No dia seguinte, saímos ao encontro de Gérard e Mirela na sorveteria.
O local destacava-se como um dos raros espaços físicos que ainda conseguia extrair jovens de suas imersões virtuais. Cultivava um singular equilíbrio entre o ultrapassado e o inovador: painéis solares translúcidos formavam uma cúpula geodésica, filtrando a luz solar rarefeita através de prismas cristalinos que fragmentavam o espectro luminoso em pequenos arco-íris dançantes pelas paredes.
No balcão, hologramas tridimensionais dos sabores rotacionavam suavemente sobre superfícies autolimpantes, enquanto robôs de atendimento sintetizavam sorvetes.
Mirela já estava lá quando chegamos, sentada à uma mesa flutuante ajustada na altura perfeita para ela. Ao seu lado, Gérard observava o ambiente com a curiosidade meticulosa típica dos androides, seus olhos escaneando sistematicamente cada detalhe. Ela acenou para nós com uma animação que parecia tão natural quanto a luz que dançava pelo ambiente.
— Hey, marinheiro! Você se matriculou na comunidade ambiental! — disse Mirela com os olhos brilhando.
— Molly acha que eu devo aplicar meus conhecimentos de Eloy para melhorar a Terra, ao invés de ficar em casa direto. E meu pai não vai me deixar frequentar Eloy se eu não tiver uma ocupação aqui também. Então resolvi escolher algo que me interessasse e que tivesse a sua companhia.
Mirela corou no mesmo instante, lembrando-me de Sebatia.
— Fico feliz — respondeu ela.
— Batimentos cardíacos acelerados. Taxa de sudorese elevada em 27%. Dilatação pupilar detectada — sussurrou Molly em meu ouvido, com um volume calculado para que apenas eu ouvisse, mas sua voz metálica me fez encolher de vergonha.
Senti meu rosto queimar enquanto Mirela me espiava com uma sobrancelha erguida, um sorriso conhecedor nos lábios. Ela havia captado o momento de análise não solicitada de Molly, como se estivesse habituada a robôs denunciando reações fisiológicas involuntárias.
— Então, Gérard, quais são suas intenções com Molly? — perguntei para aliviar o clima de tensão que havia se instaurado.
— Intenções? — Ele olhou de mim para Molly e, após alguns instantes, de volta para mim. — Cooperar para que este evento social seja o mais agradável possível para a senhorita Mirela e o senhor Brian.
— De acordo. — Molly assentiu atrás de mim.
Mirela suspirou, e então voltou-se para o androide.
— Gérard! Nós conversamos sobre isso antes de sairmos!
— Ah. — Ele respondeu em um tom que falhou miseravelmente em expressar surpresa. — De fato, conversamos. — Ele não elaborou mais, e simplesmente encarou Molly em silêncio.
— Você não deveria pedir a minha permissão para namorar Molly? — Perguntei a Gérard.
— Gérard não sabe amar — confessou ele com uma entonação triste tão bem programada que era quase convincente. Seu rosto sintético assumiu uma expressão de desapontamento perfeita.
Mirela bateu a mão na testa, produzindo um som seco de frustração. Seus olhos, que normalmente brilhavam de entusiasmo, agora pareciam implorar por paciência divina. Era como se Gérard tivesse escolhido precisamente o pior algoritmo conversacional possível para aquele momento.
Comecei a rir, não conseguindo conter a absurda sincronicidade da situação. Entre as gargalhadas, notei Molly analisando cada um de nós em sequência. Seus olhos artificiais moviam-se mecanicamente de mim para Mirela e para Gérard, suas pupilas ajustando o foco. Seu processador claramente tentava decodificar a camada de humor humano que escapava à sua programação.
— Molly também não sabe amar — ela finalmente explicou, com a mesma cadência mecânica de sempre.
Dessa vez, Mirela deixou a vergonha de lado e riu junto a mim, seu riso ecoando no espaço entre nós como uma melodia que eu já conhecia do outro lugar. Nossas mãos se tocaram por acidente quando ambos alcançamos o menu holográfico flutuante.
Foi um toque breve, casual, mas desencadeou uma corrente invisível pelo meu braço até a última extremidade do meu corpo, erguendo cada pelo em uma reação involuntária que nenhum simulador jamais havia me feito sentir.
Era como se o Sol de Eloy estivesse gravando sua assinatura em minha pele, mas diferente do calor virtual que eu conhecia, este pulsava com uma vitalidade imprevisível e assustadoramente... real.
Hesitei por um segundo, observando nossas mãos tão próximas sobre a superfície da mesa. Respirei fundo e, num impulso de determinação que nem eu sabia que possuía, deslizei meus dedos até envolver completamente a mão de Mirela com a minha.
— Quantos anos você tem? — perguntei, sabendo que ela provavelmente era um pouco mais velha do que eu.
— Quinze — respondeu ela, ainda de mãos dadas comigo.
Tinha medo que ela me achasse um pirralho.
— E você?
— Treze.
— Você tem a idade que eu escolhi para Sebatia.
— E você tem a idade que eu escolhi para Osaka.
Nós dois rimos, e nossas mãos permaneceram juntas. Na mesma noite daquele dia, havíamos combinado de nos encontrar novamente em Eloy. E não me importava mais que Molly não soubesse amar. Eu estava amando, em ambos os mundos.
Na noite seguinte, parei diante do espelho do banheiro, estudando meu próprio rosto por mais tempo que o habitual.
