Lembro até hoje do meu aniversário de 11 anos. Naquela noite tive o sonho mais esquisito da minha curta vida.
Nada de carros voadores, corridas de Fórmula 1 ou mesmo que eu estava voando, nem sobre estar em guerra com
robôs alienígenas. Mas antes, vamos ao dia que se passou. O dia do meu aniversário foi, na verdade, muito tranquilo,
apesar da minha ansiedade em começar a farra — o Pedro de 11 anos era obcecado por cada festa de aniversário.
Chamei todos os amigos da minha sala, os primos do interior da Bahia e todos os vizinhos da rua. Meus pais prepararam um almoço com direito a churrasco e doces. Algo diferente, inusitado, já que todas as festas entre meus amigos eram durante a noite. Todos foram. Comi tanto quanto jamais havia comido. Brinquei como se não houvesse amanhã.
Ganhei muitos presentes, apesar de naquela época isso não importar realmente.
Queria mesmo era a farra, a diversão, a liberdade infinita — aniversários eram sempre dias de liberdade em toda sua
essência na vida de uma criança.
Me lembro que comi demais e bebi demais. Inventamos de correr, eu, meus amigos
e primos, e a maioria vomitou metade do que havia na barriga. Uma hora depois estávamos correndo outra vez e de
barriga cheia novamente. Meus pais planejaram tudo com os pais dos amigos: era aquele tipo de festa em que todo
mundo colaborava um pouco. Usamos o jardim da casa em São Roque para receber todos e organizar as comidas, o
espaço do churrasco e as mesas e cadeiras. Foi incrível. O melhor aniversário que me lembro. Bom, isso até a hora
de dormir… Eu tive um sonho muito louco durante a noite, talvez por ter comido tanto e feito tantas coisas durante
o dia, ou, quem sabe, fosse um jeito do tempo me presentear não apenas com um ano a mais.
No sonho, eu estava com um peso nas costas, depois percebi ser uma mochila longa, estava dentro de um ambiente
muito grande, longo e muito claro.
Havia pessoas em volta observando coisas nas paredes que depois percebi serem
quadros e esculturas também muito grandes. Parecia tudo exagerado no sonho.
Tamanhos e cores eram extremos. Os sons que chegavam aos meus ouvidos mudavam de muito baixos para muito
altos e de sussurros a gritos infantis. Me vi observando um quadro azul que parecia ser sobre a noite e o céu. O foco
de tudo foi para aquilo. Eu via, sem realmente ver, que as laterais da minha visão estavam embaçadas, típico de sonhos.
Consegui ler com alguma dificuldade o nome Van Gogh. Não reconheci a pintura, talvez por prestar pouca atenção nas
aulas de artes da escola. Depois me vi passando as mãos por ele, de alguma forma eu conseguia, já que era duas vezes
maior que eu. Sonhos… de repente eu parei e olhei para o lado, havia alguém me chamando no fim do corredor, uma garota.
Ela parecia apressada, estava com roupas antigas, olhei para minhas roupas e eram antigas também, pareciam do início
do século vinte. Já a mochila que eu carregava me parecia muito atual. Fui na direção da garota e falei coisas que não
consigo lembrar. Importante dizer que eu estava presente duas vezes neste sonho, como ator e como observador. Que
coisa louca! Não consegui acompanhar meu outro eu e tudo foi sumindo dentro de uma neblina que aos poucos desfez tudo…
e eu acordei. A questão que mais me surpreendeu no sonho foi o que sentia pela garota, eu não sabia o que minha boca
falava, mas sentia que conhecia aquela pessoa e que tínhamos alguma proximidade. Acordei sentindo como se de fato tudo
tivesse acontecido. Isso me incomodou por dias — e me assustou. Tive algumas variações desse sonho durante anos e também
passei a ter outro um pouco diferente. Era com uma pessoa que parecia ser íntima, parecíamos bastante amigos.
Nele, eu estava molhando os pés num rio e minha companheira fazia o mesmo, havia um cavalo próximo a nós e ele comia o que
pareciam ser cajus muito maduros. A gente ria enquanto conversava, ela parecia me contar uma história.
O rio era incrivelmente
azul e isso não nos parecia estranho. Outro detalhe era que eu sentia a presença de uma terceira pessoa, notei que sempre que
isso acontecia, o sonho terminava. Com o tempo, consegui fazer com que terminasse um pouco depois e vi um homem muito,
mas muito alto, ele não tinha rosto, na verdade era o desenho de uma pessoa com seu contorno e me parecia um homem, mas
era no geral uma sombra que nos observava por detrás de uma árvore gigante.
O máximo que consegui foi isso. Ambos os sonhos se repetiam mais ou menos duas vezes por ano. Pelo menos tenho essa impressão.
Eu meio que já os esperava e jurava que da próxima vez iria estar mais atento e conseguiria estar lúcido para controlá-los e ver até onde
iria… Eu já tinha lido sobre isso, acabei buscando informações, esses sonhos — eu sentia — não eram somente sonhos de fato e eu queria
poder saber a razão deles e até onde me levariam, caso eu conseguisse estar lúcido.
Os anos se passaram e já fazia algum tempo que não voltava a ter essas imagens pela minha mente, estava com 21 anos quando resolvi
que antes de tentar uma universidade, deveria conhecer um pouco do mundo.
Resolvi fazer um mochilão pela Europa, algo que estava
em alta na classe média da época.
