O momento esperado chegou, finalmente os preparos de anos tiveram seu fim, era hora de pintar a mais bela das pinturas. Poli o cristal branco deixando impecável, sua superfície tornou-se lisa, os dedos deslizaram, a grande estrutura a ela contemplava, finalmente estava pronto o quadro da obra almejada. Me isolei lá dentro, deixado ao relento para que ninguém fosse atrapalhar. Com o pincel em mãos, comecei pelo chão que, com a cor azul-marinho, fui a pintar.
A base da vida, a água, foi a primeira coisa a tomar, um rio belo desaguando direto no mar, com finos traços, pingados e curvados, fazendo a profundeza das águas do mar. De seu lado, usei o branco, fazendo a espuma que na praia iria chegar. O rio foi fácil, uma linha longa e por todo o quadro iria trespassar. De lá vieram as bordas e das bordas as plantas e as areias, combinando as cores, fazendo do amarelo dourado e do verde queimado o símbolo daquela terra.
Finalmente haviam terminado as águas, após diversos dias a fio, tinha que ser sincero, aquilo sequer estava próximo do objetivo pretendido. Fui de lá, fui de cá, emagreci de tanto pintar, das areias passei para a terra clara e escura que grande parte do quadro. Foi a tomar, depois de tudo, o capim, o mato e o trigo, fui a organizar, tinha finalmente feito a base da obra que fica no centro. Iria ficar, porém, o calor veio como uma chama ardente a me pressionar. O ofício deixou de ser algo simples e cada vez mais difícil iria ficar.
Do dourado ao verde do capim, aquele quadro foi tomando, cada linha era um desafio que era impossível de voltar. A pedra parecia lentamente se movimentar, as águas que pintei começavam a escoar, não sabia se era real ou não, quem sabe enganado por minha própria imaginação. vendo em um quadro parado se formar a correnteza do rio e as ondas do mar. Continuei direto, preciso e quieto a decorar. Por fim, as plantas menores haviam tomado forma e cor nas encostas daquele lugar.
Trabalhar com as árvores foi um desafio de pintar, uma hora estavam escuras como a madeira da cerejeira do nordeste ou claras como o eucalipto campestre. Não se tinha padrão, não se tinha feição, as árvores eram diferentes, mas saíam com perfeição. Para deixar mais claro, tinha que fruto e flores pintarem sua composição. Mas ainda faltava algo que era necessário para a beleza daquela ilustração. Cheguei na parte sagrada, o céu da alvorada, que seria o pilar daquela criação.
O azul do céu era reto, mas o vermelho pegava a atenção, era como o pôr de solares, dando início à fase de escuridão. O azul ficava por cima em sua pura superação, enquanto abaixo deixava os ares claros, fazendo a despedida daquela honrada apresentação. Do céu tão belo, cheio de cor e entonação, as nuvens deram o último encanto, contrastando com aquela forte emoção, uma clareza se formava, as nuvens honravam a sua função honrada na mais bela ação.
Não tardou para continuar, mas descobri que por semanas estava lá, a luz das velas e a escuridão foram a me desorientar, não sabia quando era noite e quando era dia, pois a cripta não deixava outra luz entrar. Quando vi, meu corpo estava estranho, cansado, mas sem intenção de parar. Continuei a obra em silêncio, sem saber quando novamente iria começar, delírios me vieram quanto mais eu ia observar, vi a imagem se mover sutilmente como se fosse uma paisagem à beira-mar.
Percebi que esta missão não era uma simples pintura, mas sim algo que sequer poderia pensar. A tinta usada havia incorporado no quartzo como se parte dele fosse a se tornar, saí da inércia e voltei a trabalhar, pintura atrás de pintura, linha atrás de ponto e curva, tudo para chegar. A obra se mostrava a essência, mas parecia não terminar, continuei firma até meus joelhos ao chão tocarem, o céu, a terra e o mar foram terminados, mas faltava algo, algo que em seu meio deveria ficar.
Uma estrutura? Uma nação? Uma cidade, uma pessoa ou mesmo uma criatura para verdadeira resolução. Não sabia o que colocar, mas tinha uma certa noção, pois o Deus pacífico era claro, que a obra era destinada à sua missão. Fiz então o que foi necessário, moldei a imagem deixando-a como era fato, tinha que ser algo que fosse espiritual, a ideia da paz e da fronteira que a este Deus era vital.
Fiz o que pude, com as forças que tinha, pintei o último obstáculo, o símbolo divino, a figura alada. O pássaro incendiado é o símbolo do sacrifício e do limite criado, o ponto fim da pior das guerras, o início da divisão de todas as terras. A ave foi colocada em seu meio, carregando o lema de todo um legado, enquanto os pilares foram inclinados, formando um altar aberto, direto, contemplando tudo que estava ao seu lado.
Não sei quanto tempo lá passei, e por quanto anos pintei, só sei que algo tinha mudado, eu havia finalmente completado a missão que há tanto tempo foi me dada. Pude pela primeira vez admirar a grande obra que fui traçar em prol de meu passado, os primeiros, mesmo mortos, viram o que havia passado, e agora, tudo acabara. Porém, uma surpresa tinha me chamado, o quartzo pintado mostrava um sinal que ainda não havia terminado.
Uma luz dele soltou, mesmo com tudo apagado, a obra parecia viva, como se me fizesse um chamado… eu me aproximei do meu mais nobre quadro, toquei e percebi que tudo que fiz estava claro, a pintura perfeita fez a proeza de chegar ao outro lado. Minha mão havia atravessado e aos poucos me entreguei, passando pelo portal ao mundo destinado…
Eu havia criado o ponto vital, o portão pacífico, a passagem para a fronteira espectral… passei por ela e agora estava em uma terra… que não havia defeito, ali tudo era perfeito… estava em paz, meu corpo não doía mais… eu havia chegado, no mundo amado do Deus da Paz.