Perto das fazendas dos agricultores, existia um reino habitado por animais de todas as espécies. Quem governava ali era o velho leão que, embora não fosse respeitado como rei, era temido por sua ferocidade.
Foi nesse lugar que chegou o pequeno e solitário ratinho, decidido a recomeçar a vida.
Naquele reino, todos viviam sob a Regra do Ciclo: ninguém podia caçar sem necessidade. Criada pelo antigo rei, essa lei atraía bichos de terras distantes em busca de uma nova chance.
Quem desrespeitasse a regra era punido com o exílio no vale dos agricultores, conhecido como o Plantio. Essa região era tomada pelas plantações dos fazendeiros humanos, que enchiam o lugar de armadilhas mortais para capturar os bichos que roubavam suas colheitas. O animal que conseguisse voltar de lá era perdoado.
No entanto, com o tempo, surgiam brechas. E até as melhores leis acabavam sendo quebradas. Às vezes, isso acontecia porque o rei nem sempre cuidava dos animais mais fracos.
Um desses animais era o ratinho recém-chegado. A falha na lei, porém, não diminuía sua alegria por finalmente ter encontrado um lar. Afinal, de onde vinha, nem mesmo havia lei.
Por ser novo ali, não conhecia toda a região. Certo dia, resolveu explorar as terras do reino. No meio do caminho, avistou o rei dormindo próximo ao seu trono, no Riacho dos Carvalhos Negros.
Sem saber do perigo, aproximou-se em silêncio. Mas, mesmo com seu peso mínimo, acabou provocando um ruído que despertou o leão. Irritado, a feroz criatura inflou as narinas, faiscou os olhos e soltou um rugido que ressoou por entre as árvores.
Sempre que esse som tomava a mata, os animais se escondiam. Sabiam que a majestade não estava de bom humor. E, quando era acordado contra a vontade, o pobre bicho responsável não escapava de uma condenação sem direito à defesa.
— Quem ousa me acordar? — o leão se ergueu, balançando a juba.
O rato, embora corajoso, estremeceu por inteiro. Ainda assim, respirou fundo e se adiantou com as patas trêmulas.
— Fu-fui eu, majestade. Mas essa não foi minha intenção. É que… sou novo por aqui e estava explorando a mata.
O leão o encarou profundamente, como se medisse o valor da vida do roedor antes de decidir se a tomaria.
Então falou, num tom ríspido, com um toque de ironia:
— Não importa se é novo por estas bandas. Todos sabem que os tolos que não respeitam o sono de sua majestade recebem as consequências.
— Co-consequência? — perguntou o rato, tentando se manter firme.
— Sim. Devorá-lo agora seria uma opção — respondeu o leão, com um leve rosnado. — Mas não farei isso… você é tão pequenino que não saciaria a fome nem de uma águia.
O pequeno agradeceu pela misericórdia e prometeu que, se algum dia o rei precisasse, bastaria chamá-lo. Sem hesitar, o pequeno partiu correndo, mas não tão rápido ao ponto de parecer apavorado.
Dias depois, enquanto caminhava pela mata, o leão avistou o rato conversando com um macaco sob a sombra de uma grande árvore. Eles riam, envolvidos numa prosa animada. Curioso, o grandalhão se aproximou com passos firme. No mesmo instante, ambos se calaram e trocaram olhares rápidos, como se tivessem sido flagrados dizendo algo que não deviam.
O soberano até pressentiu que ambos falavam dele. As orelhas se inclinaram para frente e a cauda balançou uma, duas vezes, num movimento lento. Porém, logo relaxou. O cheiro do medo, que qualquer animal exalava na sua presença, se espalhava pelo ar. Para ele, isso bastava. Afinal, qual bicho no reino não o temia?
Com a juba levemente desarrumada, se aproximou em silêncio, caminhando mais devagar em direção ao rato. Soltou um som grave, algo entre grunhido e uma risada abafada, como quem espanta moscas com um estalo de dentes.
Aquele silêncio já dizia muito, mas a feroz criatura que os observava quebrou a tensão:
— Não precisam me temer. Eu mordo, só quando é necessário — disse, com a respiração pesada.
Um som baixo escapou de sua garganta e tocou o terror no macaco, que logo se afastou, alegando precisar buscar bananas. O rato tentou puxar conversa, mas o rei mal deu ouvidos e se retirou.
