Minha mente está inclinada a contar
histórias sobre seres que se transformam.
Metamorfoses
Havia
chegado a noite. Ash não estava muito disposta a ficar de papo com os outros
girinos, mas achou que valia a pena discutir alguns pontos que ainda a
perturbavam.
Os robôs de
limpeza haviam acabado a faxina em uma das salas. A casa de Ash era feita de um
tipo especial de vidro gasoso, chamado LiquidGlass.
Este “vidro” podia alterar sua aparência e consistência, tornando-se desde uma
leve nuvem gasosa (que permitia a passagem das pessoas e até mesmo do vento)
até uma barreira sólida intransponível, graças às propriedades de alteração da
sua densidade. Além disso, podia ser configurado para qualquer cor, textura,
opacidade ou transparência. A maioria dos móveis e equipamentos da casa de Ash
também era feita com o mesmo material.
Se fosse
possível para Ash observar sua casa de cima, do ponto de vista de um drone, ela
veria apenas duas grandes abóbadas em formato arredondado, como se fossem uma
laranja cortada ao meio e virada para baixo. Olhando assim, Ash perceberia que
o formato lembrava uma lemniscata
Não havia
janelas em nenhum aposento – ou, por outra, todas as paredes poderiam ser
consideradas grandes janelas de vidro, que se tornavam translúcidos ou
transparentes em quaisquer lugares que Ash escolhesse. A ventilação e o ar
fresco eram garantidos por microporos no LiquidGlass,
que permitiam a passagem regulada do vento e do ar que vinha de fora. Tudo era
controlado por toque e comandos de voz. Quando Ash quisesse sair da sala de
estar e ir para o banheiro, por exemplo, bastava informar 8·3 e seguir para a
parede que interligava os dois ambientes. A parede se dissolvia momentaneamente
em uma “porta” ou passagem, e o ambiente escolhido era carregado na sala para
onde se dirigisse. Era um modelo de casa tão funcional que Ash suspeitava que
todas as casas dos demais girinos seguissem o mesmo padrão.
O que Ash não
conseguiria ver, mesmo com os vidros no modo transparente, seria o subsolo,
onde ficavam todas as máquinas, robôs e tecnologia necessária para manter a
casa – e a vida de Ash – em ordem. E eram alguns desses robôs que haviam
concluído a limpeza naquela sala. Ash às vezes se distraía observando-os, suas
grandes articulações de eliminação de poeira e desinfecção, seu sistema
perfeito de aspiração de impurezas, a velocidade com que eram acionados,
quando, digamos, algum pássaro ou esquilo entrasse na sala e sujasse qualquer
canto. Mesmo quando Ash voltava das suas caminhadas matinais (ela às vezes
gostava de caminhar descalça), e entrava com os pés sujos de terra pela sala,
indo até o banheiro para se lavar e se limpar (o banheiro também era uma sala
adaptável como as outras), sabia que ao sair já encontraria tudo perfeitamente
limpo e asseado.
– 8·3, sala de
interação, por favor.
As luzes e
câmeras se ligaram instantaneamente assim que Ash entrou na sala ao lado. As
paredes reproduziam as salas dos seus principais amigos, como se todos
estivessem em um grande salão de festas. Hologramas realistas pré-configurados
de cada participante da sala eram projetados dentro da sala, e Ash interagia
com todos, sabendo que havia, também, um holograma seu na sala de cada um
deles.
– Olá, Ash,
como vai? – disse Nicky Lemnos, uma garota de cabelos compridos cor de jeans e
brilhantes olhos castanhos – Você parece um pouco cansada hoje, o que foi?
– Nada, eu
acho... – disse Ash, dispersa – Não fiz nada de excepcional, o de sempre, como
sempre... acho que esse meu cansaço é só tédio, mesmo...
– Ah, não se
preocupe! – disse Nicky, empolgada – em breve, estaremos na Cidade dos Adultos,
com festas todos os dias, namoros eternos, jogos e diversão a noite inteira!
– Uau, mal
posso esperar... – e as palavras de Ash vieram acompanhadas de um tom de enfado
e uma ironia que não combinavam em nada com a frase.
