- Vai demorar muito para terminar, "senhora"? Estou com frio?
Nephi levanta o rosto ensanguentado e olha Arthur diretamente nos olhos.
Ela enfia a mão dentro do cadáver, arranca um pedaço do fígado e o leva a boca, chupando-o para dentro com um barulho de sucção. Isso tudo sem tirar os olhos dele.
- Humpf - resmunga ele virando o rosto, não por ojeriza, mas para que ela não visse o sorriso que ameaçava escapar.
Antes, Nephi rosnaria diante da chamada dele, mas ultimamente ela se dava a algumas tiradas irônicas. E Arthur estava gostando desta humanização dela.
— Tudo bem — disse ele — não tenha pressa. Você não sente frio, não é? Não está congelando como eu?
A Nefilim voltou a se concentrar no cadáver do salteador e ele voltou a observá-la.
Havia quase dois anos que estavam na Inglaterra, vindos da Terra Santa.
Literunico - O espaço dos criadores de conteúdo literário.⁕⁕⁕
A viagem desde Jafa fora tumultuada.
O mar revolto jogava incessantemente o navio de um lado para o outro, fazendo com que Nephi se encolhesse no canto do porão a eles designado, assustada, enjoada e irritadiça, rosnando para ele toda vez que se aproximava.
“Nisso pelo menos ela é humana”, pensou Arthur, que lhe jogava pedaços de pão e carne seca, os quais ela ignorava, devido ao enjoo, provavelmente.
Mas uma hora ela teria fome, fome de verdade, então ele deveria já deixar algo substancioso encaminhado.
Mesmo com o tempo turbulento, os homens no navio costumavam se reunir em uma saleta embaixo do convés de proa, para jogar dados, conversar e beber escondidos do capitão. Os frequentadores eram principalmente os tripulantes que não estavam de serviço e, ocasionalmente, os passageiros.
Arthur foi para lá, mas não sem antes falar para Nephi que, se quisesse fazer suas necessidades, que o fizesse da amurada do navio, mas que esperasse anoitecer para que ninguém percebesse que era uma mulher.
Acreditando que ela o tinha entendido se dirigiu, segurando-se como podia devido ao balanço do barco, para o local.
Quatro marujos estavam ali, de um total de oito, mais o capitão que Arthur vira no leme, se esfalfando para conduzir a embarcação.
Um dos passageiros jogava dados com os homens, enquanto um segundo apenas olhava sem interesse.
O ex templário aceitou uma caneca, com um líquido escuro que parecia vinho.
Não que fosse beber, seus votos o proibiam.
“Meus votos”, pensou com amargura e ironia. Quantos ele já quebrara? Que diferença faria mais um?
Levou disfarçadamente a caneca ao nariz e cheirou.
O odor azedo fez seus olhos lacrimejarem. Se ia pecar, não seria com aquela porcaria.
Manteve a caneca entre as mãos e disfarçadamente começou a analisar os homens ao redor.
Os dois passageiros, apesar de molhados, estavam bem-vestidos, afinal eram comerciantes ingleses, como informara o capitão no porto antes do embarque.
Os demais estavam maltrapilhos e com um aspecto imundo além da conta.
Arthur pensou em Nephi pondo as mãos naquelas sujeiras ambulantes e se sentiu nauseado por ela. Sabia que ela não ligaria, mas pensava que a garota merecia uma refeição mais decente.
— O sabor, com certeza, é pior que o cheiro.
Ela deu um pulo, como se tivesse sido pego em flagrante. Virou-se e deu de cara com um dos passageiros o encarando com um meio sorriso no rosto.
Era um homem já de certa idade, o rosto magro tinha uma barba rala, branca e bem aparada e os olhos azuis exalavam simpatia.
— Perdão? — perguntou Arthur ressabiado, em francês normando, mesma língua que o passageiro tinha usado.
O homem apontou para a caneca nas mãos do outro:
— Vi que cheirou o vinho. Não prove. Cometi este erro tentando ser simpático com nossos “anfitriões. Jogue fora disfarçadamente, afinal, não é bom desagradar estes brutos.
— Obrigado — agradeceu a Arthur, relaxando ante o tom de zombaria que o outro usou.
— Sou John Duffin, da Inglaterra.
— Arthur Deboise da… França.
— E o que fazia na Terra Santa, Senhor Deboise?
— Eu, hã… vim intermediar negócios para… alguns senhores normandos que…. que querem vender viveres para a Ordem dos Templários.
Arthur se recriminou por gaguejar. Não estava habituado a mentir, mas a única coisa que lhe viera à mente eram os comerciantes que chegavam até a ordem querendo fazer negócios.
Não sabia se o outro acreditara, então resolveu se adiantar para evitar mais perguntas:
— O senhor é comerciante também, não?
Duffin deu de ombros:
— Meus dois companheiros são. Eu aproveito a vinda deles pela companhia e para dividir custos, pois meu interesse na Palestina é outro. Sou um estudioso. Venho procurar pergaminhos com textos antigos, artefatos históricos e narrativas orais do povo local.
O homem, percebendo o interesse de Arthur, desandou a falar.
Este ficou fascinado pelo jeito de narrar de John, intercalando momentos inflamados, principalmente quando o vento e chuva aumentavam, com outros quase sussurrados. Tão absorto ficou que não viu a hora passar e percebeu que se esquecera de Nephi. Achou melhor ver como ela estava.
Agradeceu a conversa e combinou de terem outras nos próximos dias.
Ao chegar no porão, encontrou a garota comendo um rato que apanhara.
— É melhor se contentar com estes bichos — disse ele. — São menos nojentos que os homens deste navio.
Nephi nem o olhou, concentrada em arrancar pequenos pedaços de carne da carcaça.
Ele se deitou em seu catre. Ela terminou de chupar alguns ossos, pegou um pouco de água em um balde, lavou o sangue do rosto e das mãos e foi se deitar com Arthur.
Ele pensou se, estando menos enjoada, ela iria querer fazer amor e isto o deixou preocupado.
Um pano pendurado lhes dava certa privacidade aos olhares dos outros, que dormiam ali perto, mas, com certeza os ouviriam, pois Nephi era bem escandalosa na hora coito e ele havia dito a todos que sua companhia era um rapaz, seu sobrinho.
Das duas uma: ou seriam acusados de serem sodomitas incestuosos, ou, vendo que era uma mulher, talvez quisessem abusar dela, o que de toda maneira não aconteceria, mas terminaria em um banho de sangue.
Arthur ficou tenso quando ela encostou nele, uma mistura de desejo lascivo e pavor excruciante. Aquela garota tinha o dom de causar estes sentimentos ambíguos no ex-templário.
Mas ela se aninhou sob o braço dele e ficou quieta. Com certeza ainda estava mareada, o que ele, por um lado achou bom, mas por outro o frustrou. A dualidade de novo.
Ele fechou os olhos e orou, buscando serenidade.
Para sua surpresa, a encontrou. Deus ainda não o havia abandonado!
Nephi dormiu e ele, delicadamente usou a ponta dos dedos para acariciar-lhe os cabelos.
Um misto de ternura e responsabilidade o invadiu.
Talvez o Senhor o houvesse confiado a missão de ensinar aquela criatura, que de certa forma era divina, uma filha dos céus, os caminhos dos homens e da fé.
Pensou em John Duffin e seus conhecimentos. Talvez o inglês pudesse lhe dar informações úteis que o ajudassem a lidar com a Nefilim.
Na próxima conversa, daria um jeito de tocar no assunto.
⁕⁕⁕
O mar acalmou-se um pouco nos dias seguintes, apesar de o tempo permanecer nublado.
Com a relativa calmaria, a alimentação a bordo melhorou, pois o capitão acendeu um braseiro para preparar comida quente para seus passageiros, que haviam pago caro pela viagem e até um peixe ocasional entrava no cardápio.
Nephi preferiu continuar comendo os ratos no porão e Arthur, depois de muito falar no ouvido dela que não atacasse ninguém no navio, pois ele havia pensado melhor e isto não seria uma boa ideia, que o local não era tão grande, que, mesmo jogando o corpo ao mar, não teriam como esconder o sangue, enfim, toda uma série de contras.
Ele acreditou que ela havia entendido, devido ao olhar enfastiado que a garota lhe lançou, diante de seu falatório, então se dedicou a conversar mais com John Duffin.
Ao longo dos dias, o homem lhe contou histórias de suas descobertas, sempre daquele jeito cativante.
Falou de escritos sobre Jesus que não estavam na bíblia, que foram escondidos pela igreja, o que fez Arthur se persignar horrorizado.
Descreveu demônios e criaturas da mitologia judaica e oriental e foi aí que Arthur achou que seria o momento de perguntar:
— E os nefilins?
O inglês olhou o ex-templário com uma chama no olhar:
— Por que pergunta por eles?
Arthur coçou a cabeça desconcertado e respondeu sem muita convicção:
— O padre do povoado onde cresci, durante uma missa, leu sobre eles na Gêneses em um sermão sobre decadência. Depois ouvi alguma coisa aqui e ali. Um homem santo em Paris me disse uma vez que Golias, o gigante derrubado por Davi, era um nefilim e que eles assolaram o mundo antes de Deus mandar o dilúvio.
A parte do padre era mentira, mas a do homem santo não. Na verdade, era um capelão da ordem, que havia falado sobre aqueles seres para Arthur e ele sim fizera um discurso sobre decadência, usando os nefilins como exemplo, de como eram seres divinos, gigantes donos do mundo e acabaram em nada, com um único descendente derrotado por um garoto com uma funda. Na ânsia de responder algo, Arthur mentira e acrescentara meias verdades, mas aquilo parecia ter agradado a John Duffin, que retomou seu discurso empolgado.
