Terra Santa, 25 de novembro de 1177
Sua espada entrou fundo, cortando pele, carne e músculos.
O homem caiu de joelhos, olhos vidrados, a boca aberta em um grito que nunca veio.
Tentou puxar a arma, mas estava cravada fundo demais no peito do adversário, presa entre os ossos da caixa torácica.
Precisava soltá-la se quisesse sobreviver.
Em meio a uma batalha, uma espada imobilizada por segundos que fossem, significava a morte.
Mas, horas de lutas haviam cobrado seu preço. Seus braços eram como chumbo, a respiração raspava na garganta e uma dor lancinante lhe rasgava os músculos das costas.
Apoiou o pé no peito do moribundo, os cravos da bota causando mais devastação e com as duas mãos puxou forte. Um barulho de osso raspando e um rastro de sangue acompanhou a espada.
Virou-se com um grito, para espantar a dormência que ameaçava seu corpo e qualquer inimigo que estivesse próximo.
Mas não houve mais nenhum ataque. Nenhuma cimitarra querendo abrir-lhe o crânio, nenhuma lança buscando sua barriga.
Demorou um instante para perceber que a luta terminara, em seu entorno havia apenas corpos desmembrados.
Viu os soldados de Saladino em retirada. O exército cristão de Balduíno IV era o vencedor
Caiu sobre um joelho, tirou seu elmo para refrescar o rosto coberto de suor e, exausto, agradeceu ao Senhor por estar vivo.
Imediatamente após, procurou por ela e logo a viu.
O cabelo empastado de sangue que, com certeza, não era dela, os braços tintos até os cotovelos e nos olhos aquele brilho diabólico que ele conhecia bem.
À sua volta a impressão era de um matadouro. Dezenas de corpos destroçados, mergulhados em um lodaçal de sangue e tripas.
Precisava tirá-la dali, antes que algum cruzado, ou um de seus irmãos templários, após as comemorações eufóricas pela vitória, percebesse que se tratava de uma mulher.
Ou pior ainda, que descobrisse que não era apenas uma mulher, mas sim um demônio que habitava aquele corpo franzino.
Há um ano sua vida era dedicada àquele ser e não mais aos votos que fizera quando entrara para Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo.
Lembrava-se do fatídico dia em que, após ele e seus irmãos desbaratarem um grupo de bandoleiros que atacavam peregrinos no caminho de Jafa a Cesaréia, um dos bandidos capturados lhes falou sobre uma caverna no Monte Carmelo, onde haveria relíquias do Nosso Senhor.
Pelo dever e louvor lá foram eles averiguar, pensando na alegria e glória de levar tais achados para o templo em Jerusalém.
A caverna ficava no sopé de um paredão rochoso, oculta por árvores e arbustos.
Ao entrarem, ele foi assolado por um sentimento ruim, que o fez fazer o sinal da cruz. Um cheiro nauseabundo, com o odor de coisas malditas os atingiu.
Mas, munidos de sua fé, coragem e suas espadas, adentraram o negror, portando tochas para iluminar o caminho.
Após a primeira curva, um rosnado baixo cortou a escuridão, fazendo-os estacar.
Algo estalou sob sua bota e ao iluminar o chão, viu que este era forrado de ossadas diversas, de animais e humanas.
O bandoleiro os havia enviado para uma armadilha, o covil de um leão provavelmente.
Viu um crânio usando um capacete de legionário romano, mostrando que gerações de feras habitaram aquele buraco.
Uma sombra moveu-se rapidamente no limiar da luz das tochas.
Ele e seus três companheiros, armas em punho, tentaram acompanhar o que quer que fosse, mas só o que vislumbravam era o brilho ocasional de olhos azulados.
Súbito, um dos templários gritou e tombou para a frente.
Seus irmãos o viraram e ele já estava morto. Seu gorjal havia sido retalhado e o sangue brotava do pescoço lacerado.