Mais tarde, enquanto voltava para sua toca, o roedor viu o monarca estirado no chão, contorcendo-se e gemendo de dor. O medo o fez hesitar, mas o pequeno não conseguiu ignorar o sofrimento do rei.
Com o coração acelerado, aproximou-se devagar, observando atentamente até encontrar coragem para perguntar:
— Majestade… está tudo bem?
Os olhos dele pareciam marejados e mal se abriam, mas ele se esforçou e respondeu com um leve balançar de cabeça, negando. O ratinho se aproximou mais e notou uma enorme farpa cravada em uma das patas dianteira.
— Ah, é isso — sussurrou. — Deve estar doendo muito.
O grande felino cerrou os olhos, como se confirmasse com um gesto silencioso.
O pequeno respirou fundo e, mesmo com medo, disse:
— Posso tirar. Vai doer um pouco, mas vai passar.
O outro soltou um ronco abafado, meio gemido, meio aviso. Ainda assim, manteve a pata estendida, vulnerável. Era um gesto raro de confiança.
O rato se firmou e, com muito cuidado, agarrou a farpa com as patinhas. Mas antes que pudesse puxar, se assustou com um barulho vindo de uma moita e isso acabou causando ainda mais dor.
O monarca soltou um rosnado que o fez se encolher de pavor.
— Desculpa! ― disse ele, recuando um pouco.
Respirou fundo, tentando se acalmar, e recomeçou:
— Vai ser no três… segura firme.
Com um único puxão seco, a farpa saiu.
A expressão de dor sumiu, dando lugar a um alívio imediato, visível no relaxar do corpo. Ele olhou para o ratinho com um semblante que parecia gratidão.
Ofegante, ele disse:
— Pronto, meu rei. Agora é só descansar.
Antes que retomasse seu caminho, o felino o deteve com a voz baixa, quase um sussurro. Disse que a dívida estava paga e agradeceu pela ajuda. Em seguida, num tom menos amistoso, pediu que aquele momento permanecesse em segredo. Claro que o rato entendeu o recado e não hesitou em aceitar o pedido.
Dias se passaram, e a floresta fervilhava com rumores sobre o rei: diziam que ele era fraco demais para governar, pois havia chorado por um espinho na pata. Quando chegou aos seus ouvidos, o monarca suspeitou imediatamente do rato. Influenciado pela conselheira, a coruja, convocou o pequeno roedor para uma reunião de esclarecimentos. Contudo, aquilo era somente desculpa para um julgamento disfarçado.
Para essa reunião, além da conselheira, foram convocados dois outros membros do conselho real: a sábia tartaruga, silenciosa como de costume; e a raposa, ainda marcada pela dor recente de ter perdido seu filhote nas armadilhas dos fazendeiros.
O ratinho chegou quase assustado, embora sereno, certo de que não havia feito nada de errado. O Salão das Árvores Secas estava em silêncio quando ele entrou, com passos firmes e o coração apertado. A coruja, de olhos atentos e penas impecáveis, estava empoleirada em um galho à direita do trono. A tartaruga permanecia imóvel ao chão, e a raposa ocupava o lado oposto do salão.
― Vejam só, chegou o pequeno culpado ― disse a raposa, com a voz amarga. ― Dizem que foi você quem espalhou aquelas mentiras sobre nosso rei.
O rato suspirou fundo e respondeu às acusações, tentando controlar o tremor da voz:
― Eu não espalhei nada.
A coruja inclinou a cabeça, avaliando suas palavras.
― Raposa, precisamos de fatos. Não suposições.
― Concordo ― reforçou a tartaruga. ― Que provas temos contra ele?
― Não precisamos de mais nenhuma ― resmungou o rei, entrando no salão e apoiando-se em uma grande raiz. ― Não tolero deslealdade. Sou a prova de que esse rato me traiu.
― Majestade, por favor… ― tentou intervir a coruja.
― Silêncio, coruja ― ordenou. ― Concentre-se nos fatos. Ele foi o único a me ver fragilizado.
Todos ficaram calados diante das acusações do felino. Talvez incrédulos diante da segurança com que ele afirmava a culpa do pequenino, ou simplesmente por medo.
Ele continuou: ― E já o vi cochichando por aí com outros animais, sempre se calando quando me aproximo.
O rato estava confuso. Sabia dos boatos, mas não entendia por que era acusado. Tentou se defender, mas o rei rugiu, exigindo silêncio. Ninguém ousou contrariá-lo.
