Reconheceu a caverna, mas percebeu que ela não estava mais imersa em total escuridão. Volveu a cabeça para o alto, sentindo os ossos do pescoço estalarem, e viu que a claridade vinha de um buraco no teto.
Tentou se levantar, mas, sentindo um peso em seu ombro, olhou para o lado e se deparou com Cris adormecida de encontro a ele.
Daniel acariciou-lhe o cabelo úmido e a chamou.
Ela abriu lentamente os olhos e encarou-o por um momento, confusa, mas uma luz de reconhecimento fez seus olhos brilharem e ela sorriu.
— Dan.
— Oi — disse ele com carinho. — Você está bem?
— Não. Me sinto estranha, dolorida. O que houve?
— Não sei. Só me lembro da névoa congelante e depois mais nada. Mas venha, me ajude a acordar os outros.
Eles conseguiram levantar-se na terceira tentativa. Daniel sentiu todos os seus ossos e músculos doerem. Cris também gemeu de dor.
Daniel sacudiu Carlos:
— Cacá! Acorda, pô!
O rapaz abriu os olhos e tentou espreguiçar-se, mas encolheu-se com um gemido:
—Ai, ui! Nossa! Parece que um batalhão marchou nas minhas costas!
— Não só nas suas, pode ter certeza — disse Daniel enquanto
sacudia Pedro, e Cris acordava Ana.
Pedro sentou-se com dificuldade, olhando em volta:
— O que aconteceu? Onde está a névoa?
— Sumiu — respondeu Daniel. — Acho que ficamos inconscientes por algum tempo, por causa do frio. Sorte que corremos a nos juntar e isto nos manteve aquecidos.
— Por falar em aquecidos — disse Ana tirando a jaqueta —, não está ficando quente?
Realmente, a temperatura subira bastante, tanto que suas roupas e seus cabelos, que estavam úmidos quando acordaram, já estavam completamente secos.
— Rapaz! — exclamou Carlos. — Isto está ficando literalmente um buraco quente!
Daniel estava parado sob a abertura no teto, avaliando-a. Pedro se aproximou:
— Isto não estava aí antes, estava?
— Não — respondeu Daniel. — Ou talvez estivesse. O terremoto pode ter aberto e, sendo noite, não conseguimos vê-lo. Acho que foi por aí que névoa escapou e é por onde podemos sair daqui.
— Mas como? — perguntou Carlos. — Está muito alto?
De onde estavam dava para ver que a espessura da rocha não era grande, pois podiam divisar o céu azul através do buraco, mas a altura era outra história. O teto encontrava-se a pelo menos quatro metros do chão.
Daniel se virou para o amigo:
— Carlos, e se você subisse nos meus ombros e ficasse em pé? Acho que dá para alcançar.
Carlos avaliou a altura:
— Acho que nem assim alcança.
— Faz assim — disse Ana se aproximando —, você fica em pé nos ombros de Daniel e eu fico nos seus. Aí dá para alcançar.
Carlos a mirou:
— Vai subir em mim? Hum, não é minha posição favorita, mas eu topo.
Ana cerrou os olhos de forma perigosa. Carlos levantou as mãos:
— Desculpa. Foi brincadeira. Acha que consegue subir tão alto?
Ela deu um sorrisinho esnobe:
— Cara, eu sou a ginasta número um do colégio. Se eu não conseguir, ninguém mais consegue. A questão é se os dois palermas aguentam tempo suficiente.
Ignorando a provocação, Daniel olhou de novo para o buraco:
— Pode dar certo — ponderou.
— Mas, Dan — interveio Cris —, e se ela cair e se machucar? Só vai piorar a situação.
— Obrigada pela preocupação, amiga — disse Ana —, mas estou disposta a me arriscar e salvar as vidas de vocês.
— Para depois jogar isso nas nossas caras, não é? — perguntou Carlos irônico.
— Exato — confirmou Ana. E esfregando as mãos, disse: — E então, vamos?
