Daniel levantou-se em um pulo.
— Mentiroso! — atacou. — Como ficamos mil e quinhentos anos congelados se você disse que conhece meu pai?
Todos os olhos se voltaram para Kantor, suplicantes, pedindo que ele risse, dissesse que era tudo brincadeira e que depois da sopa poderiam voltar para casa.
Mas Kantor não estava ali para iludi-los.
— Eu conheci seu pai durante a invasão.
— E…. Então…. — Carlos gaguejou — Você tem mil e quinhentos anos?
— Mil quinhentos e vinte e oito, para ser mais exato — respondeu o velho.
Daniel balançava a cabeça.:
— Impossível! Você está louco, Kantor!
Pedro tocou o braço dele:
— Dan, a neblina?
— Neblina, que neblina? — A cabeça dele girava.
— Na caverna! — respondeu Cris.
Daniel se lembrou da neblina fria envolvendo tudo, congelando a caverna, seus corpos, e depois… um nada, um vazio. Sonhos imprecisos, e o despertar naquele mundo louco.
— Não! — Seu olhar desesperado cruzou com o de Kantor.
— Sim, Daniel, infelizmente sim. E você sabe que é a verdade.
Daniel se sentou com a cabeça entre as mãos.
Sim. Era verdade.
Desde que saiu daquela maldita caverna, ele sabia que seu mundo acabara.
Lutou contra aquela ideia, contra o sentimento de perda que se apossara de sua alma.
Convencera-se de que tudo não passava de ilusão, de que havia uma razão lógica para não encontrarem nenhum vestígio de civilização humana. Que a qualquer momento o mundo voltaria a fazer sentido.
Lembrou-se de onde conhecia Kantor.
Enquanto procurava pela garota de olhos verdes, ele estava sempre lá, como uma sombra a segui-lo, sussurrando a verdade em seus ouvidos.
Daniel levantou os olhos vermelhos:
— Você não está louco, Kantor, mas acho que eu ficarei.
Diante da capitulação de Daniel, os outros aceitaram o fato. Um grito de Cris os assustou.
Ela agarrou-se a Daniel, chorando de encontro ao peito dele.
Ele a afastou com carinho e segurou seu rosto molhado de lágrimas entre as mãos:
— O que foi, Cris? O que aconteceu?
— Ah, Dan, nossas famílias…
Ela não precisou dizer mais. Todos entenderam.
Seus pais, irmãos, suas famílias e amigos, todos mortos.
Este fato, por si só aterrador, tomava proporções monumentais, pois não estavam mortos há dias ou meses, mas há mil e quinhentos anos! Tudo e todos que conheciam foram engolidos pelo tempo inclemente. A base de suas vidas fora tragada, destruída e soterrada pelo passar dos séculos. E sem base, sumiam também suas perspectivas. O futuro tornara-se um túnel escuro, privado de alegria e esperança.
A dor, o choro e o desespero vieram a todos.
Kantor sentiu pena deles. Queria consolá-los, mas precisava ficar atento a Daniel. Aquela explosão emocional poderia ter consequências graves.
Mirna, vendo o estado de seus novos amigos, perguntou a Kantor o que acontecia. Ele explicou em rápidas palavras, e ela, condoída, passou a abraçar e consolar um por um.
O que Kantor mais temia quase aconteceu.
Daniel levantou-se, o rosto molhado, os olhos injetados.
— Por quê? — berrou. — O que fizemos para que isto acontecesse? E por que fomos poupados? Melhor que tivéssemos morrido também!
Kantor recebeu a dor e frustração dele como uma onda de choque. O espaço etéreo à sua volta dobrou-se, formando um vórtice, um poderoso funil energético cujo centro era Daniel.
O velho agiu rápido.
Num salto ágil, encostou um cristal vermelho na testa do rapaz. Um torpor tomou conta do jovem, que voltou a se sentar e ficou imóvel, como se dormisse.
E repetiu o mesmo gesto com os outros.
Kantor voltou a sentar-se e ficou observando os garotos, que aos poucos despertavam.
Lembrou-se de quando foram criados, eras atrás, e sorriu.
Lehen Bat, sua gêmea, Maehen Bat, e Baar Kaleshi. Soor Dabru e Oten Tuena não estavam ali. Todos Adirs. Todos eles Guardiões.
Todos não, corrigiu-se.
Raakiel era um querubim guerreiro, um ser mais antigo que os Adirs, mas a quem foi dada a função de Guardião, como punição por sua rebeldia.
