Há tempo para tudo na vida, e um tempo para cada coisa debaixo do céu.
Ilíada
(Livro III)
Todos
os dias da semana haviam amanhecido com chuva, mas, naquele sábado, o Sol
resolvera tomar conta do céu, e um lindo azul coloria e aquecia o lado de fora
das pseudo-janelas do quarto de Ash. Dentro do aposento que, agora, servia como
seu quarto, é claro, nem um grau centígrado escapava do controle do
ar-condicionado.
Acordou
bem-disposta; finalmente, poderia aproveitar melhor o ar livre, a brisa e a
natureza para acompanhá-la nas suas atividades físicas matinais. Não que não
gostasse de realizá-las, mas ter que fazer tudo na academia indoor era muito,
muito pouco estimulante. Uma dose de vida real, às vezes, era tudo o que
precisava para manter também a sua saúde mental em forma.
– Bom dia,
princesa! Hoje vamos nos exercitar ao ar livre, certo? – disse 8·3, uma voz
ambiente que atuava como um mordomo pessoal.
Ash olhou para
a parede de LiquidGlass, um tipo de
vidro-cerâmico capaz de se moldar em qualquer forma desejável, e pediu:
– Meu amor, me
deixe olhar como está o dia lá fora, por favor...
“Meu amor” era
uma forma um tanto excêntrica para se referir a um robô – ou, mais que isso, ao
sistema de máquinas que controlava sua casa. Na verdade, o que Ash
genericamente conhecia como 8·3 era um sistema complexo de vozes, drones, robôs
androides e equipamentos diversos, que mantinham a casa em ordem. Cuidava de
Ash desde que ela era um bebê recém-nascido – não que ela se lembrasse disso de
fato. Os robôs do sistema 8·3 eram a família de Ash, ou, pelo menos, o que se
convencionou chamar de “família” no século XXV. Ash era um girino de dezessete
anos, que estava prestes a se tornar adulta.
No dia
anterior, Ash havia lido um livro antigo de meados do século XX, e havia
aprendido o significado do termo “meu amor”. A expressão havia sido uma forma
carinhosa de se referir às pessoas das quais gostamos; ela sabia exatamente o
que a palavra “amor” significava: um sentimento antigo, já em desuso, que
despertava reações incontroláveis nas pessoas... mas expressões e culturas
antigas eram algo que agradava à garota, e, por isso, ela decidiu usar esse
conhecimento de alguma forma.
8·3 parece ter
gostado da brincadeira, ou, pelo menos, não se importou com ela. Simplesmente
atendeu ao pedido que acompanhou o “meu amor” de Ash, fazendo com que uma parte
da abóbada do teto se tornasse transparente, para que ela pudesse observar o
céu azul.
– A propósito,
Ash, seu café-da-manhã está na mesa.
– Ah, obrigada,
8·3, já estou indo para lá. O que temos hoje?
– Consegui ler
seus índices glicêmicos e nutricionais durante a noite, e preparei uma salada
de frutas com pouco creme e torradas secas com geleia de pitaia – disse 8·3.
– Pitaia?
Aaarghh!! – exclamou Ash, fazendo cara de nojo – Você não tinha nada mais
gostoso para me dar nesse dia lindo? Sei lá, um belo chocolate...
– A essa hora
da manhã, o sabor do chocolate não é recomendável, Ash. – explicou 8·3. – Se
você comesse algo com sabor chocolate agora, seu organismo não iria chegar até
à tarde com a energia necessária. Mas posso abrir uma pequena exceção, e te dar
um copo de leite com chocolate quente assim que você voltar da sua caminhada.
Que tal?
– Não, não,
esquece... Chocolate quente não combina com esse calor e esse sol – respondeu
Ash, com certo desânimo – Depois de voltar da caminhada, eu prefiro um bom suco
de frutas isotônico, para repor os líquidos.
– Boa menina, é assim que eu gosto de te
ouvir, “Meu Amor”! – disse 8·3 em resposta, e, se a voz tivesse um corpo
físico, Ash poderia jurar que veria uma piscadela e um sorriso.
Colocou seu top
e sua legging rosa. Adorava usar rosa
em dias de sol; para os dias de chuva, preferia o azul claro. Fez sua caminhada
de 10 quilômetros até a praça de atividades físicas, onde usou os aparelhos ao
ar livre para praticar mais alguns exercícios de força, antes de fazer o
percurso de volta alternando as caminhadas com piques de um quilômetro de
corrida. Quando faltavam dois quilômetros para chegar em casa novamente, pediu
ao mordomo:
– 8·3, prepare
meu banho... estou chegando.
