A chama finalmente cedeu, as nuvens sombrias que tamparam os céus trouxeram consigo algo além da escuridão, elas trouxeram a chuva. Chuva esta que molhou o solo e apagou o fogo, trazendo consigo o frescor do orvalho e o desolado cheiro das cinzas. A vermelhidão ardente que tingiu o céu deu lugar à ondulada fumaça branca que dançava lentamente pelos ventos, como uma graciosa bufona em seus dramas teatrais.
O Palácio de meus pais mudou de forma e cor, suas torres cederam e seus muros caíram. As graças do passaram finalmente tiveram seu fim, o barulho da faísca que consumia tudo mudou, dando espaço para o denso som da chuva que não parava de cair. Meus cabelos se encharcaram e minhas roupas molharam ao tempo que eu esperava a torrente água terminar seu honrado trabalho.
Meu caminhar afundava a terra lamacenta e minha entrada foi recebida com o silêncio, o chão estava tingido pela fuligem e pelo pó do que antes foi chamado de jardim. Cada passo, cada toque em solo formava uma sutil possa com uma espiral do marrom da terra e do cinza dos restos. As flores que antes davam cor e perfumavam o ar, agora não passavam de pequenas varetas secas e retorcidas que, com o mais leve toque, se rompiam em inúmeros pedaços.
As entradas do salão estavam lacradas, pois as portas cederam junto dos pilares. As solidas rochas que um dia impediram o ferro do inimigo de chegar aos nobres haviam se rompido pelo fogo, que as cortou como um açougueiro bruto, batendo seu cutelo em um pedaço duro de osso. Atravessar os obstáculos foi um verdadeiro desafio, mesmo leve, o peso pendia, as pedras deslisavam e as últimas tábuas se quebravam.
Seu interior estava devastado, seu telhado falhado, a chuva chegava em pontos que um dia foi impedida de molhar e a fraca luz da estrela maior mostrava seu singelo brilhar. Vi corpos amontoados, unidos como em um ato carnal, espremidos próximos à porta como se fossem um mesmo objeto, todos queimados, desfigurados a ponto de não reconhecer. As vestes finas viraram trapos e os belos acessórios de ouro e prata eram as poucas coisas que marcavam os ricos e os pobres naquele macabro ritual.
O som da chuva era fraco, sutil e singelo, trazia consigo a melancolia de um funeral e às vezes um estralo como um berro, ao fundo, um romper de mais uma parede que cedia e deslisava, batendo suas rochas na fundação da grande falésia daquela grande morada. Finalmente havia chegado ao centro, ao grande salão do trono, espaço que um dia trouxe glória e encanto, que agora não passava de uma ilusão. Suas pinturas foram apagadas e sua nobreza, roubada, o marfim e o cedro que fizeram o trono, nada mais valiam, o seu encosto já não existia e seu legado, assim como os restos, havia virado passado.
Os balsões estavam no chão, queimados, perderam as cores da casa nobre que representava, perderam o verde, perderam o furão e a espada, deixaram de ter sentido e resistência. Seu tecido ficou fino e sensível como o papel deixado exposto à luz do dia, pegá-lo era uma verdadeira missão, o mais leve toque o fazia esfarelar. Além do trono e das bandeiras, as mesas não foram a escapar, antes lugar de finos banquetes, nada foi a sobrar, seus pratos pintados agora acinzentados não tinham nada para tragar e a grande mesa de carvalho imperial deu seu prestígio ao fogo e virou carvão vegetal.
Deixei a sala real e fui pelos corredores que por muito tempo trilhei, minha infância inteira foi neles, correndo de um lado a outro, perseguido pelos servos e atentando pelos velhos, agora nada tinha, as pinturas apagadas e os vitrais estourados. Lá, o branco foi enegrecido e as grandes obras levadas, o tom que se mantinha era o da tristeza, o do frio e da escuridão, unidas em uma só missão: me lembrar de que o passado era passado.
Cheguei a meu quarto, este também não fora poupado, parecia vazio e primitivo, uma caverna cinzenta e desabitada, quadro algum restou, minha cama, antes ornamentada, agora não passava de uma pira queimada. Os armários com minhas vestes e a escrivaninha com meus poemas tombaram, se romperam e tudo neles foi descartado. Apenas a ponta da pena foi poupada, seu metal estava ainda sujo, mas sua função se mantinha intacta.
Fui à biblioteca do grande palácio e de grande ela só tinha meu afeto. Suas gigantes estantes agora chegavam no quadril, suas escadas se tornaram somente pilhas de gravetos, os livros que tanto li e anotei, as magníficas obras que um dia colecionei, agora só existiam em minha mente como memórias de um passado recente. Meu pisar levantava uma fumaça cinzenta, os inúmeros livros e papiros estavam nela, pude me iludir em ver letras a voar, mitos que um dia fui a contas, os poemas que um dia tomei coragem de recitar, agora estavam no ar a dissipar.
