Benjamin Sanchez odiava se atrasar, e naquela manhã, foi isso que aconteceu. Ele sabia que era culpa de si próprio, já que não deveria ter ficado jogando em seu computador até às duas da manhã, mas a coisa já estava feita.
Seu sexto sentido, chamado Vanessa Sanchez, sua mãe, lhe alertou que já tinham se passado vinte minutos do horário habitual que ele acordava. Benjamin levantou rápido, quase caindo ao tropeçar nos tênis espalhados no quarto. Vestiu a calça do uniforme na pressa e foi para o banheiro escovar os dentes e lavar o rosto. Voltando para o quarto, ele vestiu a camiseta branca com o brasão de sua escola e o casaco azul marinho que fazia parte das vestimentas, calçou os tênis com as meias trocadas – mas pelo menos as duas eram brancas. Pegou a mochila, a única coisa 100% organizada desde o dia passado, e desceu as escadas correndo. Nem parou para tomar café, apenas cumprimentou os pais e a avó, saindo de casa, como se estivesse numa maratona.
Felipe Harmon também odiava se atrasar e odiava atrasos. Ao contrário do seu melhor amigo meio irresponsável, ele teve uma noite de sono completamente normal, acordou no segundo toque de seu despertador e se arrumou com toda a calma do mundo, tendo um tempo livre até para ler mais algumas páginas do seu atual livro. Quando tinha que sair, ele guardou o livro e foi para a garagem, se despedindo da mãe que também saia para trabalhar e pegando carona com o pai.
Em frente a escola, se despediu do pai. Procurava por um dos melhores amigos, Dominic ou Benjamin, ocasionalmente cumprimentando outros conhecidos. Nenhum dos dois tinha chegado ainda – o karma de sempre ser o primeiro a chegar. Sendo assim, foi para a biblioteca e ficou por lá com seu livro e os fones de ouvido, esperando pelos dois.
O atraso de Dominic Soto era justificável, por ter dormido na casa dos avós que ficava em Luna City, uma cidade afastada da capital Yellow Wood. Pelo menos ele e a irmã, Alice Soto, já estavam na estrada trinta minutos antes do horário em que a aula começava.
Benjamin deu o máximo de si para chegar na escola. Não era tão longe de sua casa, mas naquele dia parecia que ficava a quilômetros de distância. Ben pegou todos os atalhos que podia, esbarrou em várias pessoas e se esticava na tentativa de ver logo o portão da escola. E, quando a sorte sorriu para ele, Ben parou para recuperar o fôlego, secou o suor da testa e caminhou rápido até seu destino.
Sorte ou azar?
Sanchez foi parado de súbito, o puxão para trás o assustou. Voltou um passo assim que uma mão gelada segurou seu pulso com firmeza. Era uma senhora de sessenta anos ou mais. Ben conseguiu ver um pouco da pele enrugada, os cabelos grisalhos e volumosos por baixo de um capuz de coloração preta. Ela parecia ter saído de uma história distópica.
— O que tá fazendo? Me solta!
— Querido, não seja tão rude, — ela o encarou. — Calma. Eu tenho algo para você.
— Eu te conheço, por acaso? — ele tentou se soltar mais uma vez, mas seu toque era forte e firme.
— Ainda não — ela sorriu — Por favor, aceite o meu presente.
— Eu não quero nada. Pode me soltar agora?!
A senhora o ignorou, pondo a destra no bolso de sua roupa, enroscando os dedos na cordinha e mostrando um colar para Ben.
O colar era uma cordinha preta ajustável que prendia um pingente muito parecido com uma bolinha de gude. Dentro dele, haviam pontos brancos, como estrelas com uma coloração azul escuro no fundo, pontos mais escuros como asteroides, etc. Era um universo todo em uma esfera tão pequena.
— É um presente. Ele é mágico!
Ben quis muito rir naquela hora, mas se controlou. Ela tinha que ser doida, não tinha outra explicação. Magia, por mais legal que fosse, era uma coisa que não existia, e Benjamin sabia bem disso.