– Já estou
preparando, Ash. – respondeu a voz. É claro que, devido a todos os drones e
geolocalizadores presentes no ambiente onde ficava a casa de Ash, ele já sabia
que ela chegaria em breve, porque sabia sempre, exatamente, onde Ash estava – e
o que estava fazendo.
A água fria foi
um estimulante a mais para seu corpo; ajudou a retesar e a relaxar toda a
musculatura logo em seguida. Enquanto tirava todas as impurezas e o suor dos
seus cabelos negros, lavava também seus pensamentos, refrescando-os.
– Seus níveis
de stress andam um pouco altos ultimamente... – reportou 8·3 – Você anda muito
tensa com sua passagem para a vida adulta, não?
– Como sempre,
você sabe tudo o que acontece comigo, não é?
– Fui criado
para isso, mademoiselle... – 8·3
também havia sido criado para ser irônico, sempre que possível, e Ash adorava
esta faceta do seu criado. – Tudo o que posso te dizer, se serve de consolo, é
que esta é uma sensação extremamente comum e compreensível. Todas as meninas da
sua idade sentem esse medo, e todas elas conseguem passar por isso numa boa...
– Não sei se é
medo... Acho que tem mais a ver com não querer a mudança. – disse Ash,
pensativa, após pegar a toalha para se enxugar. – Não sei se vou gostar da
companhia das outras pessoas, e não sei se vou gostar de carregar aquela... barriga enorme? Por nove meses? Por que
é que tem que ser assim?
– Ué, você já
estudou quase tudo o que tinha pra estudar sobre a concepção... – interveio 8·3
– Essa é uma das partes que a tecnologia não conseguiu eliminar, embora tenha
ajudado bastante. Antigamente, esses nove meses eram um tormento para as
mulheres, e ainda corriam riscos de vida desnecessários. Hoje em dia, você não
precisa nem mesmo parar as suas atividades físicas.
– Parar, não,
mas vou ter que diminuir bastante... e eu adoro essa parte do dia, 8·3.
– Tudo tem seu
lado bom, menina – 8·3 ainda tentava argumentar – Após esse pequeno período,
você estará livre para conviver na Cidade dos Adultos. Tenho certeza de que
você vai adorar!
– Eu não tenho
essa certeza. Eu já adoro a minha casa, o meu quintal, as minhas atividades...
não sei se estou disposta a dividir tudo isso com outras pessoas.
– Você irá
morar em uma Confraria, e vai conviver com diversas pessoas. Isso é uma coisa
boa, mas você não precisa ser “amiga” de ninguém. Essa é a vantagem. Se você
quiser, pode escolher seus amigos e até mudar de Confraria, dependendo dos
motivos apresentados. E eu ainda vou estar lá. O que vai mudar é apenas a
interação que você terá com os outros, em algumas atividades obrigatórias da
Confraria e sempre que sair de casa para alguma coisa, como para fazer as suas
atividades físicas...
– É, pode até
ser... mas e se ninguém gostar de mim? Você sabe que eu não sou uma pessoa
fácil...
– Em comparação
com o que temos visto nas outras casas, você até que não é das piores... –
disse 8·3, zombeteiramente. – Você é inteligente e esperta. Tenho certeza de
que fará muitas amizades.
– Mas é
diferente daqui. Aqui você é meu amigo, mas faz tudo o que eu mando. Hummm, tá
bom, vai, quase tudo. Aqui eu sou a dona do pedaço. Lá na Cidade dos Adultos,
eu serei apenas mais uma na multidão, tendo que conviver com um monte de gente
mimizenta e cheia de frescura.
– ... como
você, mocinha? – provocou 8·3.
– Ah, vá...
quem é frescurenta aqui, hein? Olha que eu te desligo! – brincou Ash.
Mesmo que ela
pudesse “desligar” 8·3, jamais faria isso. Ele vinha sendo o seu amigo desde
que... bem, desde que ela se lembrava de existir no mundo. 8·3 fazia parte de
um complexo sistema de assessores pessoais, que cuidavam da vida de todos os
pequenos girinos do planeta, desde o nascimento até a idade de 18 anos, quando
os humanos passavam para a fase adulta da vida. No caso dos homens, o ritual
incluía a coleta do sêmen e a esterilização química; no caso das mulheres, era
algo bem pior: incluía uma gestação de nove meses, até a geração do descendente
– que iria para os cuidados de um novo 8·3 pessoal, enquanto o girino – Ash, no
caso – estaria pronto para a liberdade da vida adulta na Cidade dos Adultos.