A coruja ajeitou as penas com discrição, tentando manter a compostura.
― Meu rei, com todo respeito… nosso reino vive sob regras justas. Um julgamento não pode ser feito com base em sentimentos.
― E onde estavam essas regras quando zombaram da minha vulnerabilidade? ― protestou o leão, com o olhar faiscando em direção ao rato. ― De que me servem essas leis, se nem minha imagem é respeitada?
A raposa deu um passo à frente.
― Talvez o problema, majestade, seja estarmos lidando com criaturas pequenas demais para compreender o peso da grandeza… ou da dor.
A tartaruga, com voz arrastada, finalmente se pronunciou:
― Não confunda dor com injustiça. Meu rei, podemos…
Mas o leão rugiu novamente, desta vez com fúria.
― Basta! Essa reunião foi somente uma formalidade. Um dia, fui piedoso com esse rato. E no momento em que mais precisei… ele me traiu.
Sua voz soava firme e imponente:
― O rato será enviado ao Plantio ao entardecer. Se voltar, será perdoado.
A sentença era clara: exílio entre as armadilhas humanas. O pior castigo que se podia receber naquele reino que se gabava de justiça.
O roedor até tentou uma última defesa:
― Eu te ajudei ― disse, sem elevar sua voz. ― Leão… digo, meu rei. Fui fiel. Guardei seu segredo. Juro por todos os meus irmãos: nunca espalhei nada.
O monarca o encarou por um momento. Aquelas palavras, de algum modo, despertaram algo dentro dele: dúvidas, arrependimento… ou talvez o medo de ser visto como fraco outra vez. Porém, virou o rosto.
― Se for inocente, sobreviverá. E, se voltar, seu nome será limpo.
Sem mais o que fazer, o rato aceitou sua condenação.
A coruja fechou os olhos, resignada. A tartaruga balançou lentamente a cabeça. A raposa suspirou, quase em tom poético ou alívio.
Horas mais tarde, o rato foi escoltado até os limites do reino. Somente os animais presentes no julgamento tinham permissão para acompanhá-lo, mas, entre eles, apenas a coruja compareceu. O rei, no entanto, parecia desejar uma plateia para testemunhar o cumprimento de sua ordem injusta. Impaciente com o atraso dos dois, ordenou que a coruja os procurasse.
Enquanto isso, não muito longe dali a tartaruga avançava devagar pela trilha quando ouviu ruídos vindos de uma moita. Aproximou-se em silêncio e espiou. Viu a raposa conversando com uma figura oculta nas sombras.
― … na próxima lua, vamos continuar com o plano. Dessa vez, nada vai atrapalhar. O rei perecerá ― disse a raposa. ― O rato já pagou por se intrometer. Se voltar com vida… pode ser útil para o nosso plano.
A tartaruga, assustada, acabou pisando numa folha seca. O estalo fez a raposa se virar de súbito. Quando a viu, arregalou os olhos: primeiro de susto, depois de pura fúria.
― Você ouviu! ― rosnou, avançando sem hesitar.
Antes que a tartaruga pudesse reagir, a raposa cravou os dentes em seu pescoço enrugado. O corpo caiu pesado entre as folhas.
O silêncio voltou por um instante. Ela ficou ali, ofegante, diante do casco agora manchado de sangue. Mas, entre os galhos mais altos, a coruja havia visto tudo. Seus olhos marejaram. Então, desceu das sombras com as asas abertas.
― Sua desgraçada… ― gritou, pousando com raiva. ― O que você fez?!
A criatura que estava ao lado da raposa fugiu pela mata adentro, sem deixar rastros. A raposa, ainda ofegante, tentou se justificar:
― Ela… ela estava conspirando contra o rei.
― Não me venha com isso! ― interrompeu a coruja, com a voz trêmula. ― Ela era uma das criaturas mais sábias desta floresta. Eu colocaria minhas penas no fogo por ela!
― Mas eu…
― Chega! Vi tudo com meus próprios olhos.
A raposa silenciou. E, de repente, mudou o tom.
― Você tem razão. O que ela tinha de sábia, tinha de lenta. Assim como você…
Avançou, mas a coruja voou para fora de alcance.
― Comigo não, traidora.
