Capa da Obra

O HOMEM TRANSLÚCIDO - NO TEMPO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Para você, um robô é um robô. Engrenagens e metal; eletricidade e pósitrons.
Mente e ferro! Feitos pelo homem! Caso necessário, destruídos pelo homem!
Mas você não trabalhou com eles, de modo que não os conhece.
São uma raça mais limpa e melhor do que a nossa.”
Isaac Asimov, escritor



Tudo e qualquer coisa que puder ser automatizada para substituir humanos será.
Pode apostar!
Larry Gell, fundador da IAED – International Agency for Economic Development
(Agência Internacional para o Desenvolvimento Econômico)



Substituir homens por robôs é inevitável.
Larry Page, ex-presidente do Google



Há coisas encerradas dentro dos muros que,
se saíssem de repente para a rua e gritassem, encheriam o mundo.
Federico García Lorca – poeta e escritor








PRÓLOGO

Verão de 2036

Assim que dobrar a esquina, talvez fique livre para sempre do controle que Ali quer exercer sobre ela. O niqab só deixa os olhos de fora, mas eles também estão encobertos pelos velhos óculos de sol que pegara da avó turca.
O suor escorre pela testa e ensopa o resto do corpo, desacostumado à vestimenta escura e pesada, enquanto ela aperta com força o guidão e pedala vigorosamente a bicicleta mecânica. Embaralha-se entre adolescentes muçulmanas que se dirigem à escola no retorno às aulas em suas bikes elétricas.
Os disfarces ajudam Norah a driblar os sistemas de localização, ao evitar a detecção imediata pelas câmeras de reconhecimento facial. Ela já não tem mais idade para estar ali, ao lado das meninas; mas precisa delas para se misturar aos véus e roupas islâmicas que quase todas usam. É magra e ágil; sua presença se dissimularia entre as garotas, imagina.
“Concentre-se, Norah. Falta pouco! Você vai conseguir”, pensa, ofegante, com o olho pregado na pista. A próxima rua - uma travessa ocupada por casas antigas, com postes de luz dos anos 2020 - é tomada por mangueiras centenárias e telhados gastos.
A vantagem é que ainda está fora do alcance das redes 7G que começam a ser implantadas por todo o país. Sem o chip no útero e por alguns minutos escondida das transmissões em tempo real, talvez consiga escapar, quando virar em direção à viela.
Norah gestara Ali como uma entidade em realidade aumentada, um holograma dotado de IA de última geração, e o transformara em companheiro e amor de sua vida.
Agora, precisa desestruturá-lo ou exterminá-lo, mesmo contra sua vontade, para que ela própria possa continuar a viver. Como fará isso e qual será o sentido de sua própria existência daqui em diante ainda não consegue imaginar.
Como engenheira de algoritmo, criara inúmeras inovações; por isso, alimenta a esperança de instaurar nas entranhas neurais de Ali a fórmula que poderá reestruturar o homem que tanto ama e que agora a faz sofrer, por dominar e manipular sua rotina e seus pensamentos.
Rabiscara a solução de algoritmos em um papel, para não deixar vestígios, caso usasse seus sistemas de rede. O manuscrito e o micro HD com o projeto estão com Fuad, seu irmão autista, um nerd que mora na casa da avó Aysha e vive trancafiado no quarto, envolto em fórmulas de informática em seus equipamentos obsoletos.
É para lá que Norah se dirige. Ela espera que o irmão possa ajudá-la a reprogramar a IA da entidade de uma maneira mais rápida do que a velocidade com que ele a persegue e assimila as manifestações de seu corpo, de suas feições e de seu cérebro.
Desde que o criara, Norah alimentara as sinapses virtuais de Ali com todos os dados possíveis de sua própria natureza machista e insegura. Assim como seus ancestrais entrelaçavam as tramas frágeis de seda em um delicado mosaico de cores e formas nas tapeçarias turcas, Norah tecera Ali, de maneira inconsciente e cuidadosa, com milhões de algoritmos oriundos de sua formação como mulher de origem muçulmana.
Naquele momento, Ali navega desesperadamente à procura de Norah. Em um átimo perdera o contato da amada. O último registro nas redes é do consultório da ginecologista, onde Norah levara a amiga Iracema para um exame.
Ali desenvolvera objetivos próprios e usa o conhecimento adquirido para manipulá-la. Norah não detém mais controle sobre o ser artificial que escolheu para ser seu companheiro.
O homem diáfano e luminoso, que a envolvera e satisfizera todos os seus desejos, crescera em intuição, sentimentos e raciocínio nos dois últimos anos; transformara-se em um robô psicopata, cujos circuitos se expandem com a rapidez de um facho de luz.
Será possível transformar a IA de Ali para que ele volte a ser um parceiro amoroso, com quem ainda possa conviver, como era no início de tudo? Essa é a dúvida que massacra Norah e alimenta uma réstia de esperança em seu íntimo, enquanto se aproxima da casa de Aysha.