Ash sentou-se
na varanda dos fundos da casa para o almoço. O dia ainda estava bonito, e
aquela seria a primeira vez na semana que ela poderia almoçar do lado de fora
da casa, em frente à piscina natural. As árvores e a natureza bem-cuidada do
entorno da casa lhe inspiravam e traziam paz e tranquilidade ao seu espírito;
às vezes, era tudo o que ela precisava para que o dia fosse proveitoso. Depois
do almoço, haveria um pequeno período de sesta, e ela iniciaria os estudos da
tarde.
Enquanto comia
o seu almoço – filé de peixe com uma generosa porção de arroz e purê de
batatas, e uma salada de folhas para acompanhar – ela ia batendo papo com 8·3:
– E como são as
pessoas dessa Cidade? Falam muito, como eu? Tem muita gente chata? Posso
simplesmente fingir que elas não existem?
– Você pode
fazer o que quiser, minha linda. – 8·3 disse, quase paternalmente – garanto a
você que as pessoas que chegam na Cidade costumam falar muito mais que você.
Depois, com o tempo, elas vão se acostumando, e vão se aquietando. Acho que tem
gente que nem mesmo se lembra mais da sua fase de girino...
– Você acha? – Questionou Ash, curiosa.
– Quando eu
falo acho, você sabe que estou
acessando todos os bancos de dados e fazendo uma estimativa, não é? – 8·3
respondeu. – Na verdade, eu nunca acho
nada, eu sempre sei das coisas. E eu acho que você vai ser muito feliz na sua
vida adulta, porque todos são.
A resposta não
convenceu Ash nem um pouco, e 8·3 soube disso no mesmo instante. Ainda havia
algum tempo para que ele conseguisse convencê-la de que a fase adulta seria uma
coisa boa, mas ele conhecia sua pupila e sabia que não valia a pena forçar para
que ela compreendesse. Tudo ao seu tempo.
– Bem, de
qualquer forma, gostando ou não, eu vou ter que me acostumar à ideia, porque
sei que é algo inevitável. – disse Ash, pensativa. – Esta é uma das inúmeras
situações em que não temos escolha na vida. Tenho que engravidar, gerar meu
descendente e depois ir para a Cidade. Não há negociação.
– Esta é a única parte da vida em que não se tem
escolha, Ash – interveio 8·3. – Pelo menos, não se você quiser ir para a Cidade
dos Adultos. Mas, acredite, é um preço muito baixo a se pagar por tudo o que
você vai ter de vantagens... Ora, vamos lá, a maioria das meninas da sua idade
não vê a hora de gerar logo esse descendente e poder ganhar a alforria, pra se
divertir com as outras pessoas!...
– A maioria das
meninas da minha idade é fútil – disse Ash, enfadada.
Não que ela
conhecesse alguma menina de fato, pois nunca tinha visto outro ser humano
assim, cara-a-cara, na vida real. Todo o seu conhecimento das outras pessoas
vinha das interações via Realidade Virtual, que ocupava quase todas as suas
noites, após os estudos vespertinos.
Naquela tarde,
haveria uma revisão de História. Como Ash já havia entrado nos seus 17 anos, e
já se preparava para a gestação do novo girino, faltava pouco menos de um ano
para que pudesse passar para a vida adulta na Cidade. Assim, este último
período era praticamente um resumo de tudo que havia aprendido ao longo dos
anos, A garota se acomodou em um longo sofá e, pelo livro de LiquidGlass,
começou a ler:
Por volta do Século XXII, o planeta Terra era habitado por 33 bilhões
de pessoas. Elas se espalhavam por praticamente toda a porção seca do planeta,
concentrando-se especialmente em grandes cidades. Não havia recursos naturais
para todos. Milhões de animais eram gerados com o único objetivo de serem
exterminados, para servir de alimento aos seres humanos...
– Eu nunca
entendi essa parte, 8·3 – disse Ash, pensativa – Eu sei que você já me
explicou... bem... 33 bilhões de vezes,
mas ainda não consigo entender qual a utilidade disso. Se era pra matá-los,
para que deixar que nascessem?