Seres antigos, fortes e sábios, mas que, naquele momento, eram apenas jovens, imaturos e assustados.
A leveza inicial se foi, substituída por questionamentos e dúvidas.
No momento crucial, conseguiriam se lembrar de seus papéis e compromissos? Ou tudo o que vivenciaram em suas inúmeras encarnações se imporia: todas as paixões, medos e ódios?
Uma dessas paixões já influenciava o momento.
Sua atenção se voltou para Cris e não pôde deixar de sentir um travo na garganta ao se fixar em sua aura.
“Pobre criança!”, pensou, mas tinha que acreditar na força dela, bem como na sua própria, para realizar aquilo que fora escrito pelos planos maiores e com o qual todos eles, sem exceção, tinham firmado um compromisso cármico.
Sua mente se voltou para Mirna. Qual seu papel neste quebra-cabeça cósmico? Seria só uma peça solta?
Kantor aprendera a não desprezar as aleatoriedades do destino.
A atenção e a atração que visivelmente Daniel sentira por ela poderiam significar algo. Ou talvez não.
Daniel tinha a fibra do herói, e ter salvado a menina pode ter gerado este excesso de zelo por ela.
Kantor recriminou-se mentalmente. Estava esquecendo quem a pequena era e a sua ligação com um dos portais. Ela poderia ser usada como uma ponte entre eles.
“Os portais”, pensou.
Sentia-se um incompetente, pois, dos quatro, ele só havia localizado dois, e tivera séculos para se preparar, sabendo que todos encarnariam na mesma época.
Um estava ali com ele, e o outro muito perto de seu maior inimigo. Kantor orava sempre para que ele não se apercebesse que tinha ao alcance de suas mãos um dos seres mais poderosos daquele universo. E esperava também que o guardião que estava próximo ao portal, em caso de perigo, superasse sua condição humana e cumprisse sua função.
Só dois portais! Ambíguos, ainda por cima!
Mas eram eles que carregavam os códigos genéticos das harpias, a genética real, potencializada por seus poderes cósmicos. Eles juntos formavam Al Modul, O Caminho.
Só a junção carnal das duas harpias daria cumprimento à profecia de trazer à luz Renis Aukeratum, O Escolhido Real, aquele que uniria toda a humanidade — atlantes e terráqueos — e colocaria de novo o ser humano no caminho da iluminação.
Juntar dois portais ambíguos era uma temeridade, ele e toda a sua fraternidade o sabiam, mas não havia outro caminho. Somente a energia primal dos portais podia moldar os genes para suportarem a encarnação do escolhido. Agarrava-se à ideia de que, mantendo ambos dentro da condição puramente humana, sem o despertar de nenhuma de suas superpotencialidades, não haveria perigo.
Será que não haveria mesmo?
Em toda aquela equação, o fator de desequilíbrio era um só: Daniel!
Instável, volúvel, potencialmente poderoso e imensamente irresponsável.
Não deveria insistir na procura do portal equivalente para ajudar a contê-lo, se chegasse a um ponto crítico? Haveria tempo para procurar este portal? Ele era imortal, mas aqueles jovens não o eram. E os planos das trevas já estavam em andamento. Ele não tinha mais tempo.
Daniel despertou e perguntou com voz pastosa:
— O que fez conosco?
— Apliquei-lhes um necessário calmante. Sinto realmente por suas perdas, mas ainda há coisas que precisam saber, decisões que precisam ser tomadas esta noite.
— Sente? — perguntou Daniel — Sente mesmo? Foi sua raça que chacinou a nossa!
Kantor baixou os olhos.
— Isso me envergonha profundamente. E por querer minimizar as consequências disso foi que me tornei um pária, um marginal para minha própria gente. — Kantor levantou a cabeça. — Mas isso não importa neste momento. Como disse, existem coisas que precisam saber, e ações futuras que dependerão de decisões tomadas esta noite. Precisamos fazer isso enquanto ainda posso mantê-los ativos.
— Como assim, “nos manter ativos”? — Estranhou Pedro. Kantor respondeu:
— Ora, vocês não acham que, depois de quinze séculos congelados, vocês poderiam simplesmente se levantar e sair andando como fizeram, não é? Seus músculos e articulações não teriam condições de fazer isto sozinhos, então dei uma ajuda. Eu os mantive energizados para que se movimentassem, para que ficassem aquecidos, para que suas células não precisassem de alimento.
— Então é por isso que nos primeiros dias nos sentíamos como se fossemos zumbis? — perguntou Carlos.
