Boa noite, Dom. — Era Isabelle Cortejan de Alcântara, uma joia rara carioca — Por favor, somos quatro, acho que tem uma mesa para mim na sua lista.
— Mas é claro, senhora Cortejan, nem que eu precise tirar o Presidente de uma. Por favor, me sigam. — Dom era um velho conhecido de Isabelle Cortejan, quase um amigo. Se conheciam há mais ou menos 20 anos e ele era seu funcionário favorito. O Copacabana Palace estava iluminado para os festejos natalinos, obviamente sem neve, mas com o mar característico de águas frias e gostosas de ‘Copa’. Na Avenida Atlântica e de número 1702 estava o prédio de maior prestígio do Rio de Janeiro com seus apartamentos residenciais de famílias ricas há mais de um século e portas eventualmente alugadas por estrangeiros e turistas de posses. Naquela noite seria celebrada uma ação beneficente organizada e com o grande e inabalável prestígio dos Cortejan de Alcântara.
A família enriqueceu desde a chegada dos parentes portugueses; lucrou com suas próprias fazendas de cana, café, cacau e hoje se envereda em muitas atividades, mas as principais são carne e soja. A Sra. Cortejan com seus 51 anos, sempre foi uma jovem ativa nos eventos sociais da família e de amigos, era popular entre os adultos desde seus 15 anos, quando debutou com joias emprestadas da família Orleans & Bragança; a própria Princesa Isabel as havia usado sobre sua pele.
Aquele evento tinha convidados de todos os cantos do Brasil e do mundo. Virou notícia nos principais jornais da ex-capital-do-Brasil; os blogs da internet, as redes sociais e todo aquele que pudesse falar sobre o evento, estava falando. Nomes conhecidos como Oblama, Hiltony e Malala-Fy estariam presentes, é o que dizia a imprensa. Todos esperavam pelo jovem Ilean Musggle, idealista responsável por grande inovação tecnológica em tantos campos que seria difícil listar aqui; ele viria mesmo? Além, é claro, das celebridades e subcelebridades, ninguém poderia faltar, aquela ação era extremamente importante para pensar em restringir doadores.
Cada convite era no valor de 15 mil reais e foi disputado entre as socialites brasileiras. Já o lote enviado aos convidados estrangeiros, custava o equivalente a 10 mil reais. Um bônus comum nesse tipo de evento social era presentear no valor do convite, uma diária no hotel selecionado, nesse caso, o ‘Copa’. De resto, tudo seria bancado pelo convidado, que era um título apenas virtual, quem adquirisse seu passaporte para ‘a maior festa social daquele ano’, também ficaria com todos os custos para estar presente naquela noite.
— Madame, deixaram este presente para a senhora mais cedo. Este cartão veio junto. — Um envelope preto se apresentou para Isabelle, que sorriu discretamente com seus lábios finos e vermelhos. Ao tirar o conteúdo e ler as palavras, seu sorriso de porcelana e cobre apareceu contente, empolgado. O presente, rosas perfeitas num tom de vinho, cheirava deliciosamente.
“Estamos felizes e agradecidos. É a última vez que precisará compartilhar o ar com esses cornos de colarinho.
A noite é SUA.
OBRIGADA, BELLE.
Nos vemos quando formos todos gatos ;)
L”
— Dom, por favor, me traga meu isqueiro e um cinzeiro. Peça a Juan meus cigarros também. — O funcionário acatou o pedido fazendo sinal com a cabeça e se retirou. — Senhores, aproveitem a noite, esta pode ser a última festa de nossas vidas. Um brinde ao imprevisível! Às incertezas da vida! — Belle havia se levantado com alguma dificuldade, pois seus pés inchavam facilmente e levantou um brinde entre os quatro convidados. Nem todos entenderam, o americano e a ruiva francesa não sabiam o que ela tinha dito, mas seria indelicado rejeitar o brinde da Madame Isabelle Cortejan, fosse a que fosse. Após o primeiro gole, a mestre de cerimônia tilintou uma taça de cristal próximo ao microfone. Era hora de começar a festa. Todas as cerimônias e cortejos foram feitos em nome da anfitriã da noite e ela foi convidada a falar algumas palavras. Isabelle Cortejan de Alcântara subiu os degraus com certa dificuldade, ah, eram os pés inchados outra vez, e chegou ao microfone com ajuda de um apoio humano de paletó e gravata e uma colônia suave, porém amadeirada, que ela julgou apropriada ao momento.
— Boa noite. Good evenning. Bievenidos! Buona sera! Uan an — a reverência breve seguida de um suspiro típico de quem finge estar cansado acompanhou a última saudação. — Bem, eu não posso ficar a noite inteira saudando todos, mas sintam-se muito bemvindos à nossa casa no Rio de Janeiro. Os convidados riram desde as saudações até a frase final, sempre humorada, a Sra. Cortejan. Todos tinham pontos em seus ouvidos que traduziam simultaneamente as palavras ditas por ela.