— Só vou te soltar se aceitar o meu presente — ela sorriu para ele. — Confia em mim, garoto! Isso aqui pode te ajudar com tudo que você precisar.
Sem ter outra saída, ele suspirou e olhou para ela.
— Tá, tá — ele pegou o colar das mãos da senhora, meio impaciente com toda aquela situação e por ter sido manipulado daquele jeito. — Vou ficar com ele. Quanto é?
— É de graça! Você não vai se arrepender!
Ben olhou para ela mais desconfiado do que antes. Um colar “mágico” de graça?
— Então tá…
O garoto guardou o colar no bolso da calça e voltou a correr para conseguir entrar na escola antes que o portão se fechasse. Imediatamente, ele foi procurar Felipe, porque costumavam conversar sempre antes de irem para as suas salas. Ben o encontrou no lugar mais previsível de todos: a biblioteca.
Felipe estava totalmente diferente dele: com fones de ouvidos, o uniforme bem alinhado no corpo baixo, o cabelo bonito bem penteado e sentado numa posição até muito chique. “Como pode uma pessoa ser tão bonita assim?”
Sanchez foi até ele, conseguindo ouvir de longe a música que tocava nos fones de Felipe. Tocou no ombro direito do menino e foi para o lado esquerdo, só pra ter a graça de vê-lo virar para o lado errado procurando quem tinha feito aquilo. Antes de Felipe se virar na direção de Ben, ele já estava sentado na cadeira do seu lado.
— Benjamin Sanchez está há zero dias sem se atrasar! — Felipe brincou, sorrindo e tirando seus fones, marcando a página do livro para continuar a leitura depois e deixando o objeto na mesa.
— Pelo menos, senhor Harmon — ele forçou a formalidade de propósito —, eu tive ótimos vinte minutos extra de sono, tá bom?
— Eu te avisei…
— Eu sei que você me avisou pra dormir cedo. Eu sei — Benjamin nem deixou ele completar a sua fala.
Felipe sorriu, se sentindo vitorioso.
— Então tá — ele virou um pouco mais sua cadeira na direção de Ben, podendo se sentar mais confortavelmente. — Como você tá?
— Eu tô bem, mas cansado de ter corrido. E você? O que aconteceu aqui enquanto eu tava fora?
— Eu tô bem. Não sei de nenhuma novidade, fiquei com os fones o tempo todo.
— Escutando músicas no máximo — Benjamin pontuou. — Cara, dava pra escutar a sua música lá da porta!
— Não exagera!
— Mas é verdade!
Felipe continuou insistindo que Benjamin não sabia do que estava falando. Já que seria uma luta perdida, Ben mudou de assunto, perguntando o que ele estava achando do livro que estava lendo e Felipe se pôs a falar, mas para Ben, aquilo não era um problema. Ele não lia tanto quando Lipe, só se interessava mais pelos quadrinhos e mangás, mas entendia a paixão do outro pela leitura.
Benjamin deitou a cabeça na mesa depois que Felipe parou de falar sobre os livros e reclamou que teria aula de matemática e química no mesmo dia. Felipe desejou boa sorte para ele, porque também não gostava muito das matérias.
— Será que posso fugir pra sua sala hoje? Você tem inglês, e a professora é bem chata, mas é melhor que matemática e química.
— Eu diria que sim, mas ninguém vai deixar — Felipe falou e depois mexeu nos cabelos do Sanchez quando ele fingiu um choro.
De vez em quando, Felipe tinha que se segurar com esses tipos de ações. O toque, o olhar, a forma de falar… Era tudo tão óbvio, mas Benjamin ainda não parecia ter percebido. Ficava cada vez mais difícil não deixar os sentimentos transbordarem do peito, sendo que eles já estavam guardados ali há muito tempo.
