O casal Del Fontes parecia ter saído de um molde único, como se compartilhassem os mesmos traços genéticos. O homem tinha um nariz longo e afilado que quase parecia cortar o ar à sua frente, enquanto a mulher exibia bochechas largas e redondas, como se tivessem sido esculpidas por uma mão descuidada. Essa diferença sutil era o único detalhe que os distinguia. Já Mirela, a filha, parecia diferente deles. Não havia nada artificial em sua aparência, nenhum traço exagerado ou modificado, como se ela ainda não tivesse sucumbido às pressões da moda ou da cirurgia estética. Seu rosto era jovem, mas carregava uma expressão que sugeria uma maturidade além de seus anos — talvez até mais velha do que eu, apesar de sua idade real ser desconhecida.
O jantar transcorreu como qualquer outro evento social tedioso: sobre a mesa flutuavam cápsulas alimentares holográficas, projetando imagens tridimensionais dos pratos antes mesmo de serem servidos. Cada convidado tinha à sua frente um display personalizado que ajustava automaticamente o cardápio com base em suas preferências nutricionais e restrições alimentares. Ao toque de um gesto no ar, as cápsulas liberavam microdoses de alimentos molecularmente balanceados, transformando-se em texturas e sabores específicos antes mesmo de chegarem aos pratos térmicos individuais.
Meu pai pigarreou, ajustando sua postura à cabeceira da mesa como se estivesse prestes a fazer um anúncio importante. Ele sorriu para os Del Fontes antes de começar:
— Vocês já ouviram falar sobre o incidente com o Brian? — perguntou, como se estivesse falando sobre algo trivial, como o clima.
Eu mantive os olhos fixos no brilho metálico da mesa, tentando me tornar invisível. Mas sabia que todos estavam olhando para mim agora.
— Incidente? — repetiu o senhor Del Fontes, inclinando-se levemente para frente. Sua expressão era uma mistura de curiosidade e preocupação forçada.
— Sim, ele... teve um pequeno colapso recentemente. Nada grave, claro. — Meu pai fez um gesto displicente com a mão, como se estivesse minimizando algo que obviamente não era mínimo. — Foi enquanto ele estava no RV2500. Passou horas conectado, sem comer nem beber, até que acabou desmaiando.
— Desmaiando? — A voz da senhora Del Fontes soou aguda, quase alarmada. Ela lançou um olhar rápido para mim, seus olhos cheios de pena.
— Bem, ele está bem agora — continuou meu pai, ignorando completamente o desconforto crescente na sala. — Mas isso me fez pensar... É realmente seguro deixar crianças passarem tanto tempo nesses sistemas?
O senhor Del Fontes franziu a testa, como se estivesse considerando algo profundamente sério pela primeira vez. Ele gesticulou com as mãos enquanto falava:
— Na verdade, isso é uma questão que tem surgido bastante no tribunal ultimamente. Muitos casos de usuários excessivamente dependentes do RV2500.
— Exatamente! — exclamou meu pai, animado por encontrar alguém que compartilhasse sua visão. — Acho que deveríamos exigir que essas empresas instalassem algum tipo de sistema de segurança. Algo que desconectasse automaticamente o usuário após um certo período.
Mirela, que até então tinha permanecido em silêncio, levantou uma sobrancelha, como se finalmente tivesse encontrado algo interessante naquela conversa entediante.
— E você acha que isso resolveria alguma coisa? — perguntou ela, sua voz calma, mas com um tom de desafio.
— Claro que sim! — respondeu o senhor Del Fontes, gesticulando com entusiasmo. — Seria como um airbag digital. Se o usuário exceder o limite de tempo recomendado, o sistema simplesmente o desconecta. Problema resolvido.
Eu soltei uma risada baixa e forçada, incapaz de me conter. Todos os olhos se voltaram para mim.
— Um "airbag digital"? — murmurei, erguendo os olhos pela primeira vez. — Você acha que meu problema é só... ficar muito tempo conectado?
Houve um breve silêncio constrangedor. O senhor Del Fontes se remexeu na cadeira, claramente desconfortável.
— Bom, não é assim tão simples, eu sei. Mas é um começo.
— Talvez o problema não seja o tempo que eu passo lá — respondi, minha voz subitamente mais alta do que pretendia. — Talvez o problema seja o que eu encontro aqui quando volto.
A mesa ficou em silêncio. A senhora Del Fontes baixou os olhos para o prato, enquanto Molly ajustava discretamente a iluminação da sala, como se tentasse dissipar a tensão.
— Não precisamos ser dramáticos, Brian — disse meu pai, sua voz firme, mas com um traço de irritação.
— Não estou sendo dramático — retruquei, sentindo o calor subir pelo meu pescoço. — Estou dizendo que talvez o problema não seja o RV2500. Talvez o problema seja... tudo isso.
Apontei vagamente para a mesa, para os painéis holográficos, para as cápsulas alimentares flutuando ao nosso redor. Era como se eu estivesse tentando apontar para algo invisível, mas que todos deveriam conseguir ver.
Mirela me observou por um momento, seus olhos inexpressivos, mas com um brilho estranho de compreensão. Então, ela desviou o olhar, como se decidisse que aquilo não era problema dela.
Eu queria desaparecer. Queria estar de volta ao RV2500, onde ninguém me olhava com pena, onde ninguém discutia soluções para algo que eles nunca poderiam entender. Mas ali, naquela sala fria e iluminada por painéis holográficos, eu era apenas um garoto problemático.
