acreditou no que viu.
O barco não estava no mar, mas sim em terra firme, cercado por quilômetros e quilômetros de areia e pedras.
O que havia acontecido? Teriam sido pegos por um furacão e lançados em terra?
Foi até o lado de fora e, apoiando as mãos na amurada, olhou em volta. Percebeu que o solo estava úmido, com algumas poças de água.
Em uma destas poças, algo se moveu. Louis processou lentamente o que via, tentando convencer sua mente.
Era um peixe prateado que se debatia na pequena porção de água.
Outro movimento à direita chamou-lhe a atenção e ele viu um crustáceo saindo debaixo do barco. À esquerda, havia uma grande estrutura de pedra negra.
Louis pensou se tratar de um monte, mas quando viu seu formato de cogumelo, percebeu ser uma das torres que ele descobrira. Havia um objeto jogado aos pés da torre, que brilhava sob a luz do Sol nascente. Mesmo à distância, Louis percebeu que era o submarino robô.
Sentiu sua barriga se revirar novamente quando entendeu.
Eles não foram arremessados em terra. O fundo do oceano se elevara e neste processo, acertara em cheio o barco de pesquisas.
Uma sombra surgiu no céu e começou a se aproximar. Em um primeiro momento, ele acreditou ser um helicóptero de resgate. Quando o objeto estava mais próximo, percebeu que carregava algo na parte de baixo.
Louis não acreditava no que via.
Não era um helicóptero. Era uma espécie de nave retangular, com a frente afilada que flutuava sem hélices ou qualquer forma aparente de sustentação.
Trazia pendurada sob si uma espécie de rede e, dentro desta, estava uma gigantesca baleia-azul
O animal estava vivo, pois era possível ver pequenos movimentos de sua cauda, que ficava para fora da rede. Jatos de água caíam da nave. Com certeza para manter a baleia hidratada enquanto era transportada.
O cientista não se recuperara da surpresa quando um som que parecia de um aspirador atraiu seu olhar para um afloramento rochoso à direita.
Detrás dele saiu um grande veículo negro.
Na fuselagem lateral se via estampada a figura de uma ave de rapina. Ele se movimentava sem tocar o chão. Logo atrás dele, surgiu uma espécie de plataforma.
Louis prendeu a respiração quando viu que, dentro desta plataforma flutuante, estavam vários homens.
Os dois veículos pararam e os homens desembarcaram. Usavam uniformes beges e botas negras. Havia outros três que tinham uniformes cinzas, com aspecto militar. Sobre o uniforme havia uma espécie de couraça, e usavam capacetes negros com viseiras.
Os homens de bege imediatamente puxaram do veículo maior um tubo de grande diâmetro e começaram a aspirar poças de água como aquela que Louis vira próxima ao barco. Alguns se abaixavam e recolhiam crustáceos, estrelas do mar e qualquer outro animal que encontravam.
Analisavam rapidamente, provavelmente para ver se estavam vivos. Alguns eles colocavam no grande tubo, outros depositavam no lugar de onde haviam recolhido, pois, aparentemente, estavam mortos.
Louis sentiu seu coração bater forte. Em seu íntimo sabia quem eram aquelas pessoas.
Eram atlantes! E aquela terra onde estava era Atlântida que se elevara do mar!
Ele entendeu, então, a função das torres que encontrara. De alguma forma, foram elas que realizaram aquele feito.
Lembrou-se que, na noite anterior, Dreyfus, o oceanógrafo, havia comentado que cientistas estavam alarmados com um grande vazio ecológico que, no último mês, estava ocorrendo no Atlântico Central.
Baleias e outros mamíferos marinhos haviam fugido da região e até os cardumes e outros animais haviam se deslocado de seus habitats. Pesquisadores haviam detectado sons subsônicos que vinham de alguma fonte desconhecida e acreditavam ser isto que estava espantando os animais
Na hora, Louis não deu muita atenção para o que ouvira, mais preocupado que estava em analisar suas torres, mas agora entendia a baleia sendo transportada e aqueles homens buscando por pequenos animais.