Passei por estradas, trens, ônibus e aviões. Pegava transportes mais baratos para o dinheiro render e poder ter mais tempo. Estava
particularmente ansioso por chegar à Itália e conhecer os campos e suas comidas. Conheci muitas pessoas que também estavam em
viagem e moradores locais. Eu acabava em lugares fora das listas turísticas, o que me rendia histórias e pontos em comum com
outros viajantes, como o principal deles que era estar perdido em ruas labirínticas. Um detalhe de quando se é viajante é que o seu
hotel, por exemplo, pode estar à sua frente, você estando perdido, não irá vê-lo.
Sempre que ligava para a família era algo como três minutos de conversa, as fichas escoavam no ralo da chamada com a velocidade
de uma estrela cadente. Mas assim sabiam que eu estava vivo, o tempo na linha não importava. Os cartões-postais também
ajudavam a manter todos tranquilos e com a esperança do retorno e futuro enfrentamento da vida adulta.
O que era para ser um mês,
chegou a dois, seis e já havia pouco mais de dois anos. Naquele tempo, era possível conseguir trabalhos aleatórios em troca de
dinheiro ou comida e dormida. Eu já não achava que seria possível estar, durante horas, dentro de uma caixa escutando sobre
lugares que eu agora já conhecia pessoalmente. E se eu estudasse em algum daqueles locais que por si já eram museus a céu aberto?
Obviamente minha família não sabia dos meus devaneios. Depois de um tempo, cheguei em Paris com seus museus de arte e história,
incluindo fragmentos de histórias roubadas como todos sabiam e fingiam não saber. Deixei um dia inteiro para conhecer o Louvre,
já que é um complexo com vários museus em um. Tinha muita coisa para ver e pensei que daria tempo se chegasse logo ao abrir.
Foi um inferno.
Tinha tanta gente que quando as pessoas começaram me empurrar apontando suas câmeras fotográficas para tudo,
comecei a esbravejar xingamentos típicos que só outro brasileiro conseguiria entender. Eu queria fazer jus à taxa de entrada tentando
apreciar as obras, mas era impossível. Vi poucas peças e quando cheguei ao piso onde Monalisa me esperava, havia uma multidão, ela me traíra.
Nos folhetos dos passeios turísticos não parecia ser desse jeito. O turista é, antes de tudo, uma pessoa enganada, um tolo. A vi de
relance e dei de ombros, “é, fazer o quê”. Tentei buscar obras com menos fanáticos e menos equipamentos fotográficos até encontrar
um trecho bem menos movimentado daquele piso. Alguns quadros belíssimos, ali conseguia até sentir o frio do ar-condicionado.
Algumas crianças corriam desinteressadas e adultos andavam dispersos olhando para as obras sem muita atenção.
Cheguei a uma
parte onde as pinturas eram em sua maioria azuis e sobre paisagens, pareciam expressionistas. Maldita falta de atenção que tive
durante as aulas de arte da escola. Em certo momento me deparei com uma paisagem bastante familiar, era a noite muito azul e
com estrelas tristes, era tudo triste na verdade — Van Gogh. Cheguei mais perto, tanto quanto a faixa de proteção permitia, e
olhei atônito para aquele mundo de tinta à minha frente.
Lembrei imediatamente do meu antigo sonho, aquele do meu aniversário de 11 anos. As cores em amarelo, o azul sempre triste e aquele elemento grande no canto esquerdo, talvez um castelo, me deixaram perdido em pensamentos. Senti uma emoção invadir meu coração, eu pensava rápido revivendo o sonho de menino e a realidade de estar ali agora, mas faltava uma coisa, duas na verdade. Olhei pro lado direito e o corredor se estendia a perder de vista. Olhei para onde eu tinha vindo, algumas pessoas observavam outras pinturas. Olhei de volta para o Van Gogh à minha frente e pensei: “onde ela está?”.
Senti um impulso de tocar o quadro e estiquei uma das mãos, me segurei, provavelmente o alarme soaria, não era assim nos filmes?
Novamente senti o impulso e dessa vez não tive tempo de ser racional e evitá-lo. Minha mão tocou a lateral direita do quadro e foi deslizando até a base, havia dois de mim na altura daquele gigante, mas minha mão alcançava uma mínima parte e foi assim até tocar em algo pontudo. Algo que deveria ter sido notado por alguém antes, quantas pessoas já pararam ali para observar aquela imagem? Inúmeras.
Um guarda apareceu com olhar sério e começou a esbravejar um francês muito agudo atraindo atenção dos poucos fantasmas daquela galeria. Ele olhou o quadro rapidamente, procurando talvez alguma avaria que eu tivesse feito, não encontrou nada e me olhou com olhos firmes que se estreitavam a cada palavra de algo que entendi como uma expulsão imediata.
Pedi desculpas em francês, português e inglês, as palavras saindo como balas de uma arma. Saí dali com a cara mais vermelha que a pimenta mais ardida, só respirei novamente do lado de fora, já em frente à Pirâmide do Louvre. Abri a mão direita que estava o tempo inteiro fechada, minhas unhas haviam marcado a pele por dentro, um papel pairava me encarando. Eu me tremia todo, desde os dentes até a alma. O que estava escrito naquele papel amassado e encardido mudaria minha vida para sempre. Parece que foi ali que tudo isso começou.
NOTA DA AUTORA
Este capítulo, assim como a sinopse, tenta lhe ambientar na trama, primeiro através de um resumo, em seguida, pelo olhar do personagem Pedro.
Considere fazer parte desta aventura que é a escrita do meu primeiro romance e contribua comprando ações e/ou adquirindo a leitura capitular.
Se você chegou até aqui, obrigada, mas devo lhe informar que uma vez vista, esta história não poderá mais ser deletada da sua mente, nem a sua alma
será devolvida a você (cada história tem um pouco de quem escreveu e de quem a leu), como bem diria Oni: "Agora eu vejo você."
Boa sorte.