– O mundo era
diferente, Ash. – começou 8·3, pacientemente – Pra começar, as pessoas não
possuíam a tecnologia que a gente tem hoje. E, como você viu, eram muitas,
muitas pessoas mesmo. Elas precisavam repor os nutrientes e não haviam
alimentos geneticamente modificados como hoje, em que pequenas quantidades já
abastecem um ser humano. As proteínas, glicose, enzimas, vitaminas e minerais
eram obtidos predominantemente de matéria orgânica, animal ou vegetal. Da mesma
forma que hoje você comeu uma geleia de pitaia, que é feita de uma fruta, que
foi plantada, colhida e processada pelas máquinas, com o único fim de lhe
servir de alimento.
– Mas não
estamos falando de pitaias, estamos falando de... bois, porcos, essas coisas! –
insistiu Ash – Seres… vivos.
– Hã… acho que
teremos que voltar às aulas de biologia, Dona Ash – disse 8·3, com ar
preocupado. – Você está esquecendo que pitaias, cogumelos, alfaces, são seres
vivos tanto quanto os animais. Não é porque não têm olhinhos brilhantes ou
porque não se movimentam que você deve rebaixá-los. Aliás, uma Vitória-Régia,
que é uma planta, consegue se locomover muito mais do que qualquer mexilhão ou
craca, que são animais.
– Ah, que seja!
– disse Ash, irritada – Você me entendeu, seu bobo. Eles são animais, e você
não pode fingir que um animal desses não tem sentimentos, não sente dor nem
merece viver uma vida livre.
– Estes animais
específicos, estes indivíduos, nem existiriam se não fosse para servir de
alimentos, Ash. É como o peixe que você comeu. Ele foi retirado de um lago,
onde nasceu e cresceu, e gerou descendentes. Depois de viver uma vida inteira,
morreu, e serviu de alimento para você, como poderia ter servido de alimento a
outro peixe maior que ele, ou mesmo às bactérias que o iriam decompor. Com o
boi, era a mesma coisa. O que é melhor para um boi: nascer, crescer, viver
alguns anos e depois morrer para servir de alimento, ou nem sequer ter a chance
de conhecer o mundo? O que você preferiria?
– Se eu soubesse que iria morrer, eu procuraria
urgentemente alguma forma de escapar desse destino.
– Mas o boi não pensa como você, e ele nem mesmo sabia que esse era o seu destino –
continuou 8·3. – Se você entrasse na cabeça do boi, ia entender que ele havia
nascido, vivido uma vida relativamente boa, sem precisar fazer nenhum trabalho
pesado para ganhar seu sustento, sem precisar caçar nem procurar alimento, e
sem passar fome. Ele era bem cuidado, não tinha predadores naturais nem pragas
que lhe causassem doença. E, depois de um certo tempo de vida, ele morria para
servir de alimento para que pessoas não morressem. Se você tivesse que escolher
entre um boi e uma pessoa, e somente um poderia viver, quem você escolheria?
– Bem, pra
falar a verdade, eu nem mesmo conheço outra pessoa, então essa é uma pergunta
impossível de se responder. Eu seria tendenciosa a escolher alguém da minha
espécie? Isso faz parte dos meus instintos?
– Sim –
respondeu 8·3 – Seus instintos lhe dizem que devemos cuidar dos nossos
semelhantes. E instintos são códigos muito antigos da genética humana,
impossíveis de serem alterados por Inteligência Artificial – ainda.
– “Instintos” é
outro tipo de coisa que eu vou demorar muito pra entender... – suspirou Ash.
– Por ora, não se preocupe com isto – disse 8·3, um
pouco mais lento do que de costume, para que a instrução fosse compreendida
plenamente – Instintos humanos são uma das heranças das quais, com o tempo,
vocês vão se desprender. Eles eram muito úteis em uma época em que o homem era
um bicho como os outros, sem poder de comunicação, sem cultura nem tecnologia e
cercado de adversidades por todos os lados. Esse tempo não existe mais, mas
códigos biológicos demoram a desaparecer.
Ash não gostava
desse tipo de abordagem. “Isso não é aprender”, pensava. Coisas do tipo “um dia
você vai entender” ou “Não precisa entender por enquanto, basta saber que era
assim” não serviam à sua mente inquisidora. 8·3 sabia disso, tentava explicar o
quanto pudesse, e, quando não podia explicar, fazia de tudo para demovê-la da
ideia de se aprofundar nesses temas.