– Nossa, Ash,
que deprê... Não está ansiosa para se tornar adulta?
– Pra dizer a
verdade, não. – Ash disse, quando viu que Peter Scala entrava na sala também –
Não vejo como a gente possa deixar de ser girino e passar a ser adulto assim,
de um dia para o outro. Ontem, eu era uma criança, hoje sou um adulto. Como
posso mudar assim, tão de repente?
– Você não
mudará de repente – interveio Peter – Você tem estudado todos esses anos e tem
amadurecido. Passar para a fase adulta vai ser só uma continuação desse
amadurecimento, uma nova etapa...
Peter era, de
longe, o rapaz mais inteligente e interessante da turma. Tinha olhos
alaranjados, cabelos bem curtos e louros, e um narizinho empinado que, para
quem não o conhecesse, poderia ser confundido com arrogância. Mas Peter era um
doce de pessoa, compreensivo e atencioso. Nicky sempre dizia, em tom de
brincadeira, que ele estava estudando para ser um 8·3 quando se tornasse
adulto.
– Será
necessária uma mudança bem drástica para que eu comece a achar esse negócio de
“gravidez” algo interessante... Espreguiçadeira, 8·3! – disse Ash, já se
jogando para trás.
Uma
espreguiçadeira surgiu do LiquidGlass que
compunha o chão, antes mesmo que Ash pudesse se afundar no seu estofado macio
que simulava almofadas fofinhas.
Hologramas eram
sensíveis ao toque, e também podiam “tocar” as coisas e pessoas; então Nicky
sentou-se ao lado de Ash e começou a enrolar seus dedos no cabelo negro da
amiga:
– Ah, Ash, não
fique assim... Imagina quando pudermos nos encontrar pessoalmente, como vai ser
legal... Dizem que a sensação de um abraço e de um beijo é indescritível...
– Quem disse? A
gente não conhece ninguém que já tenha feito isso, sua doidinha...
– Oras, você
não conversa sobre essas coisas com o seu 8·3? Eu falo disso com ele o tempo
todo!... – Nicky olhava para o nada, suspirando – Mal vejo a hora de chegar à
Cidade dos Adultos...
– Pois eu não
falo nada disso com o meu 8·3 – respondeu Ash, melancólica – ele está aqui para
me ensinar. Se achasse que eu deveria aprender essas coisas, teria me ensinado.
Não preciso ficar perguntando nada.
– Mas bem que
você está sempre perguntando sobre as Guerras, a vida de antigamente, o
conceito de família e tudo o mais que havia na Era Pré-Revolução, não é? –
lembrou Peter, sorrindo. – Você não sabe nada sobre beijos e namoros, mas sabe
por que é que temos nomes e sobrenomes, mesmo sem que tenhamos uma família.
– Uau! Você
sabe sobre isso? – interveio Nicky – Ai, me conta? Sempre quis saber por que é
que meu sobrenome é “Lemnos”...
– Seu sobrenome
é “Lemnos” porque você nasceu e mora em Lemnos. Eu não sei onde isso fica, e se
você tivesse o mínimo interesse no seu passado, já teria perguntado ao 8·3. –
respondeu Ash, de forma um tanto rude. – Eu me chamo Ash Rybakivka porque sou
da região de Rybakivka, na costa do que antigamente era chamado de “União
Soviética”, e depois, de “Ucrânia”. Esse é o conceito de “sobrenome”, ele
indica de onde você é, senão não haveria como dar um nome diferente para cada
um dos... um milhão, cento e setenta e dois mil e oito habitantes da Terra.
– Um milhão...
cento e... o quê, mesmo?... – Nicky, impressionada, tentava processar o número
que acabara de ouvir, com o dedo na boca e o olhar para o alto. Estava
claramente desconfortável com o ato de “pensar” que isto requeria. Nicky era um
doce de pessoa, e era a melhor amiga que Ash poderia ter, mas não se dava muito
bem com trabalhos intelectuais.