— Então, Deboise, há um equívoco muito grande sobre nefilins e gigantes! As palavras antigas foram traduzidas erroneamente. Elas mencionavam que os nefilins eram “grandes”, homens “gigantescos” e com isso foram associados a gigantes em estatura, mas, ao que apurei, eram gigantes de outra forma. Dispunham de muita força física e viviam longamente, mas também eram de uma inteligência superior e por isso foram reis, estadistas, homens da ciência. Construtores! Encontrei evidências de que estão por trás da construção das pirâmides do Egito!
— Inteligência superior? — Arthur olhou para Nephi, que naquele dia resolvera sair do porão e se encontrava a poucos metros dele.
Ela usava um manto com capuz, que lhe cobria as feições e os olhos azuis faiscantes. Há vários minutos estava estática, olhando para uma gaivota que pousara na amurada, poucos metros mais além.
Estava de costas para ele, mas, conhecendo-a bem, Arthur notava em sua postura que ela estava “de tocaia”. Ou talvez só estivesse curiosa com aquele animal que nunca vira. O que esperava era que Nephi não o atacasse e devorasse ali, diante de todos.
Ela era tão primitiva, tão tosca, entregue aos seus instintos animais. Onde estava aquele brilhantismo a que John Duffin se referia? Seria mesmo ela uma Nefilim?
— Só homens? — perguntou Arthur, se voltando para o homem mais velho e diante do olhar interrogador completou — Você citou homens, fortes, reis e outras coisas.
— Oh, não! — respondeu o outro abanando uma das mãos. — Houve mulheres — o inglês se curvou para a frente. — Colhi relatos, antigas histórias entre os nórdicos de mulheres que realizaram grandes feitos. Tenho quase certeza de que eram nefilins. E de rainhas e heroínas no oriente.
— Me parece que você tem muito interesse nestes seres? Por quê?
— Pense, Arthur, seres que carregam a centelha dos anjos, com toda a força e capacidade deles, misturada ao irrefreável desejo humano de evoluir. O que eles poderiam ter feito pela humanidade? Onde poderíamos estar agora? Com certeza não navegando em um amontoado de madeira colado com piche. Não retornando de uma terra arrasada pelas divergências religiosas dos homens. Poderíamos estar vivendo em um mundo fantástico, em paz e prosperidade.
— Ou seríamos escravos deles. Ou ainda sua fonte de alimentação — contrapôs Arthur.
— Oh! Um embate filosófico! Gosto disto.
O francês deu de ombros:
— Qual a necessidade de fazer um embate sobre algo que nem sabemos se existiu de fato e, se existiu, hoje são apenas lendas de algum passado distante. — Ele olhou para o outro — Me perdoe se pareço desprezar suas pesquisas, mas é difícil acreditar nestas coisas.
Arthur se voltou, para que o outro não notasse a falsidade que acreditava carregar no olhar.
Depois de uns minutos de silêncio, John se manifestou:
— Ouvi relatos…. recentes
Arthur sentiu um calafrio na espinha:
— Re…. recentes?
—Sim, nos últimos anos. Vilarejos destruídos sem que ninguém soubesse pelo que, com todos os habitantes mortos e empalados, sem uma gota de sangue em seus corpos. E mais recente ainda, um monstro que destroçava muçulmanos na estrada para Jafa.
O ex-templário olhou preocupado para a nefilim, que continuava a encarar a gaivota.
Seus planos de terem uma vida discreta no interior da França estavam ruindo em sua alma. Achou que nunca conseguiria esconder do mundo o que ela realmente era. Talvez o caminho fosse mesmo se enfurnarem nos confins da Terra.
Subitamente o vento soprou forte, fazendo o barco balançar. Nuvens negras despontaram no horizonte distante.
— Teremos uma bela tempestade esta noite.
A voz do capitão chamou a atenção dos dois homens.
— Falta muito para chegarmos a Itália? —perguntou John Duffin
— Com a graça de Alá chegaremos amanhã, mas teremos que lidar esta noite com a tormenta que está vindo. Peço aos senhores que fiquem em seus lugares e não subam ao tombadilho. Não quero que caiam ao mar.
O vento forte pareceu incomodar Nephi, que finalmente se moveu e se dirigiu ao alçapão que levava ao porão.
Uma lufada arrancou o capuz de sua cabeça e levantou seu manto, expondo seus cabelos louros e as curvas de seu corpo. Rapidamente ela se aprumou e sumiu pela abertura.
“Pelo menos não viram seus olhos”, pensou Arthur vendo os marinheiros cochicharem entre si e rirem e se lembrou que até então os homens a bordo achavam que Nephi era um rapaz.
— Melhor ficar de olho em seu “pupilo” — comentou John Duffin, fazendo Arthur entender que ele também percebera o acontecido.
— De fato. Com licença — pediu e foi atrás da garota.
***
Arthur acordou com um sobressalto.
Não sabia se o que o tinha acordado de forma tão abrupta fora o esguicho de água em seu rosto, a sensação de girar solto na escuridão, ou um som, que não conseguiu identificar se era um grito ou uma explosão.
Por um momento não soube dizer se estava deitado ou em pé.
Um clarão repentino, seguido de um ribombar estrondoso, clareou o entorno rapidamente, mas o suficiente para ver que estava sentado em seu catre, no porão do navio, que subia e descia insanamente, fazendo o estômago do ex templário embrulhar, enquanto rangia em suas velhas tábuas.
Novo clarão e novamente a água salgada o molhou e ele pode ver que ela entrava aos borrifos pela escotilha de acesso ao porão.
Uma tênue luminosidade amarela se insinuou pelas tábuas sobre sua cabeça.
“Fogo?”, pensou. Achou impossível aquela ideia no meio de uma tempestade.
As ondas batiam contra o casco, fazendo um barulho ensurdecedor, mas ele teve a nítida impressão de ouvir gritos.
Nisto, procurou em seu entorno e foi então que deu pela falta.
— Nephi?!
A garota não estava em seu canto e nem no porão. Arthur veria seus olhos azuis faiscantes na escuridão.
Aos tropeços se encaminhou para a escada da escotilha.
Novo relâmpago e ele viu os comerciantes amontoados em um canto, aterrorizados. John não estava entre eles.
Subiu os degraus de gatinhas e quando emergiu no tombadilho, pode sentir toda a fúria da tempestade que assolava a embarcação.
Ondas gigantescas fustigavam o barco, enquanto o vento uivava como mil demônios e as gotas de chuva pareciam adagas contra a pele.
Um bafo quente atingiu as costas de Arthur, que se virou e se deparou com uma cena infernal.
Apesar da tempestade, uma labareda de fogo, consumia a murada a bombordo do barco. Ele entendeu que ele era alimentado pelo azeite usado nas lamparinas, que no momento escorria de um barril destroçado. Em meio as chamas ele divisou um corpo carbonizado.
Mais além, sobre um tablado na proa, estava Nephi.
A luz do fogo e dos relâmpagos iluminavam seu rosto contorcido de cólera, os olhos faiscando, os dentes arreganhados.
Ela trazia a cabeça de um homem em uma das mãos e um braço na outra. Aos seus pés estavam dois corpos destroçados, cujo sangue espumava nas águas que escorriam pelo tombadilho.
A sua frente, um grupo de marinheiros urrava e a fustigava com lanças.
— Nephi! — gritou Arthur, tentando fazer sua voz se sobrepor ao rugido da tormenta e buscando se mover para ajudá-la.
— Foi você quem trouxe este demônio para bordo!
Ele se virou e o movimento do barco o fez tombar, o que salvou sua vida. A cimitarra do capitão passou onde antes estava sua cabeça.
Arthur estava sem uma espada. Levantou-se e apoiou-se na amurada, esperando um novo ataque para tentar desviar-se.
O capitão levantou sua arma.
Mas neste instante, uma onda gigantesca acertou a lateral do navio, levando tudo que estava em sua frente, inclusive o muçulmano.
Arthur só não foi carregado porque se segurava na mureta.
O barco virou de lado. O mastro se partiu e tombou como uma árvore. Houve um grande estalido e a embarcação partiu-se em duas.
Desta vez não houve como o ex-templário se segurar e mergulhou no mar agitado.
A última vez que ele havia nadado era quando ainda era criança, em um lago nas terras de seu pai, o Duque Deboise, então ele pouco pode fazer antes que o peso de suas roupas e do ouro que trazia em uma bolsa amarrada ao corpo, o arrastasse para o fundo.
Percebeu que seu destino estava selado e desistiu de se debater, mas segurou a respiração, tentando ainda ganhar alguns segundos neste mundo e dirigir um pensamento a Deus.
Que Ele o perdoasse por seus pecados e, que mesmo que fosse para o inferno, que o Altíssimo perdoasse Nephi e a recebesse em seu reino, pois, no fundo, ela era uma pobre alma inocente, sem consciência de seus atos.
Pediu por ela, mais que por si, pois tinha certeza de que a garota pereceria, pois lhe parecia ser impossível que Nefilins não se afogassem.
Quando ia sugar a água para dar um fim naquilo, seus cabelos foram agarrados e ele foi içado para cima com tanta força, que por pouco seu pescoço não se partiu.
Caiu em uma superfície dura e balançante e demorou um pouco para perceber que estava sobre um pedaço flutuante de madeira.
À sua frente, dois olhos azuis assustados o encaravam, faiscando entre madeixas loiras ensopadas. Nephi o salvara.
Perto dali restos do barco, alguns ainda em chamas, afundavam e sob o clamor da tempestade era possível ouvir gritos de socorro.