Algo se abateu sobre os sobreviventes. Gritos de dor, golpes de espada no vazio, a luz das tochas oscilando e deixando mais dantesca ainda a cena.
Lembrava-se agora, com vergonha, de que correu. Fugiu a esmo pela escuridão, sem saber para qual direção ia. Abandonou seu elmo, seu escudo e espada. Somente agarrou firmemente o crucifixo sob sua túnica e pediu que Deus o salvasse.
Exultou ao ver a saída da caverna, a luz do dia a iluminando como a um portal de salvação.
Estava próximo quando algo o atingiu nas costas fazendo tombar de cara no chão. Tentou se arrastar, mas seu tornozelo foi agarrado e puxado de volta para a semiobscuridade.
Permanecendo deitado virou-se para encarar a morte de frente. Morreria como o soldado de Cristo que era.
Esperava ver uma fera sedenta de sangue, talvez algum monstro, mas não esperava o que se apresentava ante seus olhos.
Era uma mulher, uma garota ainda. Estava nua e suja, os cabelos louros desgrenhados. Os olhos eram de um azul diabolicamente faiscantes. Suas mãos estavam sujas de sangue, que também respingava em seus seios e barriga.
Ao apurar o olhar, percebeu que sua intimidade era totalmente lisa, diferentemente das que vira em tantas outras mulheres antes de fazer seus votos.
Impossível que aquela garota pequena e magra fosse a responsável pelo horror que presenciara há pouco!
Tentou levantar-se, mas, com agilidade espantosa, ela atirou-se sobre seu corpo, prendendo-o no chão com força descomunal.
Ele achou que ia morrer então entoou com voz trêmula:
“Non nobis Domine, non nobis, sed nomini tuo da gloriam” *
No entanto, a garota se reclinou e aspirou o ar como um animal, depois agarrou sua túnica e a cota de malha e as rasgou como se fossem um pergaminho velho.
Antes que conseguisse se recuperar da surpresa, percebeu que a pele de cordeiro que trazia sob sua vestimenta, símbolo de sua castidade, fora arrancada e lançada longe. Depois, passou a cheirar-lhe e lamber-lhe o pescoço, peito, a barriga e foi descendo.
Quando ela chegou próxima a seu genital ele deu um pulo.
— Não, por favor!
Ela levantou seus olhos azuis para ele e rosnou.
O cavaleiro calou-se e buscou focar seus pensamentos nos votos de castidade que havia feito quando entrara para a ordem. Conhecera muitas mulheres antes, mas desde então, jamais olhara ou desejara qualquer uma. Sua fé era seu êxtase.
Mas quando sentiu a boca quente envolvê-lo, arfou. Tentou impedir que seu corpo reagisse, mas foi em vão e a garota montou-o e começou a se mover insanamente, a grunhir, rosnar e arranhá-lo no peito e no pescoço.
Seu cheiro de mulher o envolveu e ele se viu contorcendo-se no mesmo frenesi.
Usando de toda sua força girou o corpo, colocando-a sob ele.
Ela não gostou da nova posição e se debateu. Ele prendeu os pulsos dela contra o chão e colocou todo seu peso sobre seu corpo. Era assim que as coisas deveriam ser, a mulher submissa sob o homem.
Ela desvencilhou as mãos e o empurrou jogando-o longe.
Ao chocar-se contra a parede da caverna, ele perdeu o fôlego por instantes e imaginou que ela avançaria sobre ele para retalhá-lo.
Porém, ela não o atacou. Com gestos instintivos e primitivos, ela moveu seu corpo sinuosamente, provocando-o, enquanto o encarava por sob o ombro.
Alucinado, ele arrastou-se pelo chão, esfolando a pele de suas mãos e joelhos, chegou até ela, agarrou-a pela cintura e a puxou para si.
Ela se contorcia à sua frente, as costelas ondulando sob a pele das costas, os quadris subindo e descendo.
Uma parte de sua mente pensava que a Santa Igreja não aprovaria aquilo. Somente animais faziam daquela forma, mas era uma condenação distante, como vinda de um de seus confessores e não dele mesmo.