– Nossos
sistemas de mordomos pessoais sempre nos alimentam com o que mais gostamos de
saber, então acho que, se você não sabe de todas essas coisas, é porque não se
interessou em perguntar... – Peter disse a Ash, tornando ao tema anterior.
– Não mesmo. –
disse Ash, ríspida. – Se depender de mim, vou me trancar em casa na Cidade dos
Adultos e não vou dar nem bom dia aos vizinhos.
– Pois se
depender de mim, – interveio Nicky – você vai sair e se divertir com a sua
amiga aqui, todas as noites, e namorar um monte de gatinhos, como o...
– ...Peter? –
disse Ash, zombeteiramente, sabendo da quedinha que a amiga tinha pelo loirinho
de nariz empinado.
Ele corou na
mesma hora. Até mesmo os hologramas conseguem transmitir a vergonha que suas
personas sentem. Ash não queria deixar o rapaz encabulado, então continuou a
falar:
– De qualquer
forma, se for pra manter relacionamentos apenas com pessoas da nossa idade, com
as mesmas experiências, ou a falta delas... que vantagem há em ir para a Cidade
dos Adultos? Eu imagino que, se houver algo interessante por lá, virá dos
adultos mais velhos, que têm mais coisas para ensinar, mais experiências para
passar...
– Mais coisas
para ensinar? Mais do que o 8·3? – Peter parecia quase ofendido.
– Peter, há
coisas que os robôs não podem ensinar pra gente.
– Sério? Tipo o
quê?
– Ah, sei lá! –
Ash já estava cansada daquela conversinha – O 8·3 é o único ser pensante que eu
tenho contato, então, se eu soubesse, seria porque ele me ensinou, não é? Eu
quero conhecer coisas novas, saber de opiniões diferentes, de histórias que não
são contadas pelos robôs e que não estão nas nossas cartilhas!
– Obrigada por
não me considerar um “ser pensante”... – disse Nicky, com um biquinho de choro.
– Nicky, não me
leve a mal... – Ash tentou consertar de novo; naquela noite, estava conseguindo
se indispor com todo mundo – Mas como é que um robô conseguiria te explicar
como é um beijo, um abraço, o sexo ou... sei lá, um soco na cara?
– Você quer dar
um soco em quem, menina?
– Não sei...
talvez eu já me contentasse em levar
um. São experiências que os 8·3 não irão nos transmitir. Como imaginar coisas
que nunca sentimos? Como saber o que espera “lá fora”? Como eu posso te
explicar que “gosto” tem as coisas, como uma pitaia, ou um... bife de boi?
– Argh,
credo! – interrompeu Nicky, fazendo cara de nojo – Só você mesmo, pra
falar essas coisas horríveis! Onde já se viu, comer carne de boi? Não somos
mais os selvagens de antigamente!
– Mesmo assim,
Nicky – prosseguiu Ash – Você não pode saber se é ruim se não experimentar...
– Posso sim. Eu
nunca experimentei... sei lá... cocô, por exemplo. Ou besouros. Mas, pelo
cheiro, deve ser horrível, então nem vou perder meu tempo. Se o cheiro é ruim,
o gosto vai ser também.
– Vendo por
esse lado – Peter disse, como que para lembrá-las de que ainda estava por ali –
Rosas e Damas-da-Noite têm um cheiro ótimo, e nem por isso a gente as come...
E, voltando-se
para Ash, concluiu:
– Eu acho que
você deveria parar de pensar nessas coisas. Os Sistemas não gostam de pessoas
subversivas, questionadoras. Você pode acabar... sei lá... banida.
– Xiiiiiu! –
sussurrou Nicky, apavorada – Não diga isso, nem brincando!...
– Quem sabe se
não seria melhor, mesmo... – disse Ash, mesmo sabendo que não era verdade. – O
que é melhor: saber de todas as coisas, as boas e as más, e ter poder de
escolha, ou apenas aprender o que nos ensinam, ser feliz e agir como uma...
um... um boi que vai pro abate?
– Eu prefiro
ser feliz. Pronto. – disse Nicky, bastante séria – E vou parar de falar com
você sobre essas coisas, porque não quero me preocupar nem me prejudicar
depois. Tchauzinho-o...