— Vamos nessa! — confirmou Daniel.
Ele postou-se sob o buraco e ficou de cócoras para que Carlos subisse em seus ombros.
Assim que o amigo se sentou, Daniel tentou se levantar, mas Carlos não era mais o garotinho magrela com o qual roubava frutas. Achou que não ia conseguir, mas sabia que a saída deles dali dependia disto. Com esforço, suando muito e com a dor lacerando seus músculos, conseguiu pôr-se em pé.
— Muito bem — aplaudiu Carlos. — Tem tomado suas vitaminas direitinho. Agora é comigo.
Dizendo isto e com cuidado pôs-se em pé sobre os ombros de Daniel, equilibrando-se com os braços abertos.
Pedro entrelaçou os dedos das mãos para que Ana pusesse o pé.
Contrariando as expectativas, a menina se afastou quatro passos e, antes que eles pudessem imaginar o que ela faria, Ana correu, pulou, apoiou o pé direito nas mãos de Pedro, tomou impulso e pisou com o pé esquerdo no ombro de Daniel. Outro impulso, agora para o lado. Pisou na cabeça de Pedro enquanto agarrava a borda da jaqueta de Carlos com as duas mãos e se puxava com força para cima. Voou rente a Carlos, girou no ar e caiu sentada nos ombros dele.
Mas, na girada, seu joelho acertou o nariz do rapaz, fazendo-o se desequilibrar e balançar perigosamente, junto com Daniel.
— Vamos, palermas! Equilibrem-se! — gritou Ana.
Pedro e Cris apoiaram Daniel e eles conseguiram certa estabilidade.
— Ai! Você acertou meu nariz! E foi de propósito! — reclamou Carlos.
— Não foi! — rebateu ela, dando um sorriso malvado.
— Foi sim…
— Calem a boca vocês dois! — berrou Daniel, cujos joelhos ameaçavam ceder. — E andem logo!
— Depressa, Ana! Daniel não vai aguentar muito! — exclamou Cris desesperada.
Ana ignorou a gritaria. Precisava se concentrar no que ia fazer.
Se movendo o mais suavemente possível, foi ficando em pé sobre os ombros de Carlos.
Começou a se arrepender de sua bravata. Não imaginou que seria tão difícil, pois fazer acrobacias sobre algo fixo como o cavalo era uma coisa, fazer sobre algo que não parava de se mexer era outra totalmente diferente. Mas ela precisava conseguir.
Quando ficou ereta, a parte superior de seu corpo entrou no buraco, mas a borda ainda estava mais acima.
Esticou os braços o máximo que pôde e estava com os dedos a centímetros da borda, quando percebeu que a distância começou a aumentar. Eram os joelhos de Daniel que estavam cedendo.
Ana percebeu que teria que tentar um ato desesperado. Dobrou os joelhos e se lançou para cima.
Conseguiu alcançar a borda, mas, com o impulso, derrubou Daniel e Carlos, ficando pendurada.
Olhou para baixo, para a massa confusa que se tornaram
os dois rapazes esparramados no chão. Achou que caso se soltasse cairia sobre eles e poderia não se machucar muito, mas com certeza não conseguiriam fazer aquilo novamente.
Juntando suas forças, puxou o corpo através do buraco. Conseguiu apoiar os cotovelos nas bordas e, apoiando os pés nas paredes do buraco, num último esforço, se içou para fora.
Rolou pelo solo e, quando foi se apoiar, suas mãos afundaram na neve.
Quando entraram na caverna fazia frio, mas não havia neve, pois ainda estavam no outono.
Agora, até onde seus olhos alcançavam, tudo era de um branco cegante. Ouviu alguns estrondos e, olhando em direção ao cume da montanha, viu fumaça negra sendo expelida para o alto.
A voz de Daniel tirou-a de sua contemplação muda e assustada:
— Ana? Você está bem? — gritou ele de dentro da caverna.
— Sim, estou, mas vocês não vão acreditar! Tem neve pra todo lado aqui fora!