Agarrou-a pelos cabelos, quando seu corpo estremeceu, parecendo diluir-se. Um sentimento de selvagem satisfação, como nunca experimentara antes, tomou conta dele.
Percebeu os sentidos o abandonando e caiu desmaiado ao chão.
Despertou nu e jogado no fundo da caverna, mas não no escuro.
Uma fogueira, observou ele, feita com uma das tochas que haviam trazido, ardia à sua frente.
Do outro lado vislumbrou o torso também nu da garota, reclinada sobre um dos cadáveres de seus irmãos.
O som que fez ao tentar aprumar o corpo a fez se virar e ele pode ver o rosto dela encharcado de sangue. Ela se repastava na carne do morto.
Aquilo trouxe um horror incomensurável à mente dele. Insanamente começou a orar em voz alta, a invocar o nome de Deus, exigindo que ela voltasse para o inferno. Dirigiu imprecações contra a criatura e por fim, em um ato de desespero, atirou uma pedra nela.
A garota se virou furiosa como um bicho e veio em direção a ele, que imaginou que finalmente seria seu fim e aquele tormento acabaria.
Mas ela o empurrou com o pé, fazendo-o se deitar, reacendendo a chama da luxúria.
Ele lutou contra o desejo de seu corpo, mas o cheiro que se desprendia dela, uma mescla de sangue, gordura e coisas proibidas o dominaram, e logo estavam novamente entrelaçados.
Isto se repetiu por dias, quantos ele não soube precisar, pois era impossível contar a passagem do tempo na escuridão da caverna.
Aos poucos ela já não lhe parecia um monstro irracional, pois entendia as necessidades fisiológicas dele.
Nos momentos em que estava desacordado ela provavelmente se ausentava e trazia lenha para mantê-lo aquecido, água em um velho pote e pequenas aves e roedores para alimentá-lo.
Talvez, pensava, ela o mantinha vivo para ter carne fresca para se alimentar quando chegasse a hora que se esgotasse a carne dos ossos de seus falecidos companheiros, que, aliás, já estavam putrefatos e o fedor nauseabundo começou a sufocá-lo.
Então ela, percebendo isto ou porque a incomodava também, o arrastou para perto da entrada da caverna, onde uma brisa fresca soprava.
O templário pensou que talvez fosse uma chance de escapar, mas sua captora parecia não sentir necessidade de dormir, então nenhuma chance se apresentou.
Uma curiosidade crescente começou a surgir em seu peito sobre ela e um dia, quando a garota estava sentada na entrada, se aquecendo ao sol da manhã que passava entre os galhos das árvores próximas, (antes, ele chegou a pensar que ela fosse um ser das trevas e que temia a luz solar, mais uma coisa em que estava enganado) ele se arrastou vagarosamente para também aproveitar aquele calor e a ficou encarando.
— Qual é seu nome? — perguntou subitamente em francês.
Ela sequer olhou para ele, que repetiu a pergunta em inglês, em italiano, latim, árabe e, por fim, em aramaico.
Diante deste último, ela finalmente o encarou.
— Sou Arthur Deboise, qual seu nome? — perguntou então na língua dos judeus, apontando para si mesmo.
Repetiu a pergunta e o gesto várias vezes, até que ela apontou para si mesma e grunhiu algo algumas vezes.
De início pareceu algo ininteligível, mas aos poucos ele apreendeu o significado, que o deixou pasmado.
“Nephilim”
Seria possível aquela garota ser um dos míticos seres bíblicos? Um fruto do cruzamento de anjos e humanos?
O seu aspecto físico e principalmente seus olhos azuis faiscantes já mostravam que era diferente das demais pessoas e sua força e velocidade eram sobre humanas, então sim, ela poderia ser uma Nephilim.
E se assim era, a quanto tempo ela existia? Provavelmente assistira à queda de Sodoma e Gomorra, vira o êxodo, a chegada e a partida dos romanos.