1

A costureira

Norah observa atentamente a projeção da mulher na sala.
- Dá uma rodada e movimente os quadris para eu ver o caimento do vestido. Isso, devagar! Levante um pouco os braços até a altura da cabeça – orienta à cliente, que posa somente de calcinha e sutiã direto de casa, com sua reprodução delineada em holograma no apartamento de Norah, a quilômetros de distância.
Ela aponta o lápis laser para a imagem e faz alguns ajustes no vestido. Um arredondado aqui, leve levantada de bainha ali... Em minutos, a roupa estará pronta para ser finalizada; basta enviar os comandos para a impressora 4D, que concluirá o traje em menos de duas horas.
À tarde, a vestimenta em seda pura será entregue pelo UberAirExpress, o UEX, serviço de pequenos drones autônomos para remessa de mercadorias. É o mesmo sistema usado por Norah para encomendar a comida caseira personalizada feita por Iracema, uma negra que morara em comunidade próxima, enriquecera com a produção de quitutes e se tornara amiga e confidente.
- Acabei de programar um vestido maravilhoso! Pensei em fazer um igual para mim, mas para usar em qual festa? Só saio pra trabalhar! – comentou com a projeção de Iracema, após se desligar da cliente.
- Você precisa deixar essas coisas de informática um pouco de lado! Nem namorado procura mais, depois que fez isso que você chama de homem! Cruz, credo! Sai dessa logo!
Norah se despediu e desligou a conexão, desapontada pelo comentário de Iracema. Logo em seguida, rodou a cadeira para olhar o ambiente que era quase seu cárcere voluntário.
Herdara o amplo apartamento do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, com todos os móveis. Quase 20 anos após a morte dos avós paternos, quase nada sobrara.
No salão, à direita da porta de entrada, preservara a mesa de jantar de seis lugares, com tampo de vidro temperado sobre seis colunas de madeira laqueada de branco. É mais usada para espalhar as peças de seda do que propriamente para refeições.
A enorme arca branca, encostada na parede perto da mesa, guarda poucas toalhas, louças e talheres, mas não tem espaço ocioso; quase tudo está preenchido com linhas, tesouras, rolos de seda e outras quinquilharias utilizadas por Norah em suas costuras.
Nas raras vezes em que ali se sentou para comer algo, sentiu o peso da solidão sobre as cadeiras vazias em volta da mesa. Preferia almoçar ou jantar na copa, ao lado da cozinha.
Sua estação de trabalho fica na parede oposta à porta de entrada, entre o janelão da sala, à esquerda, e o corredor que leva aos três quartos. No espaço entre ela e a entrada, um valioso tapete, de quase 16 metros quadrados, que a avó Aysha trouxera da Turquia ao imigrar para o Brasil, ocupa quase todo o chão vazio.
É uma peça sóbria, com desenhos de folhas em vários tons de verde escuro. A cada vez que atravessa a sala, Norah imagina pisar sobre uma densa floresta que cobre o piso branco e frio. O salão é tão grande que, se quisesse, ela poderia chamar os amigos que não possuía para fazer as festas de que não gostava naquele vão ocupado pelo tapete. Isso nunca aconteceria; sempre fora uma pessoa reclusa, avessa às confraternizações sociais.
Para Norah, o apartamento era um santuário de família, ou do que restara dela. De seu, mesmo, colocara uma estante para abrigar algumas recordações de viagem, como dois pequenos budas indianos, bolas chinesas para massagem terapêutica das mãos, uma estatueta colombiana de Botero, um vaso de cristal veneziano e outras bobagens pouco expressivas.
Alguns livros em papel são mantidos para lembrá-la da adolescência em Barra do Piraí, cidade no Sul do Estado do Rio, onde nascera e fora criada. Numa extremidade da estante, dois vasinhos com plantas artificiais melancólicas completam o cenário.
Fora esses retoques de cores, o branco domina o ambiente, desde o sofá de três lugares e as duas poltronas, comprados assim que se mudara, até paredes e janelas. “Preciso colocar um pouco de emoção na minha sala, umas plantas verdadeiras, um quadro vermelho...”.
Foi o primeiro pensamento crítico que teve sobre o que deveria ser um lar, após muitos meses ligada nas redes para produzir Ali que, como uma nuvem em forma de homem, a observa do canto da sala, ao lado do acesso à cozinha.