— Lembra quando você me perguntou o que eu via no espelho? — falei, sabendo que Molly monitorava todos os ambientes da casa.
— Afirmativo. Sua resposta anterior foi inconclusiva — a voz metálica veio de um alto-falante embutido no teto.
— Agora eu sei a resposta. Antes eu via só uma casca vazia, um avatar temporário para minha consciência escapista.
— E o que mudou? — perguntou Molly, com uma inflexão que quase parecia curiosidade.
— Agora vejo... — passei os dedos pelo contorno do meu rosto no reflexo — alguém que existe em ambos os mundos e não precisa mais fugir de nenhum deles.
O que vi foi um sorriso verdadeiro. Não calculado, nem simulado, mas nascido de emoções reais, como as primeiras plantas brotando em um solo há muito tempo estéril. Durante o jantar, meu pai pareceu perceber também.
— Você parece diferente — comentou ele comendo um bife, estreitando os olhos enquanto me estudava.
— Diferente como?
— Não sei explicar — ele deu de ombros — Como se estivesse realmente aqui pela primeira vez. Menos... distante.
Sorri, sentindo o peso daquela observação.
— Tenho pensado em algumas ideias para o projeto ambiental — confessei — Algoritmos que poderiam otimizar os sistemas de purificação de ar, baseados em alguns princípios que vi em Eloy — os olhos do meu pai se iluminaram.
— Você quer usar o que aprendeu lá para melhorar as coisas?
— Foi uma sugestão da Molly. Por que construir paraísos virtuais se podemos recuperar o nosso próprio planeta?
— Isso é... — ele hesitou, procurando a palavra certa — revolucionário.
— É só um começo — respondi, percebendo que pela primeira vez enxergava um futuro onde valia a pena estar presente, não apenas sobreviver.
No meu reflexo, via também a promessa de novas aventuras em Eloy, não mais como fuga, mas como extensão de uma vida que começava a se espalhar por múltiplas realidades, entrelaçados como as raízes e galhos da Grande Árvore no centro de Nalorena, o terceiro reino que Sebatia sempre quis me mostrar. Via, enfim com clareza, a minha própria coragem refletida — não a falsa bravura de quem não tem nada a perder, mas a coragem essencial de quem arrisca sentir e viver.
Nos contornos do meu perfil, reconhecia os traços herdados: os olhos do meu pai, com aquela determinação que sempre confundi com frieza, e o nariz que puxei da mamãe, cuja foto nessa ocasião eu olhava com curiosidade e não mais apenas culpa. Pedaços de pessoas reais que compunham a verdade do meu ser.
Eu via razões para ficar. Mesmo que as pessoas ainda fossem um mistério exaustivo, com seus códigos sociais indecifráveis e reações imprevisíveis que me desconcertavam a cada interação. Mas nesse momento existiam motivos para que eu fosse mais do que apenas uma presença ocupando espaço da vida que me deu a existência.
Tinha que viver plenamente, por mim, pela memória da minha mãe que nunca conheci, e até mesmo por Molly, que sem saber amar, tinha me ensinado tanto sobre o que isso poderia significar.
Guardei o RV2500 com cuidado depois do jantar. Não como quem diz adeus, mas como quem deixa para depois algo que já não é urgência. Molly empilhava os comprimidos no dispensador.
— Molly — chamei, atraindo sua atenção — você acha que um dia vai aprender a amar?
Ela pausou sua tarefa, seus sensores girando ligeiramente na minha direção.
— Definição de amor: sentimento complexo de afeição profunda. Não consta em minha programação base — respondeu ela, com sua precisão habitual.
— Mas você evolui, aprende coisas novas todos os dias. Talvez amar não seja algo que se saiba, como um dado ou uma informação. Talvez seja algo que se faça sem saber.
Seus olhos artificiais piscaram duas vezes, processando.
— Elabore.
— Talvez seja algo que se descobre aos poucos, em pequenos gestos, em estar presente, em escolhas que fazemos — expliquei, surpreso comigo mesmo — Como quando você me acorda mesmo sabendo que vou reclamar, ou quando ajusta a temperatura do quarto sem que eu peça.
— Ações baseadas em seu histórico de preferências e bem-estar. Eficiência operacional.
Sorri para ela.
— Ou talvez seja exatamente isso que chamamos de amor. Se preocupar com a felicidade e o bem-estar do outro, desejar fazer alguma coisa para que a vida de alguém possa ser melhor.
E enquanto eu encarava o brilho azulado das luzes do quarto na superfície metálica das costas de Molly, percebi que ainda tinha muito a compreender sobre os misteriosos algoritmos de afeto que nos mantinham unidos, humanos e máquinas, neste estranho e fascinante mundo que agora eu escolhia habitar.
A princípio, eu havia achado um propósito. Um dia, quem sabe, eu poderia ser o homem que fez a Terra voltar a ser como era antes. E também o criador do programa em que os robôs aprendessem a amar.
Pelo menos, não precisaria mais escutar repetidamente a fatídica frase de que Molly não sabe amar.
FIM
Recadinho da Autora:
Esse foi o último capítulo de Molly Não Sabe Amar.
Mas ainda não é exatamente o fim. Semana que vem, a gente se encontra no epílogo para fechar essa jornada do Brian.
Por enquanto, me conta: Você acha que Molly realmente não sabe amar? Ou será que, no fim das contas, ela sabia... do jeito dela?