rosana858
rosana858 @rosana858

Do Grão a Luz

Ela era o nó silencioso que amarrava várias estradas. Estava ali desde antes do tempo registrado.
No início, o lugar era oceano; depois, tornou-se deserto. Ela, que fora um pequeno grão de areia, crescia, acumulando matéria orgânica que grudava em seu corpo, resultado dos tombos que levava. No começo, era frágil e se quebrava; com o passar das eras, ganhou resistência.
Cavaleiros e algumas carroças solitárias começaram a cruzar seu caminho. Nas noites de sexta-feira, ela era altar. Um grupo depositava oferendas sobre ela. O sangue de animais, velas, cachaça manchavam sua pele. A encruzilhada se iluminava com a luz trêmula dos rituais, e ela absorvia a energia, em clima de oração.
Movia-se apenas quando um casco de animal a empurrava, quando uma roda passava sobre ela e a fazia rodopiar, ou quando algum desatento a chutava. Uma vez, uma enxurrada a arrastou para o barranco, e ela só retornou à estrada anos depois, quando uma família a escolheu como base para a fogueira de um piquenique. Naquele dia, sentiu o calor aquecê-la, o que provocou um desejo enorme de soltar faíscas.
Mas naquela manhã, tudo mudou.
Veículos enormes invadiam a rodovia. Máquinas ruidosas arrancavam pedaços do solo que ela chamava de lar. O mundo se multiplicava em possibilidades e vozes, e, de repente, uma pá de ferro gigantesca a abocanhou junto com a terra.
Dentro da caçamba, soterrada, o mundo se abriu com um solavanco. O caminhão partia em velocidade. Do alto, olhou para a rotatória e viu que um horizonte poeirento ficava para trás. Os buracos do trajeto a faziam emergir ainda mais do cume de chão despedaçado. Depois de horas saltitando, uma colina surgiu à frente. O ar ficou fresco, quase líquido. A vegetação mudou; agora era verde vibrante, cheia de viço. As cachoeiras caíam em perfeitos véus de noivas. Flores bordavam os barrancos, colorindo tudo ao redor. Ela ficou fascinada; o chão que conhecia era feito apenas de lama, sem vida, sem nuance.
Ao final do trajeto, deslizou junto com a terra que ainda carregava o cheiro do antigo lar. Caída no gramado, ficou por uma semana. Mãos cuidadosas a tocaram com fascínio e a colocaram em uma carriola. Um par de olhos sensíveis olhou para ela — "Que xisto incrível… Vai ficar perfeito no novo projeto" — sussurrou alguém.
A sujeira que a envolvia foi retirada. Segura por luvas de borracha, recebeu seu primeiro banho. Sentiu a bucha ativar sua crosta, e seus veios tímidos azulados apareceram. Agora podia revelar seu brilho oculto.
Meses depois, a cruz de madeira ergueu-se no alto da montanha. Uma igreja nasceu, e o sino da torre badalava com força. Polida, reluzente, foi colocada no altar entre dois anjos, tornando-se a pia batismal que receberia a água e o choro das crianças, guardando memórias e esperanças no fundo de sua alma de rocha.
E ali, finalmente, aprendeu que, mesmo uma pedra lançada à encruzilhada do tempo, podia ser lapidada — e se tornar luz.

@rschumaher