Os jovens se entreolharam:
— Ela disse neve? — perguntou Pedro.
Daniel a chamou:
— Vou jogar a corda e você a amarra em algum lugar.
— Tá bom — respondeu ela. — Mas jogue também minha jaqueta, que estou congelando!
Ele colocou uma pedra dentro da jaqueta e enrolou a corda nela. Na terceira tentativa, conseguiu atirá-la através do buraco.
Ana se vestiu e procurou onde amarrar a corda.
Olhou em volta e, um pouco acima de onde estava, viu uma rocha protuberante aflorando da neve. Amarrou e jogou o resto da corda pelo buraco.
Daniel agarrou-a e testou para ver se estava firme. Virou-se para os demais:
— Carlos, você vai primeiro e ajuda Cris a subir. Depois Pedro sobe e vocês puxam as mochilas. Eu vou por último.
—Tá joia! — Carlos aproximou-se da corda e, com um salto,
a agarrou pela metade. Escalou com agilidade e logo, com um suspiro de alívio, estava do lado de fora.
—Putz! — exclamou. — Não é que tem neve mesmo!
— Claro que tem! Tá achando que sou mentirosa? — perguntou Ana.
Carlos fez uma expressão séria:
—Segundo me consta, sinceridade não é um dos seus pontos fortes.
O rosto dela avermelhou-se:
— Cala a boca! Não sou obrigada a aguentar desaforos de um… de um…
— De um negro, é o que quer dizer?
— Eu não ia dizer isso, seu estúpido!
— Não me chame de estúpido! — gritou Carlos.
— Não grite comigo! — gritou Ana.
— Ei, os dois idiotas! — berrou Daniel furioso de dentro da caverna. — Parem de brigar e nos ajudem aqui, que saco!
Carlos abaixou-se, resmungando.
Ana, vendo-o ali, perto do buraco, sentiu vontade de chutarlhe o traseiro para que caísse e arrebentasse a cabeça. Conteve-se.
Daniel virou-se para Cris:
— Venha, amor. É sua vez.
Ele a segurou pela cintura e lhe deu impulso para que agarrasse a corda o mais alto possível. Deu um sinal e Carlos começou a puxá-la.
Assim que a garota chegou na abertura, Ana a ajudou a sair.
Mas mal Cris se pôs em pé, foi atirada ao chão, junto com os demais. Um violento tremor balançou a montanha toda.
Dentro da caverna, Pedro e Daniel também caíram. Algumas pedras rolaram e uma fenda se abriu na parede da caverna. Lá no cume, grossos rolos de fumaça escura eram agora expelidos.
— Vocês estão bem? — gritou Carlos para os dois.
Pedro virou-se para o primo:
— Tudo bem, Dan?
— Tudo. Vamos, suba agora que depois mando as mochilas.
— Não — retrucou Pedro. — É minha responsabilidade zelar pela segurança de vocês. Então eu vou por último.
— Pro inferno com sua responsabilidade! — rebateu Daniel. — Eu coloquei vocês nesta enrascada, então eu vou tirá-los. Vamos, suba!
Os dois se entreolharam em silêncio, a velha rivalidade presente.
Do fundo da terra, vinham os murmúrios de algo destruidor que se aproximava. Pedro sentiu que era o momento de ceder, então, dizendo um palavrão, agarrou a corda e subiu.
A corda foi novamente jogada e, enquanto Daniel amarrava as mochilas, um novo tremor sacudiu tudo.
Um brilho avermelhado e um hálito quente tomaram conta da caverna.
Daniel arregalou os olhos. Da fenda na parede, escorria uma pasta luminosa e fumegante.
— Puxa logo isto! — berrou ele.
Pedro enfiou a cabeça na abertura e viu a lava se espalhando pelo chão.
— Se agarre na corda! — gritou ensandecido.
— Puxe as mochilas primeiro! — respondeu o primo.
— Idiota! Imbecil! Teimoso! — Pedro xingava entredentes enquanto ele e Carlos puxavam loucamente a corda.