Um destes chamou a atenção de Arthur e ele viu, entre as ondas, os cabelos brancos de John Duffin.
— Salve-o! — gritou para Nephi, apontando.
Ela ficou receosa, mas ele insistiu. Uma voz interna lhe dizia que aquele homem merecia ser poupado:
— Vá!
Ela pulou na água e disparou nadando em direção ao homem que se afogava.
Arthur se perguntava onde ela havia aprendido a nadar, vivendo em um deserto quando sentiu sua perna ser agarrada. Olhou e era o capitão do barco que tentava subir na prancha:
— Misericórdia! Por Alá! — pediu o homem com os olhos esbugalhados de medo.
Arthur se virou e passou a acertar chutes com a sola da bota no rosto do otomano, até que ele o largou e sumiu nas águas.
O homem havia visto Nephi, então o francês não podia permitir que ele vivesse e contasse ao mundo. Era seu dever protegê-la, mesmo que tivesse que acrescentar assassinato aos seus pecados.
Quando se voltou, ela já estava próxima, arrastando um John Duffin desacordado pelo pescoço.
Arthur não sabia se ele ainda estava vivo, mas o içou, ajudou a garota a subir e a abraçou, esperando que sobrevivessem aquela noite.
⁕⁕⁕
A tempestade passou e eles se viram mergulhados em um denso nevoeiro.
Arthur se perguntava se não haviam morrido e agora vagavam em algum lugar entre o céu e o inferno, pois nada se via ou ouvia, além do marulhar das águas na tosca embarcação.
Mas o Sol despontou e espantou as brumas e a escuridão e puderam avistar terra. Era a costa da Itália.
Usando as mãos conseguiram remar e chegar até lá.
Nephi saltou da tábua e se dirigiu a praia ficando em pé estática, olhos fechados, sentindo o calor crescente do sol em sua pele.
Arthur arrastou John, ainda desacordado até a areia. Depois se dirigiu furioso até a garota, agarrou-a pelos braços e a chacoalhou, tirando-a de seu transe:
— Por que fez aquilo? Não podia segurar sua gula só mais um pouco? Estávamos tão perto e você quase colocou tudo a perder!
Ela ficou aturdida por instantes, mas então rosnou e puxou seus braços, soltando-os das mãos do homem e os dois ficaram se encarando.
— Nã...não foi culpa dela.
Eles se viraram e deram com John erguendo-se penosamente. Assim que ficou de pé, o inglês os encarou:
— Eu não conseguia dormir por causa da tempestade e vi quando ela foi em direção a escotilha, sorrateira como uma sombra. Ela me olhou e vi seus olhos acesos como tochas. Aquilo me impressionou e decidi segui-la. Ao chegar no tombadilho, me esgueirei aos tropeços para um canto e, de lá, vi a mais bela cena de minha vida. Ela — e apontou para Nephi — estava em pé na proa, firme como uma rocha, os braços abertos e olhava extasiada para os relâmpagos que riscavam o céu! Sua pele branca, seus cabelos dourados, pareciam refulgir e seus olhos brilhavam mais que qualquer luz que o firmamento mandasse! Ela...parecia uma deusa!
Ele calou-se por instantes, mirando-a extasiado
— Os marujos apareceram, com más intenções. Ela tentou se desvencilhar e voltar para o porão, mas eles a cercaram. Um deles a agarrou pelo braço. Ela o segurou, o levantou como se fosse um boneco de papel e o atirou sobre os barris de óleo. O marinheiro carregava uma lamparina protegida, que virou e incendiou o azeite. Outro pulou sobre ela, que o partiu ao meio. De outro ela arrancou a cabeça e de outro o braço. Os demais recuaram e se muniram de lanças com as quais a atacaram. Um a perfurou bem ali — John apontou para uma parte exposta do braço de Nephi, onde não se via marca nenhuma — Foi quando você chegou, Arthur. Pensei em ajudá-lo, mas estava pasmo, extasiado demais.
John encarou novamente Nephi, depois se virou para o francês:
— Ela é um deles, não é? Uma nefilim? Por isso sua curiosidade sobre o assunto!
Arthur suspirou e olhou para o chão.
Ele havia gostado de John Duffin, mas não podia permitir que ele saísse por aí, de posse daquele segredo.
— Por favor, me conte como a encontrou? Onde? De que forma? — Perguntou o homem, quase implorando.
Arthur pensou que, se ele ia mesmo morrer, não custava satisfazer a última curiosidade daquele homem peculiar. A vida toda ele estivera atrás das lendas, do fantástico. Aquele seria o prêmio desta busca.
E ele contou.
John era bem falador, mas demonstrou também ser um bom ouvinte. Não interrompeu Arthur nenhuma vez, apenas parecia beber avidamente cada palavra dita, cada cena descrita. Arthur só não falou sobre o gosto de Nephi por carne humana, nem do seu apetite por sexo. Achou que aquilo já era um pouco demais o inglês saber.
Quando ele se calou, John fico longos segundos balançando a cabeça, até murmurar:
— Fascinante.
Arthur baixou os olhos:
—Deus me deu a missão de protegê-la, para trazê-la a luz. Por isso me encaminhou aquela caverna. Por isso ela não me matou. Fui escolhido pelo Senhor. Não posso permitir que o mundo saiba de sua existência, até que Deus me oriente sobre o que fazer com ela. Espero, então que entenda e me perdoe, John Duffin.
Ele voltou a encarar o homem mais velho a sua frente, que levou um tempo até entender o que ele queria dizer:
— Oh! Quer dizer que tem que matar? Para manter meu silêncio?
John cruzou os braços e segurou o queixo com uma das mãos, olhando pensativo para o outro. Ele não parecia assustado:
— Entendo que queira proteger um segredo desta magnitude. Eu faria o mesmo. Poderia agora implorar por minha vida e lhe dar minha palavra de honra que não falaria nada, mas você não seria obrigado a acreditar. Então vou fazer melhor que isto. Vou lhe fazer uma proposta.
— Proposta? — perguntou Arthur, confuso e desconfiado.
— Me deixe ajudá-lo. Oh não, não quero que divida comigo a missão que o Bom Deus lhe deu! Ela é só sua. Mas permita que o ajude fornecendo meios para que possa cumpri-la.
— Como?
— Não lhe contei tudo sobre mim. Na verdade, sou Sir John Duffin, Earl da Cornualha. Sou amigo do Rei Henrique II.
Arthur o olhou de forma enviesada. John levantou as mãos:
— Sei que isto pode até depor contra mim. Mas não se preocupe. O que quero propor não envolve o rei de forma nenhuma.
— Mas você é um nobre. Não deve obediência ao rei? — contestou Arthur.
John fez um gesto de enfado;
— Nobre! Sou um estudioso, um erudito. Ensinei os príncipes, filhos de Henrique e por sorte, ou azar, pois até hoje não entendo por que, cai nas graças do rei. Depois da morte de Reginard de Dunstanville, que era o Earl anterior e tio bastardo de Henrique, este não permitiu que as filhas e filhos do falecido herdassem o condado. Coisas de alianças, casamentos enfim, e me pediu que assumisse a região e, mesmo contrariado, aceitei, pois não se pode dizer não a um rei.
— Principalmente para um como Henrique — comentou Arthur.
— Para nenhum, meu caro. Bem, — continuou John — e nestes dois anos como Conde, a arrecadação de impostos na Cornualha caiu, pois fico muito tempo fora e deixei um velho serviçal meu no comando, mas o homem também não nasceu para isto. Obviamente o rei está insatisfeito, pois precisa de dinheiro, principalmente com o risco eminente de insurreições de seus filhos, Henrique, Ricardo e Godofredo. Preciso de alguém para o cargo de xerife. Alguém firme, mas justo e correto, como você.
O ex templário ficou encarando o inglês, agora mais indignado que desconfiado:
— Espera que eu despoje camponeses de seus bens em nome de um rei que desprezo?
— Não, não espero. Por isso disse que procuro alguém justo, pois os impostos precisam ser coletados, mas existem formas não brutais de se fazer isto. E um xerife não é somente um coletor de impostos. Cuida também da segurança do condado, de sua administração. Existem muitos salteadores nas florestas e outros tipos que infernizam a população. É preciso cuidar das estradas, do armazenamento da colheita.
Arthur balançou a cabeça:
— E de que forma isto me ajudaria com ela? — e apontou para Nephi, que havia se aproximado de John e, curiosa, o cheirava.
— A Cornualha, — respondeu ele — fica, literalmente, no fim do mundo e os Córnicos são um povo discreto, fechado. Mesmo diante destes olhos faiscantes não comentariam nada, o que não aconteceria em outras cidades ou povoados do continente. E se dissermos que este jeito dela é proveniente de problemas mentais, tenho certeza de que ninguém duvidaria ou questionaria. Vocês poderão viver bem e em paz e você, Arthur, teria a tranquilidade para seguir com sua missão de trazê-la para a luz do Senhor.
— Por que está fazendo isto?
Um brilho de emoção cruzou os olhos claros do homem mais velho:
— Como eu disse, não quero dividir a tarefa divina que lhe foi confiada. Mas sinto que, quando nossos caminhos se cruzaram, Deus também me deu uma que é ajudar vocês. Ajudar a abrir o caminho que trará todas as dádivas que esta filha dos céus pode conceder ao mundo.
Arthur fechou os olhos e suspirou.
Desde que decidira trazer Nephi para a Europa sabia que não iria ser fácil se situarem em algum lugar, mas o ocorrido no barco lhe mostrara que isto seria praticamente impossível.
Gostaria de voltar para o interior da França, onde crescera, mas imaginava agora que o jeito e a aparência de Nephi chamaria atenção, como dissera John, e suas vidas seria uma eterna fuga, de um lugar para o outro.