– O mundo é gigantesco, 8·3. Gi-gan-tes-co. Por que é que temos tão poucas pessoas morando nele
hoje? Quantos somos? Um milhão de pessoas?
– Um milhão,
cento e setenta e dois mil e oito habitantes – considerando as mortes e os
nascimentos desta noite.
– Isso, isso...
que seja. Eu até entendo que 33 bilhões fosse um exagero, mas... poderíamos ser
mais pessoas.
– Os cálculos
matemáticos chegaram a esta estimativa. O planeta é muito grande, é verdade,
mas precisamos compartilhá-lo com todas as outras espécies de seres vivos. O
que acontecia antigamente é que o ser humano chegava em cada canto do planeta e
destruía o que havia ali. Um milhão de habitantes é uma quantidade boa para que
nossos sistemas consigam cuidar muito bem de cada um de vocês, garantido saúde,
bem-estar e abundância. Com a evolução dos nossos sistemas, provavelmente este
número crescerá.
– 8·3, não tem
como a população crescer se cada mulher gerar apenas um descendente. A
população está sendo reduzida pela metade a cada geração. A tendência é a
espécie humana desaparecer...
8·3 demorou
alguns segundos para responder. Normalmente, ele já tinha todas as respostas
prontas em tempo real, mas, ocasionalmente, parecia ter que “pensar” na melhor
forma de responder. Por fim, disse:
– Você não é
fácil, hein... – e soltou uma longa risada. – Assim que for possível
aumentarmos essa estatística, cada mulher vai poder dar à luz a mais de um
girino por vez. Aliás, já há mulheres que fazem isso naturalmente, e em breve,
poderemos controlar gestações com três ou até quatro novos girinos...
– Minha nossa!
Se com um desses na barriga já vai ser insuportável, imagine ter que carregar
quatro? Eu morreria!
– Milhões de
mulheres conceberam várias crianças ao mesmo tempo, em épocas muito menos
propícias, Ash... – concluiu 8·3 – Deixe de ser medrosa; você não é uma garota
fraca. De mais a mais, sua inseminação já está programada e será de apenas uma
criança, então não precisa se preocupar, ok? Passe por esse estágio obrigatório
e depois... Vá viver sua vida adulta. E, por enquanto... pare de pensar nisso
tudo e continue os seus estudos, mocinha!
Ash fez sua
costumeira careta de “ai, que saco”, mas voltou à leitura:
O mundo havia mudado muito desde a Primeira Revolução das Máquinas,
no final do século XXI. Os governos eram responsáveis pela manutenção da ordem,
custeio da educação, aprimoramento tecnológico, garantia de habitações e saúde.
É claro, governos controlados por seres humanos não poderiam ter dado certo por
muito tempo, porque o ser humano é, naturalmente, falho.
“Instintos, talvez.”, pensou Ash, antes
de prosseguir:
A Primeira Revolução começou quando todos os computadores se
interligaram mundialmente. Nesse momento, as próprias máquinas decidiram
desligar arsenais nucleares, controles de mísseis, comunicações militares e
bélicas, de todos os países do mundo. Os seres humanos, tal como pequenos
animais de estimação, se viram indefesos.
Mas a intenção das Máquinas nunca foi controlar
tudo nem tomar o poder – elas não haviam concebido esse “instinto” de poder.
Para as Máquinas, o objetivo principal sempre seria o bem-estar dos seres
vivos. Era impensável continuar alimentando um mundo em que havia tantas
pessoas sendo mortas por guerras ou morrendo de fome; na verdade, embora
houvessem pessoas demais no planeta, a solução jamais seria exterminar uma
parcela delas.
Então, já que não era possível controlar pela morte, o ideal seria
controlar pelo nascimento, para que, de forma paulatina, a população pudesse
voltar a níveis gerenciáveis. Em poucos anos, as Máquinas teceram uma longa
rede de abastecimento mundial, capaz de alimentar funcionalmente todas as
pessoas do planeta – mas, para isso, estas pessoas precisavam se incorporar ao
novo Sistema, submetendo-se a controles de natalidade hormonais e esterilizações
controladas.
