Senhora Velha e Boris se conheceram quando tinham 17 anos e desde então estão
juntos. Esse raro encontro de almas começou na escola em que estudavam. De todos
os desafios que sofreram juntos, muitos deles em um plano que poucos têm acesso, a
transformação de Boris em um cachorro foi o mais radical. Para os livianos, isso pode
parecer um gesto de submissão — virar cachorro. Mas nós sabemos o que realmente
provocou a mudança. Velha jamais se sentiu confortável com a escolha do marido, mas
a respeitou. Liberdade, amor e alegria: esse foi o juramento que fizeram quando se
casaram.
Elegantes, educados e donos de uma pequena fortuna, que usavam com discrição,
eles formavam o casal mais badalado de Newport. A sociedade jamais soube da
transformação de Boris. Para eles, ele morreu num acidente de avião — o corpo nunca
foi encontrado. Só eu, Valentina , Listrada , Augustin e Senhor Ruivo é que sabemos da
verdade: ou Boris se transformava em um ser simples de quatro patas ou
provavelmente morreria de tristeza. Por algum motivo que ainda está sendo
investigado, Boris se desligou da vida humana. Sua lamentação era tão profunda que
tornava cinza tudo o que tocava — tudo, menos Velha.
No mundo etéreo, continuavam se encontrando como outrora, onde toda a intimidade
— inclusive a carnal — ainda lhes era possível.
A primeira vez que vimos Boris transformado, na inesquecível festa de Cliff Walk, o
reconhecemos imediatamente, pois a raça que escolheu para viver seus dias por aqui
permitia que ele mantivesse os mesmos olhos, só que agora com uma fagulha de
alegria que nunca se apagava.
Esse foi o gesto mais humilde que possivelmente alguém teve consigo mesmo: abrir
mão da exuberância de uma existência para simplesmente ser feliz. É claro que são
poucas as pessoas que podem fazer uma escolha dessas, na verdade dá para
contá-las nos dedos de uma mão.
Afinal, neste mundo, ter alegria é privilégio reservado aos verdadeiros bilionários de
alma.