Antes que Harmon começasse a pensar em coisas que o deixariam magoado, agradeceu internamente por ouvir o sinal tocar. Felipe pegou sua mochila e seu livro, sendo o primeiro a se levantar. Benjamin apenas seguiu os seus passos, saindo da biblioteca e o acompanhando até a sala de francês. Os dois se despediram na porta, e não teve outra, Benjamin precisava ir para a aula de matemática se não quisesse ficar com uma nota vermelha.
As aulas passaram normalmente naquela manhã. Benjamin sobreviveu às aulas de exatas que ele tanto odiava; e Felipe e Dominic estavam super bem depois de ter a maioria dos períodos com aulas das matérias de humanas – Felipe teve que aguentar o amigo trocando mensagens com a menina que ele gostava na aula de inglês inteira.
Todos os alunos saíram rapidamente das salas quando o sinal de saída tocou. Ben esperou seus colegas saírem para poder ir sem problemas, por último, até o seu armário para trocar os materiais e já deixar tudo pronto para o dia seguinte. Já Lipe e Nic saíram juntos, indo até o armário do Harmon enquanto falavam de suas paixões talvez não correspondidas.
— Quando você vai contar pra ele? Já fazem dois anos, dois anos, Felipe! — Dominic exclamou. Ainda ficava surpreso com aquela informação.
— Você tá contando por mim, por acaso? Eu ainda tô criando coragem, tá bom? — Lipe destrancou a porta enquanto Dominic, preguiçosamente, se apoiava no armário do lado. — E quando é que você vai contar pra Lara que também é afim dela? — ele sorriu assim que viu a expressão de desespero do seu amigo pelo nome da menina ter sido dito em voz alta.
— Fala baixo, diabo! — ele olhou para os lados para ver se alguém tinha escutado aquela parte da conversa, mas todos os outros alunos estavam muito ocupados cuidando de si mesmos para xeretar a conversa dos dois. — Ia dizer que vou contar quando você contar, mas é capaz de eu morrer sem ela saber.
— Então, é melhor você se apressar e contar logo! — Felipe já estava com todas as suas coisas na mochila. Trancou seu armário novamente, e saiu caminhando com o seu amigo.
— Por que você tem tanto medo de contar pra ele? Não é como se ele não gostasse de ti de volta — Soto comentou a coisa que ele mais tentava deixar claro para o amigo.
— Para de colocar coisa na minha cabeça. Não é como se você fosse o super corajoso — Felipe o provocou e olhou para o mais alto. — Como você vai ficar se descobrir que a Lara não é a fim de você, ou que já gosta de outra pessoa?
Soto demorou um pouco para responder, realmente considerando aquela possibilidade. Depois de respirar fundo, ele respondeu:
— É… Tá, ok, você tem razão. Mas e se ela gostar de mim? E se o tal-bonitinho também gostar e quiser ficar só com você? Não vai ser bom pra caralho? — Dominic falou, dessa vez, entusiasmado com as ideias.
— Seria, e muito. Mas isso soa contos de fadas demais pra mim.
Dominic revirou os olhos com aquele comentário tão sem esperança de Felipe, mesmo sabendo que ele estava certo de sentir tanto medo e receio, porque ele sentia a mesma coisa em relação à Lara.
Já estavam no pátio da escola, próximos do portão de saída. Felipe tentava procurar Benjamin entre os vários alunos amontoados, saindo às pressas. Benjamin estava atrás dos dois montando seu plano maligno de como dar um susto neles, então optou pelo mais básico: chegando por trás deles e falando algo.
O seu plano funcionou somente com Felipe, Dominic era meio imune à sustos. Ben não sabia como.
— Seu retardado! — Felipe exclamou, rindo do próprio susto depois.
— Aí, meu Deus, que susto — Dominic sorriu enquanto tirava sarro de Benjamin.
— Desculpa, não podia perder a oportunidade — Benjamin falou e sorriu. — Mas, e aí, tudo certo pro passeio de mais tarde? — ele perguntou se referindo ao que tinham comentado no recreio.