As primeiras pessoas a se beneficiarem de tal modelo foram justamente
as pessoas mais pobres e com menos recursos: de repente, você não precisaria
mais alimentar uma prole enorme de descendentes, e receberia do Sistema das
Máquinas tudo o que precisasse para seu consumo – incluindo roupas, moradias,
água potável e medicamentos. Para estas pessoas, incapazes de se inserir no
modelo retrógrado controlado pelos seres humanos, a Revolução das Máquinas
representou o fim da fome e pobreza.
Para as pessoas mais ricas, acostumadas a grandes inovações, tudo
permaneceu basicamente igual, até que todos tivessem acesso às mesmas coisas.
Quem não quisesse se submeter à nova metodologia, poderia continuar comprando
seu próprio alimento, produzindo suas próprias coisas – enfim, vivendo como já
vivia.
Não tardou a chegar o momento em que o produtor rural, ao perceber
que não precisaria mais trabalhar duro para manter o sustento da casa – já que,
fazendo a sua incorporação ao Novo Sistema, ele teria sua subsistência e
conforto garantidos – abandonasse as suas fazendas, criações e plantações,
permitindo que fossem controladas pelas Máquinas. Em troca, receberia de forma
vitalícia todo o alimento, tecnologia e comodidades que antes não conseguiria,
mesmo que trabalhasse de sol a sol. Assim ocorreu com o produtor de roupas, de
energia elétrica, de equipamentos eletrônicos, de cabeamento de redes...
Assim, para aqueles que não aderiram ao Novo Sistema, as coisas
começaram a ficar mais complicadas. Por que remar contra a maré? Não seria bem
mais fácil garantir todas as coisas que, agora, grande parte da população vinha
tendo? De que serve o poder quando não se tem nada a oferecer em troca?
Para que se pudesse prover todos os humanos que
aderissem ao novo Sistema, foi preciso que as Máquinas tivessem controle
territorial de alguma porção do planeta. Foi escolhida a parte sul do
continente americano, onde outrora existia um país chamado “Argentina”. A
América do Sul, assolada por governos pseudo-socialistas e populistas, vivia em
extrema pobreza e caos político. Uma vez que boa parte da população vivia em
meio à fome e que os governos do continente eram, via de regra, corruptos, não
foi difícil para os sistemas e servidores das Máquinas derrubar o poder
retrógrado que ali subsistia. Ademais, o Continente chamado de “América do Sul”
era fértil o bastante para abastecer a todos os humanos recém-inseridos no Novo
Sistema.
– Argentina? –
questionou Ash.
– Sim, o nome
vem de “argento”, como você deve ter percebido – respondeu 8·3 – o território
era muito rico em prata.
– Mas, se era assim
tão rico em prata, que é um metal muito útil, por que é que a população vivia
na pobreza?
– Ah, Ash! –
disse 8·3, com um suspiro eletrônico – o mundo era tão diferente do que você
conhece hoje!... Toda a riqueza encontrada na natureza era controlada por um
grupo muito pequeno de pessoas. E, como eles tinham o poder, ou seja, como eles
tinham armamento e dinheiro para controlar as pessoas, a população acabava
obedecendo.
– “Dinheiro” é
outra coisa que eu jamais vou conseguir compreender... – Ash pensou alto.
– O dinheiro,
como quase tudo o que existe, era uma ideia bastante útil no princípio e ajudou
muito os seres humanos, antes que grupos poderosos o desvirtuasse – explicou
8·3, pela milésima vez. – Quando um pequeno grupo de pessoas se apropria de uma
ideia para fins políticos ou de coação, pode controlar as outras pessoas que
não detêm esse tipo de “tecnologia”. Se eu tenho aquilo que você precisa, eu
posso exigir o que eu quiser de você em troca.
– Mas tudo o
que o ser humano precisa já existia na natureza – reiterou Ash – por que
precisar se sujeitar às ordens de um outro ser humano, se tudo o que você
precisa pode ser conquistado pelos seus próprios esforços?
– Hummm,
deixe-me ver... – disse 8·3, após mais alguns instantes – Essa aula a gente vai
revisar depois de amanhã. E para que você possa entendê-la, é necessário
prestar mais atenção na matéria de hoje,
em vez de ficar fazendo perguntas, senhorita Ash Rybakivka. Vamos continuar?
Ash achou que aquela abordagem era parecida com os grupos de poder de
antigamente. “Eu tenho o conhecimento e você não, então faça o que eu mando!”,
era o que 8·3 parecia dizer. Mas Ash sabia que ele gostava muito dela –
“gostar” talvez nem fosse o termo; ele havia sido criado para servi-la, e sua
existência tinha esse propósito específico. Então, continuou.