— Tudo bem. Aceito sua proposta, Sir John Duffin.
O inglês sorriu exultante:
— Quando sozinhos, me chame apenas de John — pediu ele e olhando para Nephi de forma reverente como se estivesse diante de uma santa, perguntou a Arthur — Posso…. tocá-la?
Arthur se surpreendeu com o pedido, mas ao cabo de alguns segundos, deu de ombros:
— Se ela não arrancar sua mão, pode.
O velho levantou lentamente a destra em direção ao rosto dela.
Nephi recuou um pouco, desconfiada, mas sem qualquer agressividade na expressão.
John lhe sorriu e ela ficou parada.
Primeiro ele tocou-lhe a bochecha com as pontas dos dedos, depois subiu a mão e alisou suavemente o cabelo dela.
Nephi relaxou, fechou os olhos, reclinou a cabeça e descansou o rosto na palma enrugada da mão dele e então, suspirou, e uma lágrima escorreu por sua face, deixando os homens atônitos.
— Veja, Arthur! Isso lhe despertou alguma lembrança! Significa que ela tem uma história!
O ex-templário olhou para ela com um misto de emoções no coração: ternura, pena, medo, mas uma única e inabalável convicção:
— E nós vamos conhecê-la, leve o tempo que levar.
John balançou a cabeça, concordando:
— Sim, nós iremos. Mas por hora precisamos chegar em Roma. Tenho amigos lá que nos socorrerão e nos ajudarão, já que perdi tudo no naufrágio.
— Tenho ouro comigo — disse Arthur.
— Guarde-o, meu amigo. Deixe que comece a ajudá-lo, dispondo de recursos que conseguirei em Roma.
Neste instante, um som chamou-lhes a atenção e voltaram seus olhos para a linha d´água.
Aos tropeços, um homem vinha saindo do mar.
Era um dos marujos do barco, um dos que havia atacado Nephi.
Quando viu o trio, o homem cambaleante fez menção de pedir ajuda, mas quando os reconheceu, o pânico tomou sua face e, com um grito, saiu correndo pela praia.
John se virou para Arthur:
— Não pode haver testemunhas, correto?
— Correto — confirmou o outro, que olhou para a garota e acenou com a cabeça — Nephi?
Sem titubear, ela disparou atrás do marujo e logo o alcançou.
— Ela é rápida — observou John.
Nephi saltou nas costas do homem como um gato, derrubando-o ao chão e passou a rodeá-lo, rosnando e arreganhando os dentes.
— Hã, John, é melhor não ver isto — pediu Arthur.
— Bobagem! Já vi homens morreram e já a vi em ação e … Bom Deus!
Nephi havia avançado sobre o homem, enfiado a mão em seu peito e arrancado seu coração, o qual levou a boca e deu uma grande mordida enquanto ainda pulsava e o marujo tombava morto.
Jogou o órgão e avançou sobre o corpo, rasgando as roupas e arrancando nacos de carne.
— Acabei não comentando, mas ela … ela come carne humana. Não que seja sua fonte principal de alimentação! — disse Arthur em tom de justificativa. — Ela simplesmente não diferencia uma pessoa de um animal, acho.
John havia virado as costas para a cena e, pálido, comentou:
— Precisaremos mudar este hábito.
Arthur observou por um tempo ela se alimentando e então perguntou:
— Acredita mesmo que há grandeza ali, John? Um ser superior?
O inglês o mirou com intensidade:
— Acredito! Soterrada sob séculos, talvez milênios de solidão, abandono e selvageria, mas está lá!
Nephi se levantou, parecendo saciada. Olhou para Arthur, tirou a camisa e a calça sujas de sangue e se dirigiu ao mar, onde começou a se banhar, sem tirar os olhos do guerreiro. Ele sabia o que aquilo significava.
— Hã, tem algo mais — disse se virando para John. — Ela sempre quer satisfazer, seus, hã, instintos primários. Quando termina de comer, sempre quer ter….é... relações carnais.
— Oh! Que interessante!
— E somos dois homens aqui, então… não sei se ela...— Arthur não completou a frase. Um sentimento estranho apertou-lhe a garganta. Era como uma raiva, um espasmo que o fazia olhar de forma agressiva para o outro. Pela primeira vez na vida, Arthur de Boise estava sentindo ciúmes.
John levantou a mão:
— Não se preocupe, meu amigo. Você disse que ela tem instintos apurados, então já deve ter percebido que sou inútil, sexualmente falando, para uma mulher. Um acidente de caça quando mais jovem me privou destes prazeres. E não me permitiu ter filhos. Ah, lá vem ela!
Nephi vinha caminhando pela areia, nua e determinada. Colocando um pé na frente do outro, como uma leoa, a pele pálida brilhando ao sol, competindo com seus olhos luminescentes, que não se despregavam de Arthur, que se sentiu como se fosse uma presa.
— Ela está magra, mas é uma mulher escultural — observou John, que apurou os olhos — E totalmente imberbe, pelo que vejo!
— Quantos anos acha que ela tem? — perguntou Arthur.
— Pelo que contou, pode ser milhares.
— Mas quantos ela aparenta, fisicamente? Em torno de vinte?
— Hum, por aí.
— Mas com certeza ela não nasceu, deste tamanho.
— Ou talvez tenha caído do céu assim. São tantas coisas a se descobrir! Oh, aí está ela.
Ela chegou até eles. Ignorou John e foi agarrando Arthur pela camisa, que levantou uma mão, impedindo-a:
— Espere! Não na frente dele — e apontou para o outro homem.
Nephi virou rapidamente a cabeça, encarando o mais velho com uma chispa no olhar. Este, constrangido e assustado, virou-se de lado.
Arthur era um homem grande, pesando mais de cem quilos, mas ela não se fez de rogada. Abaixou-se, pegou-o pelas pernas e o jogou em seu ombro, levando-o para umas pedras próximas
— Hã, voltaremos logo — informou ele, tentando olhar o inglês da posição desconfortável que estava. — Por favor, John, não ria. Isso já é constrangedor demais por si só.
— Me perdoe – disse o velho tentando segurar o riso. — Não se apressem. Vou empurrar o cadáver do marujo para o mar e lavar as roupas dela. Afinal, será estranho se entrar em Roma toda ensanguentada.
⁕⁕⁕
Um carroceiro aceitou levá-los até a cidade, em troca de uma moeda, dada por Arthur.
Nephi nunca havia visto uma grande cidade e ficou pasma, com a quantidade de pessoas, com o movimento intenso.
Ela nunca havia visto crianças também e agarrou um garotinho pelos cabelos, levantando-o do chão para cheirá-lo.
Foi uma gritaria, da criança, da mãe dela, de outras pessoas próximas. Arthur e John penaram para fazê-la largar o menino e por pouco não foram apedrejados.
Nephi ainda avançou sobre carnes que estavam à venda em uma barraca. O comerciante só se acalmou com a moeda de outo que Arthur lhe deu.
Os dois homens conseguiram fazer a garota sentar-se em uma calçada e, enquanto ela se lambuzava com um pernil, os dois conversavam:
— Não acho uma boa ideia mantê-la aqui na cidade! — Arthur estava exasperado. — Isso pode acabar em uma tragédia!
— Você está certo. Vamos fazer assim, sigam pela Via Flaminia — orientou John, apontando para uma estrada ali próxima. — Algumas milhas a frente vão encontrar uma estalagem, ao lado de um moinho. Procurem por Bruccio, o proprietário. Ele é meu amigo. Fale em meu nome e ele irá acomodá-los até amanhã pela manhã, quando os reencontrarei lá.
O francês concordou e, puxando Nephi pelo braço, se pôs a caminho.
Chegaram na estalagem, um enorme casarão velho, feito em madeira e debruçado sobre um rio, que movia o moinho ao lado.
Entraram.
Sob o forte sol da Itália, os olhos de Nephi, quase não se destacavam, mas ali dentro, pareciam duas lamparinas.
Um rapazola que varria o piso de madeira notou e ficou olhando para ela, embasbacado.
Além dele havia somente dois homens bebendo, mas estavam de costas e um outro atrás do balcão. Este olhou firme para o rapaz, que imediatamente voltou a varrer.
O homem era grande, barrigudo e barbudo e os olhava de forma inexpressiva. Arthur imaginou que ele fosse o taberneiro.
— Bruccio? — perguntou, ao que o outro confirmou com um aceno de cabeça.
Arthur não falava italiano, então disse em francês normando mesmo:
— Fomos enviado por John Duffin.
A expressão do taberneiro desanuviou:
— Se são amigos de John, são bem-vindos.
— Ele pediu que nos hospedássemos aqui e virá nos encontrar amanhã pela manhã.
— Tenho um bom quarto para vocês. Venham.
Arthur fez menção de levar a mão a algibeira, para pegar uma moeda, mas Bruccio levantou a mão:
— Isso não é necessário neste momento.
Eles então seguiram o taberneiro até o andar superior. No final do corredor o homem abriu uma porta e os convidou a entrar.
— Tem água no jarro, mas posso providenciar cerveja e vinho se desejarem. E se estiverem com fome, posso mandar pão e caldo de carne que sobrou do almoço — disse Bruccio.
— Agradeço, mas não há necessidade — Arthur havia comido algumas maças e nozes no caminho até ali e Nephi havia se empanturrado de carne em Roma, então não estavam com fome.
O homem assentiu e se retirou, fechando a porta.
Nephi olhava intrigada para o grande móvel que ocupava boa parte do quarto.
— É uma cama — disse-lhe Arthur. — As pessoas dormem nela. E fazem outras coisas também.