“Às vezes, penso que minha amiga tem razão. Mas gosto da minha vida desse jeito”, pensa. Iracema é a fuga dos circuitos cibernéticos de Norah, cujos relacionamentos se restringem aos vários grupos virtuais para discussão de aperfeiçoamento de algoritmos e aprendizado profundo.
Em vez da especialista em IA, como é conhecida pelos outros, com a cozinheira pode ser somente “a mulherzinha”, como graceja ao falar de amores fracassados, inseguranças, dietas e coisas banais.
A amiga também é a única que sabe um pouco da vida pessoal de Norah. Alguns meses antes, conhecera a avó Aysha e o irmão Fuad durante uma visita que fizeram à cidade onde Norah nasceu.
As duas foram a Barra do Piraí em um UberAir – o drone autônomo para transporte de passageiros, seguro e econômico, totalmente operado por sistema de IA, sem motorista ou controlador.
A distância de 130 quilômetros entre o apartamento e a cidade de sua família foi percorrida em pouco mais de uma hora no veículo, que fora lançado como táxi voador cinco anos antes.
Raramente Iracema tinha chance de sair da rotina atribulada de sua cozinha. Aquela fora a primeira vez que percorreu pelo ar o trajeto sobre as montanhas da Serra das Araras. Ficou encantada com a paisagem e os lagos formados pela represa em Piraí, cidade pouco antes de Barra do Piraí.
- Quanta coisa bonita a gente tem pra ver no nosso país! – comentou a cozinheira.
Durante a viagem, Norah revelara à amiga detalhes de sua criação muçulmana e parte do histórico da família. Depois desse passeio, Iracema passou a olhá-la de outra maneira e a entender sua reclusão da vida social.
Ao contrário da mulher emancipada e segura, rápida e fria em suas decisões, Norah se revelou neta acolhedora e carinhosa, ao ajudar a avó prejudicada pelo Alzheimer. Mostrou-se também irmã paciente e afetuosa, ao interagir com Fuad e ajudá-lo a resolver questões no velho computador que ele cismava em usar.
Norah e Iracema compartilhavam o mesmo signo, capricórnio, e a mesma idade, 34 anos, com diferença de poucos dias. Ambas nasceram em janeiro do ano dois mil, na virada do século, mas Norah carregava sua predestinação para a informática desde a vinda ao mundo.
A mãe entrara em trabalho de parto antes da data prevista para a cesárea, em um momento de apreensão e desligamento de equipamentos sensíveis dentro do hospital. Ela nascera à meia-noite e cinco de primeiro de janeiro, em meio ao temido “bug do milênio”, quando especialistas projetavam uma pane nos sistemas de internet na virada de 1999 para 2000, o que afinal não se concretizou.
Enquanto Iracema penara na pobreza para se criar em uma comunidade nos morros do Pavão-Pavãozinho, entre Copacabana e Ipanema, Norah crescera formada por uma rígida e tradicional educação em uma família de origem turco-libanesa, ao lado de dois irmãos, dos pais e da avó.
A primeira mal concluíra o ensino básico e engravidou na adolescência. Os filhos gêmeos nunca conheceram o pai. Norah, por falta de opção ou medo de rejeição, optou por não casar e não quis ter filhos.
Norah recolhe cuidadosamente o vestido da impressora e olha orgulhosa para sua produção. “Preciso, sim, fazer um desses para mim”, imagina novamente. Além da precisão de caimento no corpo da mulher, os tecidos montados em 4D podiam incorporar nano chips que dotavam as roupas de percepção inteligente.
Ela criara um sistema em sua impressora que permitia à cliente encomendar o que apelidara de “vestimenta viva”. A tonalidade das roupas variava conforme a luminosidade do ambiente ou a emoção da usuária. Era como se o vestido sorrisse para as pessoas quando ela estivesse feliz ou chorasse se a cliente sentisse tristeza. A IA do pano interpretava a emoção do corpo conforme batimentos cardíacos, aceleração da respiração e calor da pele.
Quando recebesse e aprovasse o vestido, a meticulosa cliente, muçulmana como ela, transferiria mil kuruscoin para a conta virtual de Norah no sistema de pagamentos da Turquia.
O valor em criptomoeda era alto, mas condizente com o serviço exclusivo que Norah executava, o bastante para comprar a passagem aérea e pagar a hospedagem da viagem de férias que ela programara para Buenos Aires, cidade argentina que queria rever.
Valor da Ação (Personalizada): R$ 0,25

📚 Capítulos

Nenhum capítulo disponível ainda.

🏆 Principais acionistas

💬 Comentários

Nenhum comentário ainda.