Não conseguia imaginar como ela fora parar ali, nem de onde vinha aquela fome de sexo e carne humana.
Não! Estava se equivocando, pensou, não era só carne humana que ela apreciava, pois trazia outros animais que caçava na região para ele e para ela. Talvez não diferenciasse homens de animais.
Mas o fato de o manter vivo por tanto tempo, podia ter uma razão mais profunda além da satisfação de seus instintos. Talvez sua parte humana estivesse sentindo falta do convívio de sua espécie, pois quem, com um mínimo de consciência, suportaria uma solidão de séculos?
Atendo-se a esse fio de esperança, Arthur tentou uma ato desesperado.
Vestiu-se com uma cota de malha de um de seus companheiros mortos, pois a sua fora estraçalhada, vestiu calças, botas e escolheu o manto em melhor estado.
Ao olhar para o brasão com a cruz vermelha, sentiu vergonha.
Havia quebrado seus votos de castidade. A princípio contra sua vontade, mas agora ele ansiava pelo calor e umidade da Nephilim e por isto sabia ser um perjuro.
Com o escudo nas costas e a espada na cintura ele se dirigiu firmemente em direção a saída da caverna. Trazia seu elmo na mão, pois queria que ela visse seus olhos, pois percebera que esta era a melhor forma de se comunicarem.
Ao vê-lo e pressentir sua intenção, ela se levantou e rosnou.
Ele parou diante dela e disse:
— Nephilim, sou um cavaleiro de Cristo, da Ordem do Templo de Salomão. A razão de minha existência é proteger os peregrinos que vão para a cidade sagrada e louvar ao Senhor com meus atos e pensamentos. Isto não posso mais fazer, pois enlameei minha alma em suas entranhas, além de qualquer salvação. Mas posso cumprir minha primeira tarefa. E eu vou!
E saiu. Ela não o deteve.
Caminhou alguns metros, esperando o ataque pelas costas, que não veio. Parou e olhou para trás.
A garota o seguia, pisando cautelosa nos pedregulhos da descida.
Ele pensou ver medo nos olhos. Mas medo de que? De perdê-lo?
Entendeu então que ela o seguiria para onde fosse.
Porém, não poderia fazê-lo nua, então ele retornou à caverna e pegando alguns tecidos velhos fez uma vestimenta da melhor forma que pode para ela. Amarrou ainda tiras de couro em seus pés e se pôs a caminho novamente.
Não podia mais voltar para sua ordem, não depois de tudo. Não era mais digno, mas queria fazer o que fosse possível, se não pela salvação de sua alma, mas que conseguisse pelo menos um lugar no purgatório.
Durante os meses que se seguiram, Arthur e a Nephilim patrulharam a região, se escondendo de cruzados e templários, mas atacando qualquer sarraceno que encontrassem pelo caminho.
Ela poderia partir um ser humano ao meio só com as mãos, mas ele a ensinou a usar uma espada, que para ela servia como um cutelo, destroçando e retalhando.
A Nephilim parecia se divertir muito nestes momentos de carnificina e depois se refestelava nas carnes e vísceras dos mortos, para depois buscar ardentemente Arthur para satisfazer seus outros instintos.
Muitas vezes os dois mantinham relações sobre sangue e corpos ainda quentes.
Boatos sobre demônios que assombravam a estrada para Cesareia se espalharam.
Arthur achou aquilo bom, pois espantava os salteadores, deixando os peregrinos mais seguros e, por outro lado, já o preparava para ser aquilo que acreditava que seria após a morte: um demônio.
Um dia, um grande fluxo de peregrinos surgiu em sentido contrário à cidade santa. Pareciam assustados e fugindo de algo.
Deixando a garota escondida, Arthur abordou uma destas pessoas e descobriu que Saladino vinha com um grande exército do Egito para atacar Jerusalém, e Balduíno, o rei, saíra da cidade para confrontar o sultão, mas com um exército bem menor.