A garota farejou o ar e avançou para um jarro com água que estava sobre uma banqueta.
— Espere! — Arthur a interrompeu quando ela levava o jarro a boca. Ele se aproximou e, delicadamente o retirou das mãos dela.
— Não é assim que se faz. Está na hora de começar a aprender os modos da civilização. Veja.
Ele pegou um copo de barro, colocou água nele e o levou a boca, bebendo um gole.
— Viu? É desse jeito. — Ele entregou-lhe o copo e foi deitar-se.
Ele suspirou quando se deitou no colchão com palha nova e que parecia não ter pulgas, nem percevejos, diferentemente do porão do navio.
Seu corpo estava cansado, mas sua mente fervilhava.
— Não tenho certeza se fiz bem em aceitar a proposta de John — disse, enquanto mirava o teto de madeira. — Estaremos expostos para onde iremos, mesmo ele dizendo que o lugar é afastado. Penso que deveríamos sair agora e sumirmos em algum lugar ao norte, bem distante de tudo e de todos.
Com o canto dos olhos ele viu Nephi balançar a cabeça e virou-se para ela:
— Você…. você fez que não? Foi isso?
A perplexidade dele tinha razão de ser. Ela nunca havia respondido diretamente, por gestos, nenhuma das perguntas que ele fizera até então, ainda mais feitas em francês
Arthur sempre falava com ela em aramaico, que parecia ser a única língua a que ela reagia de alguma forma e sempre por olhares, caretas e rosnados, que ele se esforçava para compreender.
Nephi não reagiu ou fez qualquer outro gesto. Ficou apenas bebericando a água e olhando para ele.
Ouviram uma leve batida na porta.
— É Bruccio — disse uma voz do outro lado. — John mandou um mensageiro trazer algumas coisas para vocês.
Arthur abriu a porta e recebeu dois embrulhos de tecido cru e um pergaminho.
Colocou-os sobre a cama e leu o bilhete:
“Para que viajem sem parecerem dois pedintes de estrada. JD”
O francês retirou a corda que prendia o embrulho maior e encontrou roupas masculinas: calças justas, uma túnica com capuz, na cor bordô e um gibão escuro, este era feito de veludo e as demais peças de algodão com trama dupla, um tecido resistente para cavalgadas, mas muito bem costurado e com alguns bordados. Havia também um par de botas.
Abriu o outro pacote e sorriu. Era um vestido, na mesma cor bordô que suas roupas novas.
Levantou a peça para ver melhor. Era longo, com a saia pregueada e um decote. Em volta deste, na gola, nas mangas e na barra foram costuradas delicadas flores feitas em seda. Havia também um corselete finamente feito em couro, roupas de baixo e uma calça de algodão, próprias para uma mulher que fosse cavalgar e, da mesma forma que para ele, havia um par de pequenas e delicadas botas.
— Veja, Nephi. John mandou para você.
A garota apalpava a peça com curiosidade.
— Gostou? Vamos experimentar. Tire a roupa.
Com gestos ele se fez entender e ela despiu as peças rasgadas que cobriam seu corpo.
Arthur reparou como ela estava suja. Fuligem, sangue seco e terra, impregnavam sua pele.
Ele então teve uma ideia e disse:
— Fique aqui e não saia de jeito nenhum. Voltarei em breve.
Pouco tempo depois se ouviram barulhos no corredor. A porta se abriu e Arthur apareceu, arrastando uma enorme tina de madeira, sendo ajudado pelo rapazinho que viram mais cedo.
Este, quando viu Nephi nua, em pé no meio do quarto, arregalou os olhos, enrubesceu e virou o rosto.
— Pode deixar que termino aqui. Vá e me traga baldes com água quente. E sabão também.
O rapaz disparou pelo corredor, enquanto Arthur tentava empurrar o trambolho através da porta.
Resfolegando, virou-se para Nephi:
— Pode me ajudar, por favor?
Com uma mão só ela arrastou a tina para dentro.
Respirando forte, mas com um sorriso no rosto, Arthur, com as mãos na cintura disse:
— Agora, aguardamos.
Ela arqueou uma sobrancelha de forma inquisidora, olhando para ele e depois para a tina vazia, como se esperasse que algo saísse de dentro dela.
Logo ouviram uma batida na porta:
— Sua água, senhor.
Quando Arthur abriu, vários baldes estavam à espera, mas o rapaz havia sumido. Havia também uma barra de sabão, um pente de osso e um frasco.
Arthur levou tudo para dentro. Despejou a água na tina e um pouco do conteúdo do frasco na palma da mão e cheirou. Era um óleo aromático. Aquilo e o pente, com certeza, eram acréscimos de Bruccio.
Ele despejou óleo na água e se virou para Nephi:
— Entre.
Ela olhou desconfiada para a água que fumegava. Artur a segurou pelo braço e, delicadamente a fez entrar na tina e a se abaixar na água.
Quando sentiu os vapores aromáticos e a água quente em sua pele, ela fechou os olhos, suspirou e relaxou.
— É bom, não? — perguntou ele com um sorriso, feliz em ver a satisfação no rosto dela.
A igreja combatia os banhos. Dizia que era lascívia ficar passando as mãos pelo corpo, mas Arthur sempre gostara de se banhar e, quando vivia na propriedade seu pai, sempre que podia, se esgueirava para um local escondido na mata que cercava o riacho que cortava aquelas terras e se lavava, usando um pedaço de sabão que mantinha oculto entre algumas pedras. Teve poucas oportunidades depois de usufruir de banhos quentes, mas lembrava-se do prazer que proporcionavam.
Lavou os cabelos loiros de Nephi, passou óleo neles e os escovou, ainda com ela na banheira, deixando-os soltos e escorridos.
Pegou um pedaço do tecido que envolvera as roupas, besuntou com sabão e passou a esfregar os ombros e as costas dela.
Nephi se reclinou e ele esfregou seu pescoço, desceu pelo tórax e passou suavemente o pano em seus seios. Os mamilos ficaram rijos. Ela arfou e jogou a cabeça para trás.
Arthur pensou que em uma cosia a igreja estava certa, aquilo provocava lascívia mesmo. O contato, as reações dela o excitavam.
— Está gostando? — perguntou com voz rouca.
Como resposta, ela segurou a mão dele e a desceu para o meio de suas pernas sob a água.
Ele soltou o pano. Não queria nada entre os dois naquele momento e continuou o movimento ritmado, usando sua mão nua.
Ela gemeu alto, então o segurou pelo cabelo da nuca e o puxou para um beijo ardente.
Ato contínuo, o agarrou pela camisa e o puxou para dentro da tina, espalhando água por todo lado.
Nephi arrancou-lhe a calça, jogando-a longe, e avançou sobre ele, tentando encaixá-lo dentro dela.
Ele pensou, por um momento, em reprimi-la, pois estavam encharcando todo o piso. Com certeza a água estava indo para algum lugar abaixo e logo alguém viria reclamar.
Mas o desejo falou mais alto: “Para o inferno com tudo mais”, e a puxou para si.
⁕⁕⁕
— Arthur! Arthur!
As batidas na porta fizeram o francês acordar assustado. Ao seu lado, Nephi ressonava.
Haviam feito amor a noite toda de maneira voraz e de formas que ele nunca imaginou ser possível.
O quarto estava revirado, molhado, a cama quebrada. Pelo menos as roupas que ganharam estavam intactas.
Novas batidas.
— Sim? — perguntou com a voz rouca.
— É John, Arthur. Vistam-se e desçam para o desjejum. Precisamos pegar a estrada.
A palavra “desjejum”, na voz animada de John Duffin pareceu algo deslocado, principalmente na cabeça cristã de Arthur.
Depois de muita dificuldade em fazer Nephi sair da cama e colocar as roupas, os dois apareceram no salão, vazio àquela hora da manhã, com exceção de Bruccio, o servo e John.
— Ah, que belo casal! — disse o sorridente inglês. — As roupas ficaram perfeitas em vocês! Estão um pouco abatidos, mas é de se esperar, não? Segundo Bruccio, vocês quase derrubaram a estalagem esta noite! Mas venham!
Arthur ficou vermelho. Ia se desculpar com o taberneiro quando John deu um passo para o lado, deixando à mostra uma mesa farta em alimentos. Havia vários tipos de pães, frutas, nozes, potes com manteiga e nata, além de leite e um mingau perfumado com mel.
O estômago do ex-templário roncou, pois há quase dois dias não se alimentava direito, mas não se moveu.
Nephi por sua vez avançou para a comida, mas foi gentilmente interceptada por John:
— Calma, minha querida. Vamos começar a acertar seus modos. Venha, sente-se aqui — a garota deixou ser conduzida a uma cadeira. Por alguma razão desconhecida, ela acatava serenamente o que o velho lhe dizia.
Ele pegou uma travessa com mingau, cortou uma fatia generosa e fumegante de um pão doce e colocou na frente da garota.
— Este é particularmente divino. Feito por Bruccio, que é um excelente padeiro e confeiteiro. Você o molha no mingau e come, viu? É desta forma que as crianças comem. Mas você é praticamente uma criança, não é, querida?
Nephi comeu o pedaço oferecido pelo velho e na sequência pegou quase meio pão e o enfiou na travessa.
— Aos poucos vamos corrigindo isto. Venha Arthur, sente-se.
O francês continuava em pé:
— Não, obrigado. Não é…. adequado.
