A tinta, matéria-prima de toda pintura, base de sua cor e seu frescor, com ela podia expressar a alegria e a tristeza, da riqueza à pobreza e o ódio ao amor. A tinta agora era os vestígios do pretérito, tempo em que me encontrei, as cinzas de meus irmãos e as ruínas de meu palácio. E seu pincel, o último sobrevivente, eu, que mantinha aquela culpa e responsabilidade presentes, que não vinham a paz, mas apenas o pesar, o pesar da dúvida, o pesar de um desafio tão grande quanto podia aguentar.
Dias se passaram desde o início de minha epopeia, um dia após o outro, resolvendo o descaso e a tragédia, resolvendo aos poucos a dívida e o embate. Cada vitória era perda de um bem, uma linha de terra, uma peça de ouro ou mesmo de um pertence que escapasse daquela miséria. No fim, segurei os pontos, a antiga terra se mantinha intacta, o descaso ainda se tinha, mas era melhor que nada, meu castelo nada valia, e dele não quero mais nada.
Dele tirei um acordo pomposo que muito me ajudara, ao invés de reerguer sua ruína, preferi dar um destino que melhor o aguardava, dei seu terreno ao clero pacifico em troca de ajuda e orientação, eles me deram de bom grado mesmo vendo minha situação. Pude sentir o primeiro alívio após dias de minha mais pura aflição. De lá, eles ergueram o templo, que muitos tinham uma boa visão, por cima da falésia, usando as antigas pedras, moldando uma nova construção.
De lá fui, de lá hei, peguei recursos e a terra lavrei, comecei baixo como os de meu passado que tanto honrei, meus vassalos, curiosos ficaram, dos atos que executei, como podia um duque fazer o mesmo de um camponês? E por que na falésia o castelo eu não guardei? Era claro que não sabiam o que presenciei, mas eu tinha uma missão que a todo custo cumprirei. Por aquelas terras dei meu sangue e meu ouro nelas plantei, delas brandi a riqueza e a proeza de me manter, e novamente, depois de tanto sofrer, uma nova casa fui a fazer.
Era simples, era modesta, tudo que lá tinha era o que me resta. Do ouro retorcido aos símbolos de religiosidade, de lá iniciei a primeira ação de fazer a tinta para começar minha nobre missão, usei o ouro para comprar a base, esta era o pó mais azul vinda das pedras lazúli, uma rocha perfeita, sagrada até mesmo em sua menor essencial. Dela misturei com parte das cinzas dos menores, fazendo dela um azul profundo, o cinza se fez escuro e da cor veio a primeira sombra da beleza daquele mundo.
A primeira cor foi feita e dela deu origem a mais três: do cinza veio o preto, do azul profundo veio o marinho e, por sua vez, o turquesa. De lá iniciou a tinta do céu e do mar, mas ainda faltava algo para aquele lugar, então não demorei e mais uma base comprei, dessa vez ela veio de longe de um império que muitos chamam de feérico. Dele vinha uma madeira de cor forte, um amarelo vivido e intenso, parecia quase a luz diurna a brilhar.
Dela extrai algo quase dourado, parecia o ouro feito do carvalho, dela fiz as cores quentes, da beleza do sol ao laranja incandescente, o brilho era resplandecente, dele fiz a luz e a beleza florescente. Mas ainda faltava algo focal, e dela usei os resquícios da urna central. Misturada, fiz uma cor bela, bronze forte e a sutil cor de terra. Essa mistura foi eficaz… mas ainda precisava de mais.
Esse mais veio tarde, em forma de sutis corais, as conchas e dos crustáceos, veio a bela cor, das costas Duardinas ela se solidificou, moídas, trituradas, transformadas em uma fina pasta. Era viscosa ao ponto de arrepiar, mas dela fazia uma cor que chegava a emocionar, um vermelho forte, intenso e presente, parecia a cor do sangue ou da rosa nascente. Dela fiz o brutal, a mistura dos antigos com a cor mais vital.
Seu extrato dava encanto, agora o vermelho chegava, e daquela trindade tudo se moldava. Aquela missão me custou dias… talvez meses e anos. Mas finalmente estava contemplando um novo início, o início para mim, um jovem soberano criando uma beleza, advinda de meios subterrâneos. A morte virou cor, o luto virou pintura, a ausência transmutou-se em um quadro e os deuses se voluntariaram em sua contemplação.
Agora tinha me preparado, faltavam poucos atos a serem terminados, meu dever com aquela terra estava aos poucos organizado, dos anos de serviço agora tudo estava apagado, eu erradiquei os erros do passado, mas faltava muito a se fazer com meu futuro desavisado. Fui seleto, fui direto, fui preciso, em minha trilha não perdi o juízo, até meu Deus me deu um aviso, de terminar meu mandato antes que gerasse prejuízo.
Fiz certo, fiz o que foi preciso, depois de tudo finalmente eu havia feito o que foi dito. As terras foram organizadas em meu serviço e finalmente descansaram para meu verdadeiro objetivo. Das ruínas do palácio ainda havia um vestígio, o templo, o topo, tomara, mas não tocava aqueles que já vinham partido, lá era o ponto dito, o ponto focal, local sacro e matrimonial, lugar onde se daria início.
Alguns relutantes e outros entendidos, o clero que meu palácio foi dado, ficou indeciso, não sabiam do que por mim foi dito, mas, por sorte dada, por eles foi acatado o meu mais singelo pedido. O templo seria a guarda da obra renomada que seria pintada em prol do Deus pacífico. De lá não havia questão, pergunta ou sugestão, pareciam cegos ao ato, como se imposto de fato.
Não compreendi o que havia acontecido com os servos do pacato, só sabia que agora precisa de mais um elemento claro, o lugar a ser pintado, o quadro sem cor que, por mim, a vida seria dada. Este era a última evidência, aquela para ser dada a mais pura crença que a fé me moveria… agora era hora do mais elevado desafio… o momento se aproximava… era agora, tudo ou nada…