— Mais como marionetes, eu diria — disse Kantor. — Mas aos poucos fui diminuindo o controle para que seus organismos fossem reassumindo seu ritmo. E então, os conduzi até aqui.
— Marionetes?! — Daniel rosnou baixo. — Não gosto de ser conduzido!
Kantor retrucou:
— Eu apenas os induzi a virem nesta direção. Vocês ainda dispunham de seu livre arbítrio, tanto que foram parar na aldeia, algo que eu não desejava.
— Ainda bem que fomos, não é? — Daniel apertou suavemente a mão de Mirna, que estava com a cabeça encostada em seu ombro.
— Ainda não sei dizer se isso foi algo positivo — disse Kantor.
Antes de Daniel rebater, Cris se antecipou com uma pergunta:
— Você sabia onde estávamos?
— Sim — respondeu Kantor. — Localizei a caverna há uns duzentos anos, depois que as geleiras recuaram para o sul. Quem vocês acham que abriu aquele buraco no teto?
— Poderia ter deixado uma escada ou uma corda. Teria sido de grande ajuda — disse Carlos.
— Apesar de ser uma região erma e desabitada, não podia correr o risco de alguém localizar a entrada e descer até a caverna.
— Quase morremos lá — disse Ana.
— Mas não morreram — observou Kantor. — Eu sabia que dariam um jeito de sair.
Pedro colocou:
— Se sabia onde estávamos e quando acordaríamos, por que não nos aguardou na saída da caverna?
Kantor deu de ombros.
— O que vocês fariam se saíssem de lá e encontrassem um velho no meio da neve, lhes dizendo que ficaram congelados por mil e quinhentos anos?
— Eu acharia que estava louco e te jogaria lá de cima — respondeu Daniel com sarcasmo.
— Não duvido — disse Kantor com um sorriso. — Por isso, precisava que viessem até aqui, que vissem o que viram, para que estivessem mais preparados para o choque de saber a verdade.
Pedro continuou:
— Esta “energização”, como faz isto?
— Como fiz as luzes se acenderem, as portas abrirem, e como desequilibrei a nave que os perseguia.
— Você fez aquilo? — perguntou Ana, assombrada.
— Tudo isso tem um nome: Primanergia — respondeu Kantor.
— Prima de quem? — Quis saber Ana.
— Primanergia! É a fonte energética da civilização atlante. Todos os corpos no universo, de uma estrela a uma bactéria, emitem energia para o meio ambiente. Isso é Primanergia em estado latente, espalhada pelo cosmos. Os atlantes a descobriram, e que certos cristais a absorvem e a armazenam, e, depois que suas estruturas atômicas são realinhadas, podem ser usados para diversos fins: iluminação, aquecimento, propulsão para naves, armas. Encravado sobre este templo há um grande cristal, um dos dois maiores que já foram encontrados, e com ele posso condensar Primanergia e utilizá-la como quiser, como usei para desequilibrar a nave, mantêlos ativos e trazê-los até aqui.
— Uma fonte de energia inesgotável! — exclamou Pedro, maravilhado.
— Sim, mas tem suas limitações. Só a força mental do cérebro humano é capaz de configurar as estruturas atômicas dos cristais, acelerar o processo de captação e direcionar o uso da energia. Mas é preciso predisposição genética e espiritual para isso. Os atlantes acreditam que só eles possuem a genética ideal para manipular Primanergia, coisa que discordo. É espiritual, ou seja, um dom natural ou divino, como prega a religião atlante, para quem a ciência é uma dádiva de Athos, o deus único e onisciente. E, por ser divina, aqueles que a manipulam de forma mais profunda são considerados sacerdotes.
— Você é um sacerdote? — perguntou Cris.
— Eu fui um sumo sacerdote, uma das posições mais privilegiadas do império, mas hoje… Hoje eu sou apenas um servo de forças maiores que o império.
Os jovens entreolharam-se, impressionados com tudo que ouviram.
— Tá, tudo isto é lindo — disse Daniel. — Você falou, falou, mas não disse o principal! Por que estamos aqui? Por que estava nos esperando, ou melhor, por que andou meio mundo para achar a caverna? — Daniel curvou o corpo para a frente, os olhos faiscando. — E, principalmente, onde meu pai entra nisso tudo?
Kantor foi até uma estante.
Uma série de três livros tinha um lugar de destaque, iluminados por um cristal azul.
Ele retirou cerimoniosamente um dos grandes volumes e o depositou cuidadosamente sobre a mesa.
Quando viu o livro, Mirna prendeu a respiração, levou os dedos indicador e médio sobre os lábios e depois sobre o coração, sempre com um olhar respeitoso.