— Ah, pare com isto! — rebateu John com um gesto de enfado. — Deve achar que comer pela manhã é um hábito camponês. Ou ainda que é pecado, falta de contrição, gula. É, a nobreza e o clero pensam assim, mas te garanto que nobres e padres não passam fome até a hora do jantar, comendo escondidos em seus castelos e igrejas. E eu também não. Acordo faminto! E quando estou em Roma, venho aqui toda manhã, aproveitar os quitutes de Bruccio e para fugir do olhar de reprovação de pessoas hipócritas. Venha, homem! Você já jejuou o bastante. Pode ter certeza de que Deus está satisfeito com você!
Mesmo com um peso na consciência, Arthur aceitou o convite, pois estava faminto.
Comeram em silêncio por um tempo. A garota parecia ter gostado do mingau, pois agora mergulhava um naco de presunto nele.
— Obrigado pelas roupas, Sir John — disse Arthur, após se satisfazer.
O inglês levantou a mão:
— Estamos entre amigos. Pode me chamar só de John. E não precisa agradecer. As roupas eram necessárias para o que temos pela frente.
— Para não viajarmos parecendo pedintes de estrada, não é? — cutucou Arthur.
— Isso também.
O francês ficou encarando o outro, pensando nas implicações deste também. Mas antes que falasse algo, John se adiantou:
— Estive pensando na proposta que lhe fiz ontem na praia. Decidi que, para concretizá-la, tenho uma exigência.
O rosto de Arthur ficou sombrio. Ele devia ter imaginado que estava fácil demais:
— Qual exigência? — ciciou de forma baixa e agressiva.
— Quero que você, — John apontou para ele — e ela, — e apontou para Nephi, que lambia os dedos — se casem.
O francês levantou-se em um pulo, derrubando a cadeira e esmurrou a mesa com as duas mãos:
— Casar?! — berrou.
Bruccio e seu ajudante pararam seus afazeres e o encararam. Nephi deixou a travessa de mingau que estava lambendo cair na mesa e rosnou. John se reclinou para ela e deu-lhe tapinhas afetuoso nas mãos:
— Relaxe, querida. Está tudo bem. Continue a comer — e empurrou um prato com castanhas para ela e depois se voltou para Arthur: — Por Deus, homem! Parece que lhe pedi para enfrentar um batalhão de mouros com as mãos nuas! Sente-se e acalme-se!
Arthur suspirou, pegou a cadeira e se sentou novamente:
— Me desculpe — pediu de forma controlada. — Mas, pelos céus, porque deveria me casar com ela.
— Olhe o que aconteceu esta noite passada. Vocês até inundaram a adega de Bruccio. Como acha que o bom povo cristão da Cornualha verá isto? Já pesa contra você o fato de ser francês, mas isto é algo que podemos contornar. Mas um devasso fornicador? Ah, isso não cairia bem para um xerife. Logo você ficaria conhecido por todo o reino e tudo o que menos queremos, é chamar atenção.
Arthur meneou a cabeça confirmando, mas sem muita convicção.
— Além disto, você daria respeitabilidade e proteção para ela. Sabe que mulheres tem uma posição muito frágil em nosso mundo. E isso é um fardo muito maior para uma que durma com um homem com o qual não é casada.
— Conheci muitos camponeses que viviam juntos sem uma união oficial — rebateu o outro.
— Você não será um camponês. Será o xerife da Cornualha. Uma posição respeitável que exige ações respeitáveis. E você deve isso a ela. Afinal, a desonrou.
— Na verdade, foi ela quem me desonrou.
John riu.
Arthur não achou graça. Estava pensativo. Sabia que o velho tinha razão, principalmente na parte que tocava a Nephi, como mulher. Ela podia partir rochas com as mãos, mas, dentro da sociedade na qual queriam colocá-la, era indefesa. O matrimônio traria segurança para seu futuro, que seria mais longo do que o seu e de John. E aquilo era algo que Deus, provavelmente queria. E no fundo ele, Arthur, também queria. Sempre sonhara em ter uma família, mas, entrar para os templários, havia tornado isto um sonho distante de mocidade. Deus também estava lhe dando uma nova chance.
— Eu caso — disse por fim, — Assim que encontrarmos um padre, faremos isso.
John, feliz, esfregou as mãos:
— Isto já foi providenciado. Bruccio é padre.
Uma sombra pairou sobre Arthur. Ao levantar os olhos deu com o taberneiro ao seu lado, de batina, um crucifixo de madeira pendurado no pescoço e uma bíblia na mão:
— Um padre taberneiro? Bem aqui, nos Estado Papais?
Arthur já tinha visto até padres casados, mas em regiões longínquas dos grandes centros da cristandade, mas não imaginava algo fora do padrão, bem em Roma.
— Como eu disse, — interveio John — Bruccio é um excelente padeiro e o Santo Padre aprecia seus bolos, biscoitos e pães doces então ele, digamos, faz vista grossa. Mas nosso amigo, mesmo sendo dono de taberna e estalagem, não se dá ao desfrute dos prazeres mundanos, se mantendo fiel aos preceitos da igreja.
— Meus votos de castidade estão íntegros — completou Bruccio, olhando firmemente para Arthur, como se soubesse que ele era um perjuro. Este levantou as mãos:
— Que seja então.
John se reclinou para Nephi e, usando um guardanapo limpou-lhe o queixo melado de leite:
— Venha, querida. Você irá se tornar a senhora Deboise.
— Ela é batizada? — perguntou Bruccio.
— Não — adiantou-se John. — Como lhe contei, meu amigo, ela era escrava dos mouros desde criança, o que a deixou abilolada. O sol forte da Palestina fez seus olhos ficarem assim. Mas nosso valente cruzado aqui, — e bateu no ombro do francês — a libertou. E a tomou sob seus cuidados, como bom cristão que é.
— Bom cristão? Sei — disse o padre taberneiro, ainda com o olhar duro sobre Arthur.
— Faremos as duas cerimônias então — continuou John. — O batismo e o casamento — virou-se para o francês — É sua chance de escolher um nome decente e cristão para ela que não…
— Nephi. Esse é o nome dela.
Ele olhou para a garota, que encarava todos a volta, alertada pelo som do nome a que se acostumara, mas sem entender nada.
Durante o batismo ele ficou preocupado se, quando a água benta fosse jogada sobre a garota, ela começasse a fumegar ou coisa do tipo, mostrando que era uma cria do inferno. Quando nada aconteceu, além de Nephi rosnar para Bruccio quando jogou a água nela, ele suspirou aliviado.
— In Dei omnipotentis nomine et sancte Romane ecclesie nunc Arturum Deboise et Nephi, nunc Deboise, maritari pronunciamus. In nomine patris et filii et spiritus sancti, amen.
—Amen — responderam os demais, menos Nephi, que só olhava para Arthur.
Talvez, pensou ele, a garota, de alguma forma, entendia que o que acontecia era algo importante. Talvez, o entendimento das coisas do mundo estivesse finalmente penetrando seu espírito.
John se adiantou e colocou algo na mão do amigo. Ao olhar, viu que era um anel de pedras preciosas.
— Para formalizar a união de vocês. Vamos, coloque no dedo de sua esposa.
Arthur olhou de forma irônica para o inglês:
— As roupas, o banquete, a aliança. Parece que pensou em tudo, não?
— Alguém aqui tem que pensar — respondeu John, dando de ombros.
— Espero que ela não o coma.
Ele pegou delicadamente a mão esquerda dela e colocou o anel no dedo anelar e depois se reclinou e a beijou nos lábios.
Arthur viu um brilho diferente surgiu no fundo luminoso dos olhos de Nephi e, um leve sorriso curvar seus lábios.
Aquilo aqueceu o coração do ex-templário.
— Bom, — disse John esfregando as mãos — Como vocês já tiveram sua prima nocte, várias delas aliás, vamos nos pôr a caminho, pois a estrada é longa. Bruccio já providenciou cavalos e uma mula com mantimentos que nos aguardam lá fora. — Virou-se então para o padre taberneiro — Mais uma vez, obrigado por tudo, meu amigo.
— É sempre uma honra, poder ajudá-lo, John. E mandarei depois uma cópia do contrato de casamento.
— Contrato? — perguntou Arthur preocupado, imaginando que alguém da ordem poderia ver aquilo. Eles provavelmente o tinham como morto e não um desertor. Se soubessem que estava vivo iriam atrás dele.
— Além de padre, Bruccio também é notário. Mas não se preocupe. Ele guardará com ele o registro e não o enviará para a igreja, certo? — respondeu John, já imaginando os motivos da preocupação do outro. — Vamos?
O inglês ofereceu o braço para Nephi, que, desajeitadamente o segurou e seguiu com ele.
Arthur tirou uma moeda de ouro do saco de couro que carregava, e entregou para Bruccio.
— Não precisa pagar. John já o fez, pela hospedagem, pelos cavalos e tudo mais. Mas ficarei com a moeda para os pobres.
O francês deu outra moeda:
— Dê esta para os necessitados. A outra é sua.
Bruccio o olhou interrogativamente:
— Para pagar pela cama e os danos no quarto.
O italiano o olhou como firmeza:
— Saia daqui antes que eu mande excomungá-lo.
⁕⁕⁕
A viagem até a Inglaterra transcorreu sem problemas.
Evitaram cidades, acampando em bosques e campos. Nessas paradas, após a refeição, John se colocava a contar histórias que lera em livros, de suas aventuras e até algumas, desconfiava Arthur, inventadas.
Nephi prestava muita atenção ao velho nestes momentos. Se entendia o que era dito ou encantada pela forma teatral como ele narrava, era um mistério.
Em três semanas cruzaram a Itália e a França onde, na costa da Normandia, após penarem para conseguir colocar Nephi em um barco, atravessaram o canal, desembarcando em Launceston, depois de subirem o Rio Tamar.