O templário sentiu um calor dentro de si. Era seu dever proteger o reino santo e talvez aquilo fosse um sinal de Deus, uma forma de o purificar de todos os seus pecados.
Sob grunhidos e arranhões da Nephilim cortou-lhe os cabelos, botou-lhe uma cota de malha e enfiou em sua cabeça um elmo nórdico, para fazê-la se parecer o máximo possível com um soldado. Colocou-a sobre um cavalo junto com ele, do qual ela tentou pular três vezes e foram em direção à Râmia.
Ao longe já era possível ouvir o clangor dos exércitos em luta e ver a poeira que quase tapava o sol.
Cavalgou até uma elevação e pode ver a batalha se desenrolando logo mais à frente. Haviam chegado pelo flanco esquerdo, aos pés do Monte Gisardo.
Ao ver a luta e sentir o cheiro da batalha, a Nephilim soltou um brado excitado, pulou do cavalo e correu em direção aos combatentes mais próximos.
Arthur desmontou e correu para luta, rezando para que ela, depois de todos aqueles meses, soubesse diferenciar cristãos de muçulmanos.
Agora, terminada a batalha, ele de joelhos a encarava. Sabia, pela postura dela, o que faria. Iria se atirar sobre os corpos próximos e saciar sua fome de carne e sangue.
Ele levantou-se e correu até ela, a segurou pelos ombros e a fez olhar para ele:
— Não faça isto! Não aqui!
A garota arreganhou os dentes, o empurrou para longe e ficaram se encarando.
— Tudo bem — disse ele por fim. — Faça como bem entender. — E saiu andando.
Seguiu em frente, se segurando para não olhar para trás. Apostava em seu conhecimento das reações dela, queria acreditar que aquele tempo de convívio havia amortecido seus instintos mais primários e que ela o seguiria.
Começou a subir o Monte Gisardo e após um bom trecho não aguentou e se virou.
Ela vinha vindo, logo atrás e trazia nos ombros um cadáver.
A poeira e o lusco fusco do entardecer podiam dar a quem visse aquilo, a ideia de que era um soldado carregando o corpo de algum amigo, para lhe dar um enterro digno e não que aquela pessoa estava carregando seu jantar.
Arthur não pode deixar de rir diante do pensamento.
Subiram até encontrar um pequeno planalto, cercado por rochas, de onde brotava um pequeno veio d´água.
Ele acendeu uma fogueira e tirou a cota de malha e a roupa de baixo, ficando nu, pois sabia o que ela quereria depois de terminar de saciar-se com o morto.
Debruçada sobre o cadáver já nua, arrancando nacos de carne com os dentes e as mãos, ela o encarava. Havia algo novo em seu olhar, pensou Arthur, algo que ele não conseguia decifrar.
Ela terminou de se alimentar e contrariando as expectativas, antes de ir até ele, se dirigiu à pequena fonte, pegou um pedaço de tecido que mergulhou na água. Com ele limpou o sangue do rosto, dos seios e o passou pelo corpo.
Caminhou até ele languidamente, bem diferente da forma intempestiva com que normalmente o fazia.
Esperou a atitude dominadora da garota, no entanto, ela o surpreendeu ao deitar-se no chão e esticar os braços, num convite mudo ao prazer.
Arthur, surpreso, levou um tempo para reagir, mas finalmente levantou-se, deitou-se com ela.
Ela arqueou o dorso, tomada pelo prazer e passou a gemer, não a grunhir como sempre fazia. E então, fez algo impensável. Puxou o rosto dele para perto do seu e o beijou.
O cavaleiro ficou pasmo e por instantes parou de se mexer, mas ela cruzou suas pernas por seus quadris e o puxou com mais força para junto de si.
Um misto de desejo e ternura se apossou dele. Estaria se apaixonando por aquela…. coisa assassina?
Sua mente construiu uma imagem dos dois vivendo em Paris ou Roma. Havia muito ouro e moedas na caverna em Monte Carmelo, advindos das vítimas que ela fizera ao longo dos séculos e que a Nephilim, talvez como um estranho passatempo, os empilhava em um nicho.