Cris assistia a tudo muda e apavorada.
Desataram rapidamente a corda e a atiraram pela abertura. Assim que Daniel começou a subir, a lava cobriu todo o chão.
Ele sentiu as solas dos pés arderem com as ondas de calor e subiu pela corda como se houvesse um demônio em seu encalço.
Os outros dois puxavam apressadamente, mas, com o atrito com a borda, a corda se rompeu.
Tudo aconteceu em segundos.
Os rapazes caíram para trás, as garotas gritaram e Daniel agarrou-se à borda. Tentou sair, mas suas mãos escorregaram e ia fazer um mergulho para a morte quando Carlos, com agilidade espantosa, lançou-se para frente e agarrou-lhe as mãos.
Então, com a ajuda de Pedro e com muito esforço, conseguiram puxá-lo para fora.
Cris atirou-se sobre ele.
— Oh, Daniel! Por que você faz estas coisas? — perguntou ela chorando.
Ele sorriu:
— Acho que é para impressionar você.
Ela baixou os olhos:
— Você pode me impressionar muito mais ficando vivo.
Daniel abraçou Carlos:
— Valeu, irmão! Salvou minha vida!
Cris deu-lhe um beijo no rosto:
— Obrigada, Cacá! Você é um herói!
— Não foi nada — disse Carlos encabulado. — Além do mais, eu só o salvei porque ele me deve uma grana.
Pedro bateu-lhe afetuosamente no ombro e Ana se aproximou:
— Tenho que reconhecer — disse ela —, você é estúpido, mas é corajoso. Poderia ter caído junto com ele naquele buraco.
Carlos sorriu:
— Não me elogie, pois, se fosse você pendurada lá, não sei se teria me empenhado tanto. — Ele virou-lhe as costas e Ana teve certeza de que ele realmente não se esforçaria para salvá-la.
— Bem — disse Daniel jogando a mochila nas costas —, melhor irmos andando. Vamos descer para o vilarejo e procurar ajuda. Se houve um terremoto na região, é lá que vão centralizar os resgates.
Pedro sacou uma bússola da mochila:
— A direção correta é para lá, nordeste.
— Em suma — disse Daniel —, para baixo, vamos logo!
A descida foi árdua. A neve em alguns pontos chegava aos joelhos e obrigava os jovens a fazerem grandes desvios para encontrarem um lugar melhor para descer. E caminhavam sempre temerosos de buracos ou abismos encobertos pela neve.
Quando tinham saído da caverna, o dia mal havia amanhecido, e agora o Sol caminhava para o ocaso e a noite se aproximava.
— Onde está o maldito povoado? — esbravejou Daniel. — Já era para ter aparecido!
Pedro consultou a bússola:
— Apesar do caminho de rato que você fez, Daniel, ainda estamos na direção certa. Só não entendo por que ainda não chegamos.
Daniel não gostou da crítica:
— Vai ver você nem sabe olhar direito essa porcaria.
O primo estendeu-lhe o instrumento e rebateu irritado:
— Se você se acha tão bom, por que não olha você mesmo?
Cris tentou acalmar os ânimos:
— Calma, pessoal, não vamos brigar. Vai ver descemos por um caminho paralelo ao que subimos e logo avistaremos a vila. O que me preocupa agora é que está anoitecendo.
— Ela está certa — disse Daniel. — Temos que achar um abrigo para passarmos a noite.
— Mas nada de cavernas — disse Ana.
— Que tal ali? — Carlos apontou para uma projeção rochosa.
— Serve — decretou Daniel.
Sem condições de acenderem um fogo sequer, dormiram bem juntos uns aos outros, tentando se aquecer.
Foi uma noite fria e estranha, jogados em um estado de torpor entre o sono e a vigília, e durante toda a noite a montanha lembrou-lhes do perigo iminente, com seus tremores e roncos surdos.
Ao amanhecer, retomaram o caminho.