Arthur, empossado como novo xerife da Cornualha, e Nephi, passaram a morar na fortaleza de madeira, instalada em um monte, no meio do vilarejo. E nos dois anos que lá estavam, tinham conseguido se inserir na comunidade.
Tirando duas vezes que fora tomar sol nua no topo da fortaleza e uma em que mordera um cachorro que avançara contra ela, Nephi havia se comportado bem, não matando ou devorando nenhum inocente. E as pessoas aceitavam seu jeito calado, acreditando que ela não batia bem da cabeça, devido ao tempo que fora cativa dos muçulmanos, história espalhada por John.
Arthur, que a princípio despertara reservas por ser estrangeiro, acabara por ser aceito também, por se mostrar competente, diligente e justo. Em um período em que a produção de estanho superou as metas, ele e John manipularam a contabilidade a ser apresentada ao rei e distribuíram os valores excedentes aos trabalhadores das minas. O trigo que vinha de fora, pois, a região não conseguia suprir as necessidades, era repassado aos camponeses por preços acessíveis e distribuído gratuitamente a quem não podia pagar, que eram a maioria da população.
As estradas, diques e pontes estavam bem conservados e a criminalidade havia diminuído consideravelmente, o que era uma incógnita para as pessoas, pois o xerife dispunha de poucos homens armados, disponibilizados pelo Earl e raramente fazia incursões para buscar salteadores.
Isto tudo havia angariado, se não um afeto exacerbado, pois os Córnicos eram um povo reservado, uma simpatia silenciosa.
Só um hábito do novo xerife deixava o povo intrigado.
Ele costumava dar longos passeios, as vezes por dias, com sua jovem e débil esposa pelas florestas do condado.
O xerife dizia que a luz suave das matas amenizava o desconforto dos olhos azuis luminosos de sua mulher, que foram queimados pelo sol do deserto da Palestina.
As pessoas davam de ombros. Ele devia saber o que fazia. Mesmo com a queda na presença de bandoleiros, as florestas eram lugares perigosos. Mas o xerife, comentavam entre si, fora um cruzado e aparentemente era um excelente guerreiro e espadachim, podendo proteger sua mulher.
O que eles não sabiam, é que era nestas saídas que Arthur eliminava bandidos, deixando que Nephi os caçasse e se alimentasse deles.
Como aquele que agora devorava, que era o último de um bando que havia aterrorizado propriedades rurais afastadas no último ano.
A garota se divertia muito rastreando, caçando os criminosos em fuga e os abatendo, mas Arthur percebeu que ela já não tinha mais a mesma gula de antes, preferindo muitas vezes só comer algumas das vísceras mais nobres.
Ele creditava isto ao fato que agora tinha uma mesa farta a disposição dela e que também, esperava Arthur, ela estivesse se civilizando e percebendo que comer pessoas não era um hábito moralmente aceitável.
Nos últimos tempos ela melhorara muito sua comunicação não verbal. Assentia ou negava com a cabeça, fazia gestos com as mãos e com o corpo quando queria exprimir algo, mas falar, nada.
A única palavra que Arthur ouvira dela fora o gutural “Nefilim” na caverna na Palestina, depois disso só rosnados. E gemidos e gritos, quando faziam amor
E agora, ela também sorria, mas não ria.
John, apesar de não ser médico, havia examinado a boca, a língua e a garganta de Nephi e não havia encontrado nenhuma deformidade que impedisse a fala. Talvez ela apenas não quisesse, como sugeriu Arthur certa vez.
Outra coisa que intrigava o inglês era, como tendo uma vida sexual ativa, ela não engravidava?
Ele disse que talvez Arthur fosse estéril e sugeriu que ele se deitasse com uma camponesa ou serva, para ver se a engravidava. Para tirar a dúvida com a fertilidade de Nephi, sugeriu que ela fizesse o mesmo.
Arthur fora totalmente contra as duas alternativas. Ela era sua esposa e não se deitaria com outro homem e nem ele com outra mulher e John desistiu do assunto, por enquanto pelo menos.
Nephi se levantou e se espreguiçou.
— Terminou? Finalmente! — Arthur jogou-lhe um odre de água. — Vamos, lave-se para irmos embora.
Ela estava nua.
Nas caçadas ele a fazia tirar a roupa para não ter que explicar para as lavadeiras, o porquê de o vestido da senhora estar todo ensanguentado.
Nephi passava as mãos molhadas pelo corpo de forma lânguida, enquanto mirava o homem. Ele sabia o que viria.
— Nada disso! — ralhou quando ela se aproximou. — Vamos deixar para fazer em casa, entre as peles e em frente a lareira, entendeu?
Se entendeu, ela ignorou. O abraçou e passou a roçar o corpo no dele, enquanto beijava-lhe o pescoço abaixo do cavanhaque bem aparado.
Arthur bufou, querendo parecer contrariado, mas estava excitado.
— Sempre é do jeito que você quer, não é? Que seja então.
Ele a segurou pelos braços e a empurrou contra uma árvore, prensando-a contra o tronco.
Os olhos dela brilharam enquanto ele a beijava selvagemente, e com uma mão apertava-lhe um seio e com a outra abaixava seus calções.
Nephi levantou as pernas e o enlaçou, puxando-o para dentro de si.
Os movimentos dos dois balançavam o pinheiro, fazendo a neve acumulada nas folhas cair sobre eles como pétalas brancas.
Arthur afrouxou o contato e Nephi virou-se de costas, apoiando as mãos na árvore. Ele voltou a penetrá-la de forma enérgica, segurando-a pela cintura e pelos cabelos próximos a nuca.
Nephi cravava as unhas no tronco, arrancando lascas do pinheiro, até que no momento do êxtase ela gritou. Ao longe, lobos uivaram em resposta.
Ela se virou para ele e, ofegantes se abraçaram por alguns minutos, até que ela recomeçou a beijá-lo.
— Quer mais, não é? Eu também, mas agora, só em casa. E para irmos logo, preciso de duas coisas.
Arthur apontou com o queixo para o cadáver:
— Preciso daquela cabeça e levantar meus calções, pois meus testículos estão
congelando.
⁕⁕⁕
Ao final da tarde, quando chegaram em Launceston, viram a carruagem de John Duffin parada em frente a fortaleza.
O Inglês apareceu na porta, assim que se aproximaram e Nephi saltou do cavalo, correu e pulou no pescoço dele com alegria. John retribuiu o abraço, feliz:
— Oh, bela Nephi! Como está querida? Também senti saudades!
John vivia oficialmente no castelo de Tintagel, no noroeste da Cornualha, mas pouco parava por lá, ficando mais tempo ali, com Arthur e Nephi, ou viajando. mas a um mês estava na corte de Henrique.
Nephi o largou e correu para dentro da fortaleza.
— Sir John — cumprimentou Arthur com uma mesura.
— Xerife. E então, trouxe a cabeça do criador de porcos sonegador de impostos?
O francês tirou um saco pendurado na sela:
— Sim, Earl. Vou pedir que coloquem em um monte de neve para que fique conservada por mais tempo.
— Ótimo. Assim poderei levá-la e espetá-la no caminho de Londres, para que todos saibam que não se deve negar os impostos devidos a nossa majestade — disse John de forma dura e em voz alta.
Aquela pantomima era para o caso de haver alguém de fora por ali, pois os moradores sabiam do que se tratava.
O referido criador de porcos devia impostos pois, suas duas porcas haviam sido mortas por lobos, e o pobre homem, que vivia da venda de leitões, havia atrasado com suas obrigações.
O rei havia ordenado que seus Earls cortassem e espetassem as cabeças dos inadimplentes, para que todos soubessem o destino dos devedores.
Em outros feudos isto acontecia, mas não ali. John e nem Arthur jamais tomariam parte em tal barbárie, então juntavam o útil ao necessário. Arthur caçava os bandoleiros e John as espetava para satisfazer a sanha real.
E John havia comprado duas porcas para que o criador retomasse seus negócios.
— Está frio aqui fora — reclamou John. — Vamos entrar. Estou tomando vinho aquecido. O seu vinho — e riu.
— Na verdade, o vinho é seu, senhor — rebateu Arthur. — Como tudo aqui.
— É mesmo. Sempre me esqueço disto. Então, venha tomar meu vinho e se aquecer na minha lareira.
Chegaram ao salão principal e sentaram-se em grandes cadeiras forradas de pele, em frente a lareira.
Quando Arthur e Nephi chegaram ali, meses atrás, o chão do lugar era de terra batida, coberta de palha e vários animais ali habitavam, principalmente no inverno.
Arthur pagara a canteiros para forrar o chão com pedras, proibira a entrada de animais, principalmente cães, com os quais Nephi não se dava bem e enchera o lugar com tapetes, peles e tapeçarias nas paredes. Também fazia as servas varrerem e espanarem os tecidos frequentemente.
John ria daquilo e dizia que Arthur era “um francês esquisito”, mas gostava, sempre que possível, estar naquele ambiente acolhedor.
Uma serva trouxe duas taças com vinho aquecido e especiarias, que John trazia de suas viagens.
Os dois ficaram um tempo em silêncio, bebericando e mirando as chamas.
— E como está a corte — Arthur quebrou o silêncio.
John deu de ombros:
— O rei troca de amantes como o dia é trocado pela noite. Henrique, O Jovem, está sob a supervisão do pai Ricardo está enfrentando problemas na Aquitânia. Godofredo está por aí e a rainha Leonor continua presa. Ou seja, tudo na mais perfeita paz e ordem.
Arthur sentiu preocupação na voz do amigo, mas não quis perguntar diretamente o que o afligia:
— Paz? — perguntou — Com o rei mandando espetar cabeças de devedores de impostos pelas estradas?