Com dinheiro ele poderia comprar gado e outros animais para que ela se alimentasse, e mesmo que ela desejasse carne humana, seria fácil conseguir, pois muitas pessoas desapareciam em cidades grandes sem deixar rastro.
Uma onda de indignação tomou conta dele. O que estava pensando? Levar aquele monstro para o seio da cristandade? Seu coração e sua alma estavam mesmo corrompidos.
Logo atingiram o clímax juntos e deitaram-se ofegantes, lado a lado.
Ela se virou e o abraçou, descansando a cabeça no peito dele. Mais uma novidade.
Antes que o amor o tomasse novamente, buscou pensar com objetividade no que deveria fazer. Talvez matá-la?
Achou que seria impossível, pois a vira retirar flechas do próprio corpo e mais de uma vez fora atravessada ou cortada por uma lâmina, ferimentos que mal sangravam antes de se fecharem rapidamente.
Mas ela não merecia tal fim, afinal, que culpa tinha de ser como era? Ele sim era o culpado, um pecador.
Decidiu o que faria.
Caminharia até o deserto profundo da Palestina, ela o seguiria, com certeza. Acharia uma caverna isolada, onde ela poderia ficar sem que ninguém a encontrasse. Ela se alimentaria de animais ou mesmo não comeria nada, pois ele acreditava que não seria a fome que a mataria.
E quanto a ele, tiraria a própria vida, um crime terrível ante a divindade, mas sua alma já estava perdida. Era o que merecia.
E a Nephilim poderia devorar seu corpo, a última conjunção carnal que teriam.
Sim, era isso que faria.
***
O movimento era intenso no porto de Jafa.
Navios carregavam e descarregavam suas mercadorias, vindas dos quatro cantos do mundo.
Duas pessoas, usando mantos largos, com capuzes que lhes ocultavam os rostos, se aproximaram de um otomano.
— Você é o capitão desse navio? — perguntou o encapuzado.
O homem meneou positivamente a cabeça.
— Está indo para Óstia? — perguntou novamente o recém-chegado.
— Sim, para Itália.
O desconhecido tirou a mão das dobras do manto e colocou cinco moedas de ouro romanas na mão do capitão, que as olhou incrédulo.
— Quero duas passagens, então.
O otomano, passado o primeiro impacto, olhou detidamente para as duas figuras.
Apesar de não poder ver-lhes as fisionomias, percebeu que um deles era um menino ou uma mulher, pelo porte franzino. O outro era grande e era possível perceber-lhe os músculos mesmo sob o tecido e as mãos fortes e calejadas que pudera ver quando da entrega das moedas, lhe diziam que era um soldado.
— Não transporto desertores. — Rebateu o homem. — Isso pode me trazer problemas.
O desconhecido esticou a mão e entregou mais cinco moedas de ouro ao marinheiro:
— Não sou um desertor, sou um homem morto.
O capitão avaliou as moedas, pensou e, por fim, deu de ombros:
— Subam a bordo. Partiremos em breve.
— Mais uma coisa — perguntou o encapuzado ao capitão que já se retirava —, quantas pessoas no total irão no navio.
— Treze da tripulação, contando comigo e mais três comerciantes ingleses.
— Pessoas costumam sumir durante a viagem?
— Às vezes uma ou duas, que caem ao mar durante tempestades. Eu proíbo álcool a bordo, mas alguns se embebedam escondidos e acabam caindo da amurada. Por que pergunta? — O homem olhou desconfiado.
— Apenas para nos precavermos — respondeu o outro. — Para que não corramos estes riscos.
O capitão se foi e o grandalhão se virou para o menor e o agarrou pelo braço:
— Você ouviu? Podem ser, no máximo, duas pessoas! Controle sua gula!
Sob a sombra do capuz, dois olhos azuis faiscaram.
*“Não a nós, ó Senhor, não a nós, mas ao teu nome dai a glória”.