— Também desejo profundamente que não tenham receio quanto às doações. Se for preciso, que acabem com o estoque do Copa. Temos milhares de bocas famintas para saciar com comida e educação. Gostaria de agradecer especialmente à família Orleans & Bragança que cederam gentilmente num ato grandioso, diga-se em letras garrafais, o conjunto de joias da saudosa Princesa Isabel. Quem for mais velho em idade irá recordar que eu as usei em meus 15 anos… sim, faz muito tempo! — A plateia ria outra vez, encantada. — Vamos brindar a presença de cada um de vocês e às bênçãos que iremos proporcionar a quem tanto precisa. Saúde!
— Sabem —, os convidados que brilhavam através de seus Rolex e Tiffany engoliam o primeiro gole e sorriam com curiosidade àquela que parecia ter se despedido, mas agora voltava com a palavra — há séculos atrás, era costume envenenar as bebidas dos convidados. Imaginem só!
— Espero que não tenha feito isso, Madame! — Gritou um de trás e fez Isabelle estreitar os olhos em sua direção procurando enxergar quem ria.
— Ah, eu espero que não tenha bebido, Sr. Calazans! Espere, o senhor já assinou algum cheque? — O riso tomava conta novamente do salão e todos olharam do General Calazans para Madame Cortejan.
— Bom, como eu ia dizendo, envenenar convidados já foi muito comum. O brinde veio para sanar qualquer dúvida a respeito e a bebida sempre era tomada em conjunto, ao mesmo tempo. Quem diria, não é mesmo? Mas não se preocupem, queridos, eu preciso da assinatura de vocês em muitos cheques esta noite. Inclusive, já podem ir tirando os talões dos bolsos!
— Desse jeito vou assinar o talão inteiro, Madame! — A Sra. Cortejan já estava de saída novamente, quando ouviu esta nova brincadeira, voltou rindo, mas ao pegar o microfone novamente, o sorriso tomou um forte ar sombrio:
— Faça isso, dr. Alberto, faça isso.
Ao sentar-se novamente em seu lugar, Isabelle alcançou o isqueiro deixado por Dom e uma pequena bandeja, depositou o envelope que havia guardado em sua pequena bolsa com brilhantes e acendeu uma chama na ponta do papel. Os convidados observavam sem entender, enquanto uns olhavam assustados, outros riam baixo, Isabelle bebericava sua bebida sem desviar os olhos do fogo.
Os convidados da mesa de Isabelle Cortejan de Alcântara eram pessoas mais ou menos conhecidas. Era a primeira vez, por exemplo, que dois acionistas de uma grande mineradora famosa por suas ações sociais e por destruir três cidades no Brasil, estavam presentes: a Sra. Leccour e o Sr. Tompson. Já do lado brasileiro, bem, nem tanto, haviam os herdeiros de terras manchadas de vinho e sangue de “trabalho análogo a escravidão”, que antes, fora escravo de fato. Mas quem saberia? Quem se importaria? O evento de caridade estava acontecendo para amortecer qualquer que fosse os impactos de nomes como esses, e não faltavam nomes e sobrenomes para citar naquele salão.
Após uma hora e meia de festa, muita comida e bebida, os cheques chegaram à suíte 1013 enrolados por pulseiras de borrachinha. Muitos envelopes também foram anexados uns aos outros, na tentativa de organizar aquele monte de papel. Na manhã seguinte, tudo viraria dinheiro de verdade e seria transferido indevidamente à conta de Cortejan de Alcântara. As centenas de crianças que receberiam aquelas doações, nunca acessariam um centavo nem veriam um prato de comida sequer, muito menos a educação prometida. Infelizmente para alguns, ora, para quem? A comida não fez bem e uma diarreia foi comentada entre os convidados. Talvez o paladar estrangeiro não conseguisse lidar com os preparos da sessão especial ‘brasilidades’ servido com animação e aroma encantador a cada prato. A Gazeta Carioca noticiou que — infelizmente — um acionista e um herdeiro haviam morrido após dias internados, vítimas de ‘alergia a alguma especiaria’, imaginavam os médicos.
Madame Cortejan se pronunciou publicamente em fala ao repórter e velho conhecido Jurandir Vasconcelos; também em suas redes sociais oficiais. Sua assessoria de imprensa e comunicação fez o belo trabalho de lapidar um texto com toque e carinho pessoais daquela que foi anfitriã dias antes.
Com o que houve, um típico baile da virada de ano, que também era organizado em parte pela Sra. Cortejan, estava em risco de ser cancelado. O alvoroço foi grande. Diziam que trinta dias já haviam corrido e ninguém mais lembrava do incidente anterior:
— Quem lembra que aqueles dois morreram, Sra. Cortejan? Eles nem eram tão conhecidos assim. Por favor, não nos faça cancelar um evento tão esperado por todos. A última palavra é sua, é claro. Pedimos que reconsidere.
— Ora, dr. Galvão, o que posso fazer? Não sei o que pensar. Lembro daqueles pobres homens passando mal, pondo suas vidas para fora e finalmente morrendo. Tudo por causa de algum… ‘tempero’? Estou profundamente abalada.
— Mas não há necessidade para tanto. Como lhe disse, ninguém se lembra. O que todos querem é saber quando iremos disponibilizar os ingressos para o baile e qual fantasia usarão.
— Bom, se o conselho pensa isso, quem sou eu para barrar o Baile do Copa. Que venha 2030!