— Estes três livros — começou o velho — são a compilação de toda a religião e o modo de vida atlante. A tríade divina! Todos os escritos hoje utilizados pelos atlantes são gravados em cristais arquivos. Apenas estes três livros ainda são impressos em papel, pois papel vem de árvores, e árvores vêm da natureza, uma das faces de Athos, portanto são de origem divina. — Kantor tocou o volume. — Este é o mais interessante, pelo menos aos iniciados nos mistérios antigos. É o livro das profecias. Uma civilização que chegou às estrelas, que conheceu toda amplitude de fenômenos, e que existe há tanto tempo não podia ignorar os oráculos. Só uma civilização com uma existência tão longa pôde registrar, entender e confirmar o que predisseram estes oráculos ao longo de sua história. E aqui estão registrados, como mensagens da divindade.
Kantor abriu o livro em algumas páginas negras. Mirna deu um grito:
— Net!
Kantor dirigiu-lhe algumas palavras de conforto, mas a menina encolheu-se junto a Daniel.
— O que deu nela? — perguntou Ana
— Por serem divinas, as profecias não podem ser apagadas ou alteradas, mesmo que isto desagrade os poderes temporais. Como uma forma de censura, as chamadas profecias proibidas estão nestas páginas negras e foram espalhadas superstições de que quem as lesse cairia em desgraça, sofreria em dor e loucura por toda a eternidade, por isso o medo de Mirna. É algo que está arraigado na cultura atlante. Tanto que todos os lares atlantes possuem exemplares da tríade, mas as páginas negras do Livro das Profecias encontramse lacradas. Para os estudiosos como eu, é o livro mais fascinante. — Uma sombra de nostalgia passou pelos olhos dele. — Aliás, elas mudaram minha vida. Principalmente esta que vou ler. — Ele pôs a mão sobre a página negra inicial. — A da queda da Dinastia Andros.
O velho continuou:
— Em seus duzentos mil anos de existência, desde que chegou a este planeta, o império teve cinco dinastias, sempre se sucedendo uma à outra de forma natural, menos a atual, a dos Andros. Uma dinastia usurpadora, que, através da traição, derrubou a Dinastia Agar e chegou ao poder há cinquenta mil anos. Com isso, quebrou a ordem natural das coisas, fez planos milenares ruírem, e atrasou a evolução humana em milhares de anos, trouxe riscos imensuráveis a este universo, para não dizer a esta realidade. Estamos na iminência do fim. Mas a mudança se aproxima, haverá o cumprimento das profecias e a sequência divina será retomada! — E encarou Daniel.
Este se sentia estranho. Enquanto Kantor explicava sobre os livros, sentia sua mente em uma espécie de balanço. Começou a ouvir um som surdo, parecido com um tambor. Percebeu que era o som de seu coração, tão alto que parecia preencher a sala toda.
Começou a ver figuras fugidias em meio às sombras. Eram rostos sisudos, outros complacentes.
Pensou ter visto seu pai. Não conseguia fixar um rosto por muito tempo para identificá-lo, mas percebeu que todos os olhares se fixavam nele, olhares de esperança!
Quando Kantor iniciou a leitura, Daniel podia ouvir outras vozes, e entre as frases lidas:
“Vós que hoje reinais sobre as estrelas, escutai o oráculo, pois há de chegar o tempo em que aqueles que julgais extintos se levantarão do pó para reclamar vosso trono.”
“És a profecia encarnada”
“Uma montanha de fogo dará à luz um homem, arauto das harpias derrubadas e portador da semente que findará vosso tempo.”
“Sua semente frutificará”
“Ele é o senhor do juízo. Virá ante um exército de mortos e sua ira será avassaladora. Sua voz ruirá a muralha eterna.”
“Todo poder é seu”
“Sua espada virá cingida sobre sua face. E então o conhecereis.” “És Hi Graab”
Os olhos de Kantor brilhavam quando encarou Daniel.
— Sim, Daniel, é você! Aquele que veio para restabelecer a ordem natural das coisas e reconduzir a humanidade a seu destino glorioso!
Mirna, cujo medo tinha sido sobrepujado pela curiosidade, havia se esgueirado para trás de Kantor e lido a profecia por sobre os ombros dele. Ela compreendeu de imediato as palavras. Ergueu seus olhos negros para Daniel, cheios de espanto e temor, e sussurrou:
— So alek, Hi Graab!
— Vida longa, Grande Harpia! — traduziu Kantor.