Benjamin, Dominic, Felipe e Lara passeando juntos no parque de diversões da cidade. Até parecia um passeio de casais.
— Por mim, sim. E a Lara ainda vai confirmar — Dominic informou.
— Eu vou — Felipe olhou para o amigo. — Se a Lara não for, chama a sua irmã. Adoro a Alice.
— E eu não, né?
Felipe riu do drama que Dominic fez, e o mais alto logo foi se afastando dos dois garotos, dizendo que tinha compromissos importantes com a família. Ben e Felipe se despediram e continuaram a caminhada para o lado oposto, repassando que horas se encontrariam no parque, e como Felipe queria muito que Lara fosse para poder ajudar Dominic a ter alguma atitude com ela.
— Você quer que eu te acompanhe até a sua casa? — Benjamin perguntou.
— Não, relaxa. Eu vou sozinho. Mas obrigado, de verdade.
— Tem certeza?
— Eu tenho — Felipe confirmou. — Calma, a gente vai se ver às seis, não vai ficar com tanta saudade de mim até lá.
— E com quem você acha que eu vou reclamar do professor de matemática? — Ben tentou ser engraçadinho, mesmo aquela fala tendo um toque de verdade.
— Pode falar pra sua avó. Tô com saudade dela, aliás.
— Ela também. Enfim… Eu vou pra casa. Até mais tarde.
— Até, Ben.
Felipe se virou e continuou caminhando pela calçada. Ben também seguiu o seu rumo, andando para o lado contrário, já que era o sentido da sua casa.
Benjamin não conseguiu dar mais de quinze passos na direção que deveria. Ele foi obrigado a parar quando ouviu um estrondo atrás de si, como uma batida de carro. Antes de se virar, ele já imaginava o pior. E antes mesmo de acalmar o seu pessimismo, ele viu Felipe no chão, atingido pelo carro, sem ter conseguido chegar na calçada do outro lado da rua.
Benjamin quis gritar, mas não conseguiu. A única coisa que fez foi correr desesperadamente até o garoto inconsciente no chão. Ben puxou o corpo do mais novo para mais perto, o sangue preenchendo o asfalto. Chamou e chamou várias vezes por Felipe, o chacoalhando mesmo sabendo que aquilo não era aconselhável. Felipe não respondia de jeito nenhum.
Muitas pessoas tinham se juntado na volta para saber o que tinha acontecido. O trânsito estava parado. Quando notou as pessoas à sua volta, Ben gritou para que algum curioso chamasse por uma ambulância.
— Felipe, acorda, por favor. Me dá uma resposta…
Foi aí que ele lembrou do colar que tinha ganhado, e de toda a situação bizarra que passou pela manhã, antes de chegar na escola. “Confia em mim, garoto! Isso aqui pode te ajudar com tudo que você precisar”. Era ridículo, ele sabia, mas ele estava desesperado, precisava que Felipe ficasse bem. Estava com medo de a ambulância não chegar, estava com medo de Felipe morrer…
Desajeitadamente, ele puxou a cordinha do colar do bolso da calça e o deixou em cima do peito de Felipe, segurando o objeto ali, com o pingente no meio da palma da sua mão, esperando que algo acontecesse. O que, exatamente? Ele não fazia ideia.
“Magia ou loucura?”
Ben já estava pensando em qual xingamento usaria primeiro para aquele colar idiota, querendo jogá-lo fora. Mas foi quando sua esperança já tinha acabado que o objeto reagiu. Uma luz começou a se formar, transpassando entre os seus dedos e o peito de Felipe, ficando cada vez mais intensa. Quando abriu a sua mão, conseguiu ver alguns pontos se movendo em círculos dentro do pingente. O brilho ficou tão, tão forte que ele não conseguia enxergar mais o colar, nem Felipe, nem mais nada que estivesse por perto.
E, como num passe de mágica, Benjamin e Felipe não estavam mais naquele cenário trágico de um acidente de trânsito.