— Veja, Henrique tem muitos defeitos, mas é um homem obcecado pela ordem e é precavido. Já faz alguns anos que seus filhos e rainha se rebelaram e ele os venceu. Nada o ameaça fortemente no momento, mas ele sabe que isto não é duradouro. Então aproveita estes momentos pacíficos para reforçar a estrutura administrativa do reino e se cercar de homens de confiança e valorosos, aos quais mantém junto a si ofertando terras e títulos e tudo isto custa dinheiro.
— Homens como você — observou Arthur.
— E como você.
O francês olhou o outro de forma interrogadora
— O rei sabe de seus feitos e dos frutos de sua administração aqui na Cornualha. E não, não fui eu que falei sobre isto. Ele tem espiões em todos os lugares. Mas me perguntou sobre você. Frisei de como é importante ter você aqui, para manter os Córnicos sob controle. Mas a qualquer momento ele pode chamá-lo.
— Ao que terei que recusar! — rebateu Arthur irritado. — Não posso e não quero ficar por aí com Nephi! Se isto acontecer, teremos que ir para outro lugar! Talvez os ermos da Irlanda!
John suspirou forte:
— Eu sei, meu amigo. Vou tentar tudo ao meu alcance para que isto não aconteça.
Arthur aproveitou para disparar a pergunta que queria:
— É por isso que está tão preocupado?
John olhou demoradamente para o vinho em sua taça, antes de falar:
— Não. Há uma outra coisa. Muita mais grave.
Ele não pôde continuar, pois Nephi entrou intempestivamente no salão. Correu até o inglês e lhe estendeu um grande livro encadernado em couro, com incrustações de metal e pedras semipreciosas.
Era A Canção de Rolando, uma obra de autor desconhecido, mas muito famosa entre eruditos que conseguiam ler francês antigo, como John Duffin e que narrava histórias do Rei Carlos Magno em suas batalhas na Hispânia.
Ele havia presenteado Nephi com o livro há mais de um ano e todas as vezes que vinha a Launceston ela sentava-se aos pés dele, como uma criança ansiosa, para que ele lesse da forma teatral que sempre usava e isto a encantava.
Mas desta vez ele colocou o tomo de lado, dizendo:
— Desta vez não leremos este, minha querida.
Uma sombra de desapontamento apagou um pouco o brilho azulado dos olhos de Nephi, enquanto John se virava para o outro lado e de dentro de um saco de aniagem, puxou algo
— Porque eu lhe trouxe um novo livro — disse o inglês sorrindo e mostrando um belo tomo, com a capa toda marchetada de marfim, letras em ouro e figuras pintadas com esmalte.
Nephi soltou um gritinho de satisfação, enquanto sorria e batia palmas. John a chamou mais para perto, para ver as iluminuras do interior.
— Este é A História dos Reis da Bretanha, de Geoffrey de Monmouth. Um excelente livro inglês, escrito por um inglês. Ele conta de todos os reis desta terra, desde aqueles que aqui chegaram, fugindo da Guerra de Tróia, até o maior rei que este mundo já viu, Artur de Camelot. — Nephi olhou para seu companheiro. — Sim, o mesmo nome de nosso galante xerife — completou John.
Ela passou a ponta do dedo pela imagem luminescente que mostrava um rei ricamente trajado, segurando a grande espada Excalibur.
— Arrt...urr.
Os dois homens se entreolharam surpresos. John segurou as mãos de Nephi entre as suas:
— Isso, querida! — ele tinha lágrimas nos olhos — Arthur! Lamentável que a primeira palavra dita por você seja o nome deste francês bastardo, mas isto foi fantástico!
Nephi olhou para Arthur, como se procurasse a aprovação dele.
Ele estava emocionado e orgulhoso, mas nada disse. Balançou sua cabeça para ela, enquanto sorria. Na linguagem corporal que havia entre eles, aqui foi mais profundo do que mil palavras.
John tentou várias vezes que ela repetisse a palavra, mas não consegui nada, levando-o a desistir.
— Tudo bem, querida. Vamos no seu tempo. Agora, olhe seu livro enquanto converso com o xerife.
Ela se deitou de bruços no tapete de pele, folheando o tomo. John se virou para Arthur:
— Um pequeno passo, em dois anos. Mas um passo importante.
— Na verdade, — disse Arthur — tivemos mais progresso do que só essa palavra. Ela está mais expressiva, mais ciente de sua posição como pessoa.
— Sim, você está certo. E, se vocês estudassem mais e fornicassem menos, talvez os progressos seriam maiores.
Arthur riu. A rabugice irônica de John o divertia, mas hoje ela não encobria que algo o perturbava, então ele voltou a perguntar:
— Então, o que o preocupa?
O inglês voltou a mirar o vinho em sua taça:
— Recebi relatos de que pessoas estão sendo mortas em Porthcaswydh, um vilarejo pesqueiro no sudoeste.
— Tenho um homem, um preposto na região, em Hellys, Jorweth, e ele não me mandou nenhum relatório sobre isto? Aliás, desde a última coleta de impostos não tenho notícias dele.
— Porque ele está morto. Foi procurado pelo líder dos pescadores de Porthcaswydh. Foi averiguar e teve o mesmo destino de outros.
— E como ficou sabendo disto?
— Esse líder pescador, Trevilian, me procurou em Tintagel, para pedir ajuda. E me contou tudo.
— Eu sou o xerife. Ele não deveria vir a mim, antes de procurar o Earl?
— Eles são Córnicos! Não confiam em ingleses, mas confiam menos ainda em franceses!
John bebericou o vinho:
— O fato é que ele me procurou e contou que há algumas semanas um barco à deriva encalhou nas pedras, em frente ao vilarejo. Quando os homens se aproximaram, viram que os tripulantes estavam espetados nos mastros.
— Espetados?
— Como caranguejos em uma vara, foi o que disse o pescador. Eles se assustaram e se afastaram. Discutiam o que fazer quando, ao cair da noite, viram uma sombra negra sair do barco e desaparecer entre os penhascos. Foi aí que as mortes começaram.
— E o que era essa Sombra?
— Segundo Trevilian, um monstro.
Arthur olhou de forma zombeteira para o outro:
— Monstros não existem.
Foi a vez de John devolver o olhar irônico.
Arthur relanceou o olhar para Nephi, deitada no chão.
— As vítimas foram empaladas e não tinham uma gota sequer de sangue no corpo — informou John.
O outro deu de ombros:
— O empalamento fez com que o sangue todo saísse do corpo.
— Quando você, simplesmente, perfura alguém, pode até acontecer. Mas no empalamento, alguém com um bom conhecimento do ato, pode tirar o mínimo de sangue, pois a ideia é que a pessoa viva o maior tempo possível para sofrer.
Arthur não desistiu:
— Podem ser mouros ou piratas nórdicos.
John se recostou na cadeira e olhou firmemente nos olhos do francês:
— Provavelmente você não se lembre, mas no navio, na nossa viagem desde Jafa, eu lhe contei sobre meus estudos sobre os nefilins — John abaixou a voz ao dizer a palavra, para que Nephi não a ouvisse. — Li sobre povoados massacrados, pessoas empaladas para sofrer para depois terem seu sangue retirado.
Arthur deu um pulo na cadeira:
— Acredita que pode ser um...— ele não disse a palavra. — Pode haver dois deles no mundo?
— Pode até haver mais. Como saberemos? O que sei é que, provavelmente, um deles está aqui e é nossa obrigação detê-lo!
— E como vamos fazer isto?
John não respondeu, apenas meneou os olhos para a moça que olhava absorta as figuras no livro.
— Você está louco? — Arthur elevou a voz. — Vai colocá-la em risco!
— E o você quer que eu faça? — John rebateu no mesmo tom. — Quer que eu peça ajuda ao rei? Acabarei preso junto com Leonor ou serei queimado vivo! E mesmo que o rei acredite, acha que todo o exército inglês pode deter isto?
— Você quer usá-la como uma arma!
— Sim! Ela é nossa única arma contra coisas deste tipo! Somente um monstro pode combater outro!
Um rosnado baixo chamou a atenção dos dois.
Nephi continuava na mesma posição, mas os encarava de forma receosa. Aparentemente a altercação entre os dois a havia assustado, pois nunca os vira discutindo antes.
John sorriu para ela e disse mansamente:
— Está tudo bem, querida. Fique tranquila — e olhou para Arthur. Este forçou um sorriso:
— Sim, está tudo bem.
Ela voltou ao seu livro e os dois homens se recostaram e viraram suas taças de vinho, buscando acalmar-se. John falou primeiro:
— Me perdoe. Não quis ser rude. Mas isto tudo me deixou assustado, confuso. Tenho a mesma dúvida que você. Há outros destes seres vagando por aí? O que nós, homens, podemos fazer contra eles?
Houve um longo momento de silêncio.
— E quando ele terminar com aquela vila pesqueira, — continuou o velho — ele irá para a próxima e para a próxima e, um dia, chegará aqui. E um confronto celestial será inevitável.
Arthur sabia que ele estava certo. A melhor estratégia era ir de encontro ao que quer que fosse.
Temia por Nephi, mesmo sabendo do que ela era capaz. Mas o que o apavorava mesmo, que fazia suas entranhas virarem água era se, quando diante de outro de sua raça, ela o abandonasse.
Se aprumou na cadeira, fechou os olhos e fez uma prece. Ao abri-los encarou o homem mais velho:
— Sou o xerife da Cornualha, seu servo juramentado e cumprirei suas ordens, meu lorde. — Desviou os olhos para a garota — E levarei nosso monstro comigo.