E, de repente,
o holograma de Nicky sumiu da sala de Ash, deixando que seus cabelos negros
caíssem sobre a espreguiçadeira. Peter continuou por lá, taciturno e calado.
Ash também não queria mais ficar falando – ainda estava remoendo o que seu
cérebro acabara de enviar para a sua boca.
– Peter –
disse, por fim – Não me leve a mal não, mas acho que não estou sendo uma boa
companhia pra ninguém hoje... Acho que a Nicky tem razão, vou me recolher e,
sei lá, tomar outro banho frio, pra ver se lavo a minha cabeça por dentro e
limpo um pouco essas ideias...
– Sem problemas
– disse o rapaz. – Eu vou estar por aqui, então, se quiser conversar sobre
outras coisas, é só me chamar. Vou ver se faço uns desenhos e se treino minha
caligrafia.
Mais do que um
costume, fazia parte do treinamento dos girinos a prática de atividades
manuais, como escrever e desenhar. O desenho era uma manifestação artística
bastante valorizada, porque, embora as Máquinas pudessem fazer ilustrações e
imagens ultra-realistas de qualquer coisa, ainda dependiam da criatividade dos
seres humanos para imaginar figuras inexistentes. A escrita era sempre feita
manualmente, e não apenas através de ditado ou digitação, por diversas razões:
a principal delas era que os movimentos executados pelas mãos, as curvas, idas
e voltas, etc, ajudavam o cérebro a memorizar e gravar a informação. Ash estava
devendo um pouco nesses exercícios, mas pretendia se ocupar deles assim que
passasse pela fase de inseminação, que estava marcada para dali a uma semana.
– 8·3, me
prepare um banho.
– Outro? –
espantou-se o robô – você sabe que não deve gastar tanta água, não sabe?
A água era um
recurso relativamente caro na época de Ash, mesmo com todos os avanços
tecnológicos que permitiam usar a água do mar através de um processo de
dessalinização. Toda água utilizada era tratada e recuperada, de forma que cada
casa praticamente utilizava a mesma água inúmeras vezes. Ash achava tudo aquilo
muito pouco agradável. “Então quer dizer que a água que usei hoje no meu banho
pode ser a mesma água que eu vou beber amanhã?”, ela perguntou certa vez para
8·3 – e não gostou nem um pouco da resposta.
Mas, dessa vez,
ela estava estressada demais para discutir com os criados; então disse,
impaciente:
– Ah, quer
saber? Acho que vou sair e nadar no lago!
– Ash, por
favor, não faça isso! – pediu 8·3, preocupado – Já é noite, não é seguro...
– O que pode me
acontecer, 8·3? Aparecer algum bandido como os que você disse que existiam na
Antiguidade? Oras, me deixe em paz!
– Não irá
aparecer ninguém, eu posso te garantir – respondeu a IA, quase mecanicamente –
eu monitoro todo o entorno da sua casa 24 horas por dia, e não há nenhuma
pessoa num raio de quilômetros. O que pode acontecer é você se afogar,
escorregar ou cair, porque está escuro e você pode não ver onde pisa.
– Acho que vou
conseguir suportar esse nível de emoção – disse Ash de volta, as palavras
pingando de sarcasmo.
Não esperou a
réplica do amigo: saiu de casa já tirando a blusa, enquanto andava a passos
firmes em direção ao lago, que ficava no sentido oposto ao da baía onde Ash
sempre se dirigia para seus exercícios. No caminho, aproveitou para ir tirando
o restante das roupas, até chegar completamente nua ao lago.
Não era uma
noite particularmente quente, e um banho gelado de lagoa talvez não fosse a
diversão ideal para a ocasião, mas Ash sentia que precisava esfriar a cabeça,
sentir algum desconforto... sentir o peito arfar por oxigênio... São em
situações de desconforto como estas que as pessoas evoluem, como ela havia
aprendido em alguma aula nos últimos tempos.