Em meio aos escombros, tinha algo que se mantinha inteiro, um busto daquele que foi o primeiro, a face do fundador do feudo, o nobre único e verdadeiro, peguei sua cabeça em meus braços e a levei comigo em meio daquele desamparo. Andei pelas ruínas do palácio, pouco sobrou daquele estrago, mas havia lugares que se mantiveram intactos, era cômico para não dizer que é trágico. As salas que pouco se visita foram as únicas poupadas da agonia, entre elas a capela e a sala administrativa, lugares onde só havia a responsabilidade.
Já os lugares onde se tinha riqueza, estes foram os mais afetados. O cofre cheio de ouro, prata e joias foi deformado, as moedas que antes portavam o cunho real perdiam a face em uma curva anormal, igual às armas e armaduras, que perdiam sua estrutura na sala da guarda leal. A finura também foi abatida, a lã, a seda e o linho padeceram, os vestidos finos cerimoniais e os chapeis de peles vindas do outro mar tiveram seu último uso, na valsa incandescente que as levou a um ato inconsequente.
Outro ponto que foi poupado, que por infeliz desprezo deixei de lado, foi o sarcófago de meus antepassados, lugar onde meus entes estavam enterrados, lá se mantinha intacto, o calor lá não havia o explorado e nem o fogo tinha ousado. Meu tour encerrara, nada mais restara, fui à capela prestar meu último ato, agradecer ao Deus pacifico por ter me poupado, ajoelhado, agradeci pela chance dada e pedi clemência às almas que lá foram ceifadas.
Sai de dentro daquele castelo, como uma surpresa, os cidadãos lá haviam adentrado, em choro e desespero, pelo desastre continuado. Ver para eles foi como se o castelo estivesse assombrado, muitos acharam que eu estava morto assim como os outros terminando todo o legado, a chuva, assim como o susto dos campesinos, se dissipou, deixando a luz entrar. O chão estava encharcado, os muros derrubados e as torres imponentes do passado viraram as ruínas tombadas ao meu lado.
Pedi ajuda aos residentes, não para salvar os restos, mas para separar o perdido, lá carregar corpo a corpo, que até agora era indiferente um ao outro, não se sabia sua origem, sua beleza ou sua riqueza, somente que um dia foi uma pessoa. A única coisa que fora nos ajudar, foi um acessório ou outro que esta foi a portar, um anel de noivado, um pingente quebrado, uma herança materna ou mesmo uma faixa com poucas moedas.
Por elas, fiz o que pude fazer, separei meus irmãos de convidados e de servos, os meus campesinos recompensei, dei os restos do tesouro que guardei, tive de chamar o clero, não para enterrar meus queridos, mas para seus servos, eles assim o fizeram. Agora, meus iguais, meus irmãos que a nobreza deixou para trás, estes ainda precisavam de seu descanso, pelo fogo foi a melhor opção, os coloquei na grande pira para a chama fazer sua purificação, de lá só sobraram as cinzas e, das cinzas, sua estagnação. As coloquei em três potes, sendo cada um para uma geração.
Após o ato fúnebre, acabou com toda a razão, o silêncio veio e se encerrou com uma brisa forte, junto dela uma turbulência, consequência de anos de enganação. Agora tinha um fardo pesado, pesado ao ponto de sentir a dor em meu coração, tinha que zelar só por toda uma pequena nação, que por anos de soberba chegou a sua estagnação. As ações de meus irmãos me impediram de ter luto, minhas mãos não puderam tocar meu rosto rechaçado pela aflição, os vassalos que antes bajularam o primeiro herdeiro agora mostravam sua face, traíram a honra e a verdade, preferindo o poder do que a seriedade.
Muitos partiram pela ganância e os que sobraram foram difamados, ostracizados não por erros ou por vulgaridades, mas sim por sua única e fiel lealdade. No fim de tudo, já não tinha mais mordomia, morava em uma modesta casinha, ao lado do bailo das poucas terras que ainda tinha. De minha janela pequenina, apenas a visão da ruína, como um lembrete de tudo que ainda tinha e do desafio que viria, e agora naquela pequena casinha não tinha muito a se fazer, a comida era rala e sem energia, a bebida era sem graça e às vezes dava alergia.
Naquele lugar, minha mente foi a clarear, me senti igual àqueles que meus familiares tanto desdenharam, que tanto desprezaram, aqueles que por eles trabalharam e por nada eram recompensados. Senti grande culpa a me tomar, pois fui omisso e sem querer àquela transgressão, fui a concordar. Após tudo a acontecer, era hora de mudar, momento de sanar a dívida que tinha ao meu povo, ao meu Deus e ao meu ser.
Finalmente, pude ver a verdade, o desafio dado, a missão que a mim foi dada, que por mim seria sanada. Era hora de usar as cinzas, das cinzas de meu passado, para fazer a maior das pinturas, pintura esta que nada apagaria, pintura esta que nada restauraria… que somente criaria um novo mundo a ser traçado.