― Traidor é esse rei fraco e prepotente! Nem foi tão difícil convencê-lo a condenar aquele rato. Esse também teve o que merecia. Era para o rei estar morto, e…
― Cala-te! Agora que sei, pagará por seus crimes.
Antes que a conselheira do soberano conseguisse pedir ajuda, a criatura oportunista fugiu pela trilha do norte, onde poucos ousavam passar.
Mesmo relutante, a coruja deixou o corpo da amiga e correu para alertar o rei. Quando chegou aos limites do reino com as terras dos fazendeiros, encontrou o leão deitado em silêncio.
― Majestade… precisamos conversar.
― Não estou com ânimo para conselhos. Meu reino caiu por culpa de um rato ― lamentou.
― Quem te traiu foi a raposa, não aquele pobrezinho ― disse a coruja, firme. ― Eu vi. Ela planejava sua morte… e matou a tartaruga, que descobriu seus planos.
O leão ergueu os olhos. Um rugido baixo escapou.
― O ratinho está no Plantio… e agora, sábia conselheira?
Nem mesmo a coruja, com toda sua sagacidade, parecia não ter nenhuma resposta ou ideia para resolver aquela situação.
O leão se levantou, decidido:
― Já sei. Entrarei no Plantio e o trarei de volta. Assim pago minha dívida com ele e todos saberão que sou justo… um verdadeiro rei.
― Majestade…
― O que é certo precisa ser feito. Enquanto isso, mande prender aquela traidora e qualquer um aliado a ela.
E partiu…
O campo estava escuro quando ele cruzou a cerca. Quase não se via nada, mas ele farejava as armadilhas como se as enxergasse.Andou, andou e andou… até que ouviu um gemido ao longe. Reconheceu a voz. Era o rato, preso pela cauda em uma armadilha enorme. Lutava para escapar, mas quanto mais se debatia, mais apertava a cauda do pequeno.
― Aí, aí, aí… ― gritava de dor.
O leão se aproximou com cautela. Ainda assim, acabou assustando o pequeno roedor, que deu um salto. E, com isso, a armadilha apertou ainda mais a sua cauda.
― Calma, pequeno. Vim ajudá-lo.
― Ajudar? Foi você quem me jogou aqui!
― Cometi um erro com você… e estou aqui para consertá-lo.
Com esforço, o leão conseguiu libertá-lo. A reação do ratinho foi de pura alegria. Afinal, estava livre outra vez.
Mas, de repente, uma luz intensa brilhou na direção deles. Vozes humanas ecoaram no mato:
― É um leão! Um leão!
Sem pensar duas vezes, o felino pegou o ratinho com a boca e correu, desviando de tudo. Já perto da cerca, foi atingido.
― Não! Majestade! ― gritou o rato.
Mesmo ferido, o leão seguiu até atravessar a fronteira. Soltou o rato, andou mais um pouco… e caiu, ensanguentado.
― Corra, meu amiguinho! Encontre a coruja…
Ele hesitou por um instante, mas decidiu seguir a ordem que recebeu. No caminho, avistou a coruja vindo em sua direção e então deu meia-volta às pressas para socorrer seu rei.
O leão, caído, chamou o rato com a voz fraca:
― Você salvou minha vida duas vezes e, mesmo assim… eu te julguei.
― Não diga nada. Vai ficar bem, e poderá governar com justiça. ― respondeu o roedor.
O soberano soltou um riso baixinho e, com a voz debilitada, disse: ― Não… dessa vez, não escapo.
A coruja chegou quando ele nomeava o rato como novo rei. Ficou abalada ao vê-lo partir.
― O rei está morto. ― gritou.
Uma semana depois, a coruja reuniu os animais da floresta no Salão das Árvores Secas, para coroar o novo rei.
― O rei se foi. Pereceu em nome da justiça. Suas últimas palavras foram claras: o novo rei será o rato.
O silêncio tomou conta do salão. Alguns duvidaram, outros baixaram a cabeça, mas todos tiveram que aceitar o mais novo governante da floresta.
Embora não concordasse com a última ordem deixada pelo leão, a coruja acatou. Continuou a servir o novo rei e nunca deixou de investigar o caso dos conspiradores, mesmo depois de saber que a raposa morrera durante a fuga. Até que, um dia, a coruja desapareceu misteriosamente. Diziam que partira por não aceitar as mudanças que surgiam no reino.
Enquanto isso, outros murmuravam entre os arbustos:
― O rei agora… é o rato.