Pensou em
chegar devagar e sentir a temperatura da água, mas achou que, se colocasse os
pezinhos na água da margem, perderia instantaneamente a coragem de entrar com o
corpo inteiro. Decidiu ousar: chegaria correndo, e pularia o mais longe que
pudesse, mergulhando de cabeça. Assim, se ela titubeasse no último instante, a
velocidade com que vinha a faria cair na água da mesma forma.
O que Ash não
esperava era que a água estivesse tão congelante. Sentiu uma onda de choque
assim que sua cabeça mergulhou no abismo escuro e frio, fazendo com que, por um
momento, ela perdesse o controle da sua respiração. Acabou bebendo um pouco de
água, engasgou, debateu-se embaixo d’água, sentiu o corpo enrijecer
instantaneamente. Seus braços e pernas se contorceram em agonia, seu corpo se
tornou tão rígido quanto uma pedra embaixo d'água. Naquele instante, pela
primeira vez, Ash percebeu que estava submersa, lutando pela sua vida.
Não saberia
dizer, mais tarde, por quanto tempo permaneceu com esta sensação. Quanto mais
força tentava fazer para movimentar seus membros, menos parecia funcionar. Seus
olhos bem abertos não conseguiam ver muita coisa, seus pulmões ardiam pedindo
por oxigênio. Pareceu perder brevemente a consciência, e, nesse breve instante,
pensou ter visto a figura de Peter, ali, embaixo d’água, sorrindo para ela e
dizendo que não se preocupasse, que tudo terminaria bem. Mas Ash sabia que não,
que nada estava bem, muito pelo contrário.
“Vou morrer”,
pensou. “Agora mesmo”.
Foi quando seus
pés finalmente tocaram o fundo do lago, e ela teve um choque nas pernas, uma
descarga elétrica do inconsciente, que imediatamente fez seus músculos da
panturrilha explodirem e, com o impulso, arremessarem seu corpo de volta à
superfície como se Ash fosse um foguete. Assim que seu rosto saiu para a
superfície, os pulmões cobraram com juros o momentâneo racionamento de oxigênio
a que foram submetidos. Ash arfou como nunca pensara ser possível; seus braços
voltaram a se mover e suas pernas mexiam-se embaixo da água gelada como se Ash
fosse uma rã.
Qualquer outra
pessoa no mundo sairia imediatamente de dentro daquela água fria, mas Ash não
era uma pessoa comum. Ficou ali até convencer seu corpo de que era ela quem
mandava na situação. Foi pensando e analisando a experiência, tentando entender
por que é que, dentre todas as mais de um milhão, cento e setenta e dois mil e
oito pessoas que existiam, ela foi pensar justo em Peter num momento de tamanho
stress.
Bem, devia ser,
em parte, porque ela não conhecia praticamente nenhum daqueles milhão, cento e
setenta e dois mil e oito rostos. Resolveu mergulhar novamente, para tentar
recuperar alguma sensação diferente, que fizesse a ligação, na sua cabeça, com
o amigo virtual.
Olhou e
investigou o lago por dentro; nunca tinha feito isso à noite. Ele era escuro e
não dava para ver praticamente nenhum peixe. “Devem estar dormindo”, pensou.
Peixes dormem?
Com o passar
dos minutos, seu corpo foi acostumando à temperatura. A sensação de leveza
dentro da água era indescritível e fazia com que seus pensamentos também
ficassem mais leves. Virou-se de barriga para cima e boiou um pouco, olhando
para a Lua, seu rosto para fora da água e seus ouvidos ainda abaixo da
superfície, ouvindo o barulho abafado da água. Sorriu.
– Preciso
perguntar ao 8·3 se na Cidade dos Adultos eu vou poder nadar e mergulhar também
– disse em voz alta, e percebeu que, com os ouvidos submersos, ela não ouvia a
própria voz soando no ar, somente dentro da sua cabeça. Gritou:
– 8·3,
finalmente vou te perguntar algo útil sobre aquela Cidade dos Adultos! – e
completou com uma gargalhada, até que, de repente...
Ouviu um
barulho diferente vindo da mata.