Enquanto os adultos discutiam minha vida como se fosse um caso de tribunal, eu cutucava distraído o que restava da minha comida no prato. Cada garfada parecia pesar toneladas na minha língua, não pelo sabor — quase inexistente —, mas pela vergonha que me sufocava. Eu podia sentir o olhar de Mirela fixo em mim, como um holofote. Ela não piscava, nem desviava os olhos, como se tentasse decifrar algo que ninguém mais conseguia ver. Era como se eu fosse um extraterrestre. Eu podia sentir minhas bochechas queimarem sob seu escrutínio.
Quando o jantar finalmente terminou, os adultos migraram para o sofá na sala adjacente, onde Molly servia delicadamente xícaras de café ajustado ao paladar de cada um.
Meu pai, sem qualquer consideração pelo meu desconforto, sugeriu com um sorriso forçado:
— Brian, por que não leva Mirela para jogar xadrez?
Olhei para ela, incerto do que fazer ou dizer. Minhas mãos estavam suadas, e eu sentia o peso do silêncio entre nós crescendo como uma parede invisível.
Mas então, para minha surpresa, Mirela sorriu — um sorriso breve, mas genuíno — e deu um passo à frente, dizendo:
— Vamos lá!
Indiquei o caminho com um gesto hesitante e segui um passo à frente dela, tentando ignorar o eco distante das vozes dos adultos ao fundo. Ainda podia ouvir trechos de suas conversas: "O garoto que preferiu o virtual ao real!". Pelo menos agora eu não era mais o centro das atenções.
Chegamos ao tabuleiro de xadrez, uma estrutura holográfica que pairava sobre uma mesa de vidro transparente. Peças translúcidas brilhavam com um leve tom azulado, projetando sombras etéreas sobre a superfície. Enquanto nos sentávamos, Mirela inclinou-se ligeiramente para frente, seus olhos curiosos fixos nas peças antes de pousarem em mim.
— Você tem amigos lá? — perguntou ela, sua voz calma, mas carregada de algo que eu não conseguia identificar. Curiosidade? Pena? Ou talvez algo mais profundo?
Eu hesitei, meus dedos tamborilando nervosamente na borda da mesa. Não queria responder, mas também não queria parecer rude. Olhei para ela, evitando seu olhar direto, e murmurei:
— Tenho um trabalho e uma amiga.
Mirela ergueu uma sobrancelha, claramente esperando mais. Quando percebeu que eu não continuaria, ela soltou um suspiro quase imperceptível e disse:
— Parece mais interessante do que isso aqui.
Balancei a cabeça em confirmação.
— Seu trabalho com certeza não é um serviço tão desgastante — continuou Mirela, inclinando-se ligeiramente sobre o tabuleiro holográfico enquanto me observava com atenção. — Eu sei que todos os trabalhos lá têm um limite máximo de duas horas por dia. Então, como você ficou conectado por três dias seguidos?
Cada palavra dela parecia uma flecha, atingindo diretamente o ponto onde eu mais queria evitar. Minha vontade era levantar e sair dali, escapar da presença dela antes que suas perguntas invadissem ainda mais espaço na minha mente. Esse era o problema com as pessoas do mundo real: elas apareciam na sua vida e já achavam que tinham o direito de questionar tudo, como se fossem juízes designados para avaliar cada erro que você cometeu.
Mas eu sabia que não podia simplesmente sair. Molly estava em algum lugar da casa, provavelmente monitorando até mesmo o tom da minha voz, pronta para intervir caso eu cometesse qualquer "deslize social". Para evitar mais uma reprimenda, murmurei um comando rápido:
— Tabuleiro, iniciar partida.
As peças holográficas se ordenaram instantaneamente, brilhando mais forte com aquele tom azulado flutuava entre nós. O silêncio que se seguiu foi quase incômodo, mas Mirela não pareceu se intimidar. Ela sorriu de novo, dessa vez com um traço de provocação nos lábios, e disse:
— Vamos lá, marinheiro. Você pode se abrir para mim.
Eu encarei o tabuleiro por um momento, tentando processar aquelas palavras. O tom, a forma, as palavras. Aquelas exatas palavras. Um arrepio subiu pela minha coluna enquanto meus olhos iam lentamente de encontro ao olhar dela.
Não era só o que ela havia dito, mas como ela tinha dito. Sua voz carregava uma leveza familiar, como se estivesse tentando me confortar ao invés de me pressionar.
O sorriso dela começou a se expandir enquanto via a surpresa no meu olhar.
E então me dei conta: Mirela, com sua blusa fechada até a gola, saia que descia até os joelhos e cabelo preso em um coque impecavelmente casto, acabara de falar comigo exatamente como Sebatia costumava fazer, a garota por quem eu havia me apaixonado no RV2500.
Por um momento, senti como se o ar tivesse sido sugado da sala. Meu coração acelerou, mas não de forma ruim — era mais como se algo dentro de mim tivesse reconhecido uma semelhança inesperada. Talvez fosse o jeito dela de inclinar a cabeça quando falava, ou o modo como seus olhos pareciam enxergar além das minhas respostas evasivas. Fosse o que fosse, aquilo me deixou em êxtase.
Era ela.
Mirela era Sebatia.
Recadinho da Autora:
Nem toda refeição em família termina em digestão tranquila.
Principalmente quando o cardápio inclui julgamentos, diagnósticos e um toque de hipocrisia gourmet.
Se já te olharam como se você fosse um erro de programação, esse capítulo vai doer — no bom sentido.
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