Os atlantes deviam ter feito aquilo, espantado os animais da área de emersão e agora tentavam resgatar o máximo daqueles que não saíram a tempo. Eles eram seres ecológicos!
Tentavam, de todas as formas, minimizar o impacto daquela ação no meio ambiente! Que povo deviam ser!
A emoção tomou conta dele e lágrimas vieram a seus olhos.
Ele, Norman Louis Farrel, humilhado, vilipendiado, seria o primeiro a contatá-los, a servir de ponte entre a sua e aquela cultura avançada.
Lentamente, levantou o braço e acenou em direção aos homens que trabalhavam não muito longe.
Um deles, de uniforme bege, o viu e chamou a atenção de um dos homens de cinza. O homem, que em tudo aparentava ser um soldado, levou a mão a uma arma que trazia na cintura e que só agora Louis percebera.
O soldado olhou em sua direção por alguns instantes, depois levou a mão esquerda à lateral do capacete e Louis viu sua boca se mexendo, com certeza acionara algum comunicador.
Pouco mais de um minuto depois, uma mancha escura cortou o céu, zumbindo em alta velocidade.
Quando desacelerou, Louis viu se tratar de uma nave que lembrava um caça. Em formato triangular, tinha as asas muito próximas à fuselagem e um bico recurvado, como de uma águia.
O bólido se deteve pouco acima e diante do barco e desceu suavemente até ficar na linha dos olhos de Louis.
Ele notou que ela praticamente não fazia barulho, apenas um som de sopro. Ele não via o piloto, pois a cabine era coberta por um para-brisa escuro, mas havia uma ameaça implícita na postura da nave.
Do bico, em dois pontos distintos, duas pontas cilíndricas e cuneiformes surgiram e apontaram para ele. Louis tremeu, pois pareciam armas.
Viu com o canto dos olhos o soldado de cinza tocar novamente no capacete e dizer alguma coisa. A nave não se mexeu enquanto o soldado e um dos homens de bege vinham em direção ao barco.
Louis suspirou aliviado. Aquilo devia ser algum tipo de procedimento padrão de segurança e, agora sim, iriam lhe fazer uma recepção apropriada.
O soldado parou alguns metros antes do barco. Colocou a mão sobre a arma na cintura e fez um gesto para que o outro se aproximasse. O homem de bege veio de forma cautelosa, mas firme. Louis, vendo agora os atlantes de perto, ficou emocionado.
O soldado usava capacete com viseira, então não era possível ver-lhe o rosto, mas o homem que se aproximava tinha o rosto descoberto e Louis pode ver como eles eram, em tudo, semelhantes fisicamente aos habitantes da Terra.
“À nossa imagem e semelhança!” pensou, “Ou nós à deles?”.
Quando o homem chegou perto do barco, se abaixou sobre a poça de água que Louis vira antes e recolheu cuidadosamente o peixe que lá estava.
Enquanto se erguia, o homem olhou Louis diretamente nos olhos e este estremeceu. Não viu nenhuma curiosidade naqueles olhos, nenhuma compaixão. O que viu foi desprezo e um ódio frio e violento.
Louis deixou os braços caírem.
Só então pensou em seus colegas mortos e em quantas pessoas, em outros tantos barcos naquele oceano, morreram também.
E o soerguimento daquela imensa massa de terra? Louis sabia, como cientista, o que aquilo devia ter causado no planeta como um todo. Mas aqueles homens não estavam preocupados com isso. Estavam preocupados com um peixe, não com as pessoas.
O homem se afastou. Quando chegou perto do soldado, os dois viraram as costas para o barco e seguiram de onde vieram. Louis viu quando o homem de cinza levou a mão de novo ao capacete e soube que a ordem fora dada.
A nave se moveu, procurando o melhor ângulo.
Louis sentiu lágrimas quentes escorrerem por seu rosto.
Antes da luz intensa o engolir e arrastá-lo para a escuridão, sorriu, entre feliz e triste. Feliz por estar certo, por descobrir que Atlântida existia, e triste por estar enganado quanto às intenções deles.
Os atlantes não vieram em paz.