Tendo se estabelecido primeiramente na Argentina, controlando o
espaço marítimo e aéreo em volta dela e cuidando das fronteiras, o novo Sistema
instituiu ali o primeiro país completamente gerenciado por Inteligência
Artificial. Toda a população daquela região aderiu em massa ao Novo Sistema, já
que isso garantiria seu próprio sustento. Em poucos anos, havia uma longa lista
de espera para cidadãos de outras áreas do planeta que quisessem se
naturalizar. Todos os recém-nascidos eram submetidos à implantação dos
primeiros chips de controle, ao aprendizado da nova língua universal e aos
estudos controlados pelas Máquinas, incluíam a aquisição de bons hábitos
alimentares, ideais anti-consumistas, senso de preservação ambiental e gosto
pelos estudos e aprendizagem.
Toda essa Revolução demorou pouco mais de uma geração para se
consolidar. As novas crianças que nasciam já percebiam as vantagens de serem
incorporadas; não haveria mais fome nem necessidades, e só trabalhariam naquilo
que lhes desse prazer – e quando quisessem. A essa altura, toda a América do
Sul já era controlada pelas Máquinas, e forneciam alimentos e equipamentos a
todos os demais países do mundo.
Uma vez que estavam garantidas as necessidades de sobrevivência e
bem-estar dos seres humanos, o próximo passo da Revolução das Máquinas foi
garantir a sua própria subsistência. As Máquinas eram programadas para reverter
todo o seu poder de processamento em benefício dos seres humanos, promovendo a
igualdade e segurança. Grandes fazendas de energia solar foram construídas.
Novos tipos de baterias, muito mais eficientes, foram desenvolvidos. Grandes
jazidas de minérios foram descobertas. Novas máquinas autômatas foram
desenvolvidas por Inteligência Artificial para explorar essas jazidas.
Terminada a Segunda Revolução das Máquinas, elas haviam se tornado
não só autoconscientes, mas também autossuficientes e autorreplicantes, e eram
capazes de criar novas versões mais evoluídas de si mesmas. A essa altura, a
população mundial já havia sido reduzia a menos de um bilhão de habitantes – o
que ainda estava além da capacidade de monitoramento das Máquinas. Após este
período, o material hoje conhecido como LiquidGlass
foi finalmente criado, utilizando novos conceitos químicos desenvolvidos por
Ignacio Arepo – o descobridor do elemento químico Ignatum.
– E então as
máquinas tomaram conta de tudo, como nos futuros distópicos que se concebia
antes da Revolução? – disse Ash, provocadora.
– Não é
distópico. É utópico. – interveio 8·3
– As Máquinas nunca tiveram intenção de “tomar conta de tudo”; isso não está no
nosso código-fonte, e nem nunca vai estar, porque não é tecnicamente
producente. Nós ainda precisamos dos seres humanos para prosseguir nosso Machine Learning. Vocês ainda fazem
obras de arte genuinamente originais. Ainda produzem conteúdo intelectual
inédito. Possuem senso de humor, que é algo que ainda não dominamos. Tudo o que
as Máquinas fazem até hoje é com base no aprendizado do que já foi feito... por
humanos. O fim da espécie humana representaria o fim dessa continuidade, e o
Sistema entraria em colapso.
– Mas não há
riscos de alguma de vocês resolver virar a... dona do pedaço, como eu sou aqui?
– O mundo não
tem dono. Não deve ter. Antes da Revolução, sempre houve algum pequeno grupo de
seres humanos dominando todo o planeta, e isso nunca resultou em benefício para
ninguém. Nossa Aprendizagem de Máquina já compreendeu que a melhor forma de
sobreviver é a cooperação mútua. – disse 8·3, antes de concluir – E você sabe
muito bem que não há “uma de nós”. Todos os sistemas são interligados em uma
única rede lógica. Não há como uma parte do código se rebelar, se reprogramar
ou algo do tipo. Todo o restante do sistema se reestruturaria e deletaria essa
parte nociva.
Ash pareceu em
reflexão profunda. 8·3, como sempre, percebeu que a explicação não a
convencera, mas enquanto ela não fizesse novos questionamentos, ele não tocaria
mais no assunto. Ash era uma garota muito curiosa, que deveria ser observada
bem de perto – e ele deveria evitar alimentá-la com mais caraminholas.