Ash se
assustou. Fez menção de cobrir seu corpo; colocou um braço sobre os seios. Não
entendeu aquela reação, já que nunca teve vergonha de ficar nua (instintos?),
nunca teve vergonha de seu corpo. Vergonha era algo que, muito raramente, tinha
de seus pensamentos, de sua incapacidade ou inaptidão para fazer alguma coisa.
Quando se vive sozinha desde que nasceu, pensar em constrangimentos ou
embaraços é totalmente antinatural.
Ash cerrou os
olhos à procura de algum animal que pudesse ter feito aquele estranho ruído.
Pareciam passos. Parecia ter escutado uma respiração ofegante – mas, é claro,
com os ouvidos embaixo d’água, esse seria o último som que Ash poderia ter
escutado. Não fazia sentido perguntar “Quem está aí?”, porque 8·3 já havia dito
que não podia haver ninguém. A não ser que fosse algum andro-robô do próprio
8·3, monitorando Ash – mas robôs não respiram.
– QUEM ESTÁ AÍ?
– gritou, por fim. Fazer ou não sentido não era mais a prioridade naquele
momento.
E, é claro,
ninguém respondeu. Um medo incompreensível brotou do seu peito, e ela não
tentou perguntar novamente. Nadou até a borda, saiu da água, e sentiu de novo o
frio lancinante cortar seu corpo em mini fatias. Começou a tremer. Não sabia se
era de frio ou de medo; eram espasmos involuntários e aflitivos. Colocou os
braços sobre os seios novamente, abraçando-se a si própria, como uma reação de
autodefesa e autoproteção. Entrou um pouco mata adentro, estando preparada para
qualquer animal que resolvesse pular sobre ela.
Nenhum animal
pulou. Ela não enxergava muito além da ponta do nariz, já que, mesmo sendo
noite de Lua cheia, as árvores e a vegetação cerrada bloqueavam a maior parte
da luz. Decidiu voltar para casa.
Deu uma leve
corrida, esperando reaquecer a musculatura, mas, como não adiantou muito,
adiantou-se a pedir para 8·3, mesmo antes de chegar em casa:
– 8·3, me
prepare um banho bem quente. – e esperou, de coração, que o mordomo tivesse
ouvido.
Ela não estava
exatamente “suja”, e o banho não servia para retirar as impurezas do seu corpo,
então apenas deixou que os vapores quentes lhe envolvessem, enquanto permanecia
imóvel e pensativa. Deve ter passado muito tempo na mesma posição, até que 8·3 lhe
trouxesse de volta ao Planeta Terra:
– Se você tiver
a intenção de dormir aí no banho, me avise, eu crio uma cama de LiquidGlass à prova d’água pra você... –
esse era o máximo de ironia que 8·3 se permitia fazer.
– Ah, bem...
é... não, tudo bem, pode me secar agora, por favor. Minha roupa está pronta?
Acho que saindo daqui já vou direto para a cama.
Foi para o seu
quarto, ainda taciturna. 8·3 percebeu, e perguntou:
– Aconteceu
alguma coisa no lago, princesa?
“Princesa”...
Ash, na verdade, era a rainha. Quase uma deusa. Princesas não mandavam em nada.
– Não, só foi
um pouco cansativo. A água prende os músculos, a gente se cansa e nem percebe.
– Ok –
respondeu 8·3, após alguns segundos, o que demonstrava que ele sabia que Ash
estava escondendo alguma coisa. – Tudo bem, então.
Ela deitou-se,
e 8·3, após mais alguns segundos, pontuou:
– Sim. Você
vai.
– O quê?... –
Ash não entendeu a frase – Do que é que você está falando, 8·3?
– Na Cidade dos
Adultos – complementou 8·3, monotônico – Você vai poder nadar e mergulhar à
vontade. Só não recomendo que faça isso à noite, porque, obviamente, isso não
parece te fazer bem. Agora boa noite; amanhã eu te acordo logo que o Sol
nascer.
– Hey! Então...
Você ouviu minha pergunta no lago, 8·3? – Ash pensou em perguntar se era ele
mesmo quem fez o barulho misterioso, mas preferiu uma pergunta mais evasiva –
Você ouviu mais alguma coisa por lá?
Não obteve mais respostas.