O cansaço e a fome eram resquícios distantes em seus corpos e mentes. Algo que não conseguiam definir os impelia sempre para frente. Era como uma voz que sussurrava em suas almas, dando-lhes forças, levando-os adiante.
Depois de mais algumas horas de caminhada, a neve foi rareando, e o caminho, apesar de calcado de pedras, já não era tão íngreme.
Lá na frente, avistaram pequenos montes de cume achatado e desfiladeiros entre eles.
Cris, ofegante, lamentou:
— Oh, não! Não vai me dizer que teremos que escalar aquilo?
— Talvez não precisemos escalar — respondeu Pedro. — Pode ser que dê passar entre eles, pelos desfiladeiros.
— Que tal paramos um pouco? — perguntou Ana, choramingando. — Senão vou acabar pisando na minha língua.
Sem dar-lhe atenção, Daniel, visivelmente contrariado, disse:
— Não entendo, a paisagem está diferente. Não existe nenhum tipo de vegetação, nem aqueles arbustos que víamos quando subimos a montanha, e eu não me lembro daqueles desfiladeiros. E, pelo tempo que caminhamos, já devíamos ter chegado na vila! — Ele olhou para Pedro por sobre o ombro: — Parabéns, primo! Por sua incompetência como guia!
Pedro ia rebater, mas sentiu a mão de Cris em seu braço.
Olhou para ela, que silenciosamente balançou a cabeça; em seus olhos, um pedido mudo para que não revidasse.
Ele respirou fundo e, sorrindo para ela, calou-se.
Ana jogou a mochila no chão. Sentou-se em uma pedra e disse apenas:
— Cansei.
Os outros pararam. Daniel virou-se para ela:
— Vamos, garota, não podemos parar agora.
Com as mãos segurando o rosto, ela respondeu renitente:
— Não vou a lugar nenhum sem descansar primeiro.
Daniel, já irritado, vociferou junto ao rosto dela:
— Menina idiota! Você não vê que, se aquele vulcão explodir, estaremos ferrados!? Precisamos nos afastar o máximo possível!
— Já estamos bem longe do vulcão — respondeu Ana no mesmo tom emburrado.
— Não estamos, não! — Foi a vez de Pedro falar. — Você já ouviu falar de fluxo piroclástico, Ana? É uma nuvem muito quente de gases que, depois da erupção, desce a encosta em grande velocidade, atinge grande distância e destrói tudo em seu caminho! Ana ergueu o queixo, desafiadora, para os que a cercavam:
— Já disse que não vou enquanto não descansar. Daqui ninguém me tira, seja um bando de babacas como vocês ou aquela porcaria de vulcão.
Daniel já estava perdendo o controle quando Carlos passou por ele dizendo:
— Deixa comigo!
Ele agarrou Ana pelo pulso e começou a arrastá-la enquanto dizia:
— Garota teimosa! Não vou morrer por sua causa! Você vem, nem que eu tenha que te arrastar pelos cabelos!
Ela se debatia como um animal selvagem. Cris ia intervir, mas Ana deu uma violenta mordida no braço de Carlos.
Com um grito, ele a largou. Ana avançou contra ele:
— Seu desgraçado! Seu fil…. — Ana se engasgava no próprio ódio. — Toque em mim de novo sem minha permissão e eu arranco seus olhos fora!
Carlos vendo-a ali, naquela atitude, o queixo erguido, os olhos azuis faiscando de raiva, as faces vermelhas pelo esforço da luta, os dentes cerrados entre os lábios pálidos de ódio, só conseguiu pensar: “Linda!”. Talvez se a beijasse, ela ficaria muito mais furiosa.
— Só com sua permissão? — perguntou ele sorrindo ironicamente e se aproximando dela. — A senhorita, então, me permite beij…
Ele não conseguiu terminar a frase.
Um violento tremor de terra derrubou todos ao chão.
Fendas se abriram pelo chão e Cris teria sido engolida por uma delas se Daniel não a puxasse rapidamente. Pedras rolaram da montanha, passando a centímetros de seus corpos. O tremor durou quase três minutos e, de súbito, como surgira, cessou.
Daniel levantou-se cambaleante. Seus dentes batiam dentro da boca:
— Putz! O que foi isso?
A resposta veio em forma de um urro que abalou metade do planeta.
O topo da montanha explodiu e um mar de cinzas e chamas se elevou a alturas estonteantes.
— Ferrou! — exclamou Carlos.
— Não, vejam! — disse Pedro. — A face sul da montanha desmoronou e liberou o fluxo por lá!
Realmente, viam a nuvem escura descendo célere pelo outro lado. Daniel apertou os olhos para ver melhor:
— Legal, mas o que é aquilo se mexendo na encosta deste lado? — perguntou.
Os outros se fixaram no ponto à frente e acima, para onde Daniel apontava.
— Avalanche! — gritou Pedro.
Com o tremor e a subida brusca da temperatura, a neve havia se deslocado e derretido, e agora se tornara uma torrente de pedras e lama descendo a encosta em direção a eles.
— Precisamos encontra um lugar seguro! — exclamou Daniel.
— Lá em cima! — disse Carlos apontando para o alto dos montes à frente.
— Não vai dar tempo de escalar! — exclamou Cris horrorizada.
— Vai ter que dar! — respondeu Daniel e, sem esperar mais, a agarrou pela mão e disparou naquela direção.
Rapidamente percorreram a distância que os separava dos montes, ouvindo atrás de si a avalanche que se aproximava e, quando chegaram, viram que os montes eram, na verdade, íngremes paredões rasgados por desfiladeiros escuros.
— Não vai dar para escalar, melhor entrar por um desfiladeiro! — disse Pedro nervoso.
Uma voz interna disse a Daniel que aquela escolha os levaria para uma armadilha terrível.
— Não! — disse ele. — A parede é bem acidentada. Tem muito lugar para nos apoiarmos e subirmos. Vamos lá.
Sem esperar contestação, iniciou a subida.
Carlos era como um gato, subindo agilmente e ajudando os outros. As mochilas eram um estorvo, mas Daniel achou melhor não se livrar delas. Poderiam precisar dos sacos de dormir e dos alimentos.
Quando já haviam subido um bom pedaço, a avalanche chegou, chocou-se contra a base do paredão e deslizou para dentro dos desfiladeiros.
O impacto foi tão grande que a encosta toda tremeu.
A pedra em que Cris e Ana se apoiavam soltou-se e as duas deslizaram parede abaixo, gritando, em direção à torrente de lama.
Daniel esticou-se e conseguiu agarrar Cris. Pedro tentou pegar Ana, mas não a alcançou. Ela deslizou mais e, milagrosamente, conseguiu se segurar em uma rocha, poucos metros acima da lama que continuava a subir.
Agilmente, Carlos precipitou-se até bem próximo de Ana.
Esticou-lhe a mão, mas ela não a segurou. Ficaram um tempo numa troca muda de olhares e Carlos sabia que ela estava relembrando tudo o que havia acontecido entre eles nas últimas horas.
Ele gritou-lhe, quase uma súplica:
— Não seja teimosa, garota! Segura a minha mão, vai!
Com relutância, ela segurou-se nele e ambos subiram para o topo, onde os outros já aguardavam.
Quando se puseram em pé, se encararam. Carlos com um meio sorriso e Ana com uma luta em seu interior. Os outros se acercaram, perguntando se ela estavam bem, congratulando Carlos:
— Salvou o dia ontem e hoje, companheiro — disse Daniel, dando um murro carinhoso no ombro dele, enquanto Cris abraçava a amiga.
— E aí, Ana? — perguntou Pedro. — Não vai agradecer?
Todos a olharam:
— Obrigada — disse lacônica.
— Ei, garota — repreendeu-a Daniel —, o cara salva sua vida e você só diz um chocho obrigado?
Sem responder, Ana virou-lhes as costas e saiu andando.
Não queria que vissem as lágrimas que ardiam em seus olhos.
— Deixa para lá — minimizou Carlos. — Já foi demais pro orgulho dela ter que me agradecer.
Passaram então a analisar onde estavam. Não era mesmo um monte. Era, na verdade, um planalto árido, cujos limites desapareciam na distância.
Olhando lá do alto, viram que o lugar onde eles haviam descido da montanha era uma depressão que terminava onde os desfiladeiros, em número de sete, começavam. Estes eram como fraturas nas bordas do planalto.
Haviam escalado pela lateral do último deles e viram que este, junto com os demais, terminava em outro desfiladeiro que, olhando de onde estavam, parecia uma ferida aberta na superfície plana da região.
Os rapazes caminharam até lá, seguindo a borda do desfiladeiro, deixando as garotas junto com as mochilas.
Chegando mais perto, viram que aquele desfiladeiro mais parecia uma cratera, com bordas bem definidas e de onde subia um ronco surdo.
Quando chegaram na sua borda, seguraram a respiração, perplexos.
Era realmente uma cratera, um buraco escuro onde não se via o fundo. Os sete desfiladeiros terminavam neste buraco e, por eles, a avalanche jorrava, precipitando-se nas profundezas.
O ronco que ouviam era o barulho da lama e da neve derretida que, caindo no espaço escuro, reverberavam nas paredes íngremes.
“Bendita voz interior”, pensou Daniel. Se tivessem entrado no desfiladeiro, teriam ido parar no fundo daquele buraco.
Pedro, como se lendo os pensamentos do primo, disse assustado:
— Ainda bem que não entramos no desfiladeiro.
Daniel não sentiu vontade de tripudiar em cima dele. Estava muito cansado para isso.
Subitamente, a luz do Sol desapareceu, mergulhando o dia em uma escuridão cinzenta.
Olhando para cima, viram que era a fumaça do vulcão que
tomava conta de todo o céu.
Voltaram até onde as garotas estavam e, em silêncio, sentaram-se cabisbaixos, observando o cinza engolir o dia.
De repente, o vulcão iniciou uma série de explosões, como espasmos, que lançaram ao céu milhares de rochas incandescentes que riscavam de vermelho o fundo escurecido do firmamento.
Boquiabertos, os jovens levantaram-se para observar melhor o espetáculo da natureza em fúria quando uma daquelas rochas se chocou contra o solo, a menos de cinquenta metros deles.
Em breve, se chocou outra e mais outra, dezenas delas começaram a explodir a sua volta.
Daniel ergueu a voz acima da barulheira infernal:
— Vamos nos proteger ali! — E apontou para um grupo de rochas que, caprichosamente encostadas umas nas outras, formavam uma espécie de cabana.
Os garotos correram em meio à chuva de fagulhas que explodiam.
A abertura era baixa e tiveram que entrar se arrastando de quatro. Daniel ficou por último e, quando ia se agachar para entrar, parou e olhou para trás.
Tivera a nítida impressão de ter ouvido alguém chamar seu nome.
Olhou para cima e viu, caindo em sua direção, um pequenino pedaço de rocha incandescente, menor que a ponta de um dedo mínimo.
Acompanhou-lhe a queda, hipnotizado, quando então a pedra caiu em seu rosto, entre os olhos, um pouco acima das sobrancelhas.
Ele levou as mãos ao rosto e, gritando, caiu ao chão.
Neste instante, o vulcão explodiu novamente, as pedras castigaram mais furiosamente a região e torrentes de lava escorreram por todas as vertentes da montanha. Era como se o vulcão comemorasse uma tarefa cumprida.
Carlos saiu do abrigo e puxou Daniel, que se contorcia de dor.
Eles não viram quando, de dentro das chamas do vulcão, algo como uma densa nuvem negra emergiu, se contorceu por instantes por sobre a montanha e, como se descobrisse a direção certa, seguiu para o norte, como um sombrio mensageiro da morte.