sumário
[8] ÍRIS E RETINA
[28] PAPILAS
[42] RAPADURA QUEBRA O DENTE
[68] ALVÉOLOS PULMONARES
[94] NA CORRENTE SANGUÍNEA
para todos que estão
nestes poemas
ÍRIS E RETINA ÍRIS E RETINA
I. Abate
Eu sou
o cordeiro
e o gato
o coelho
e o rato
tenho sangue
de animais
sacrificados
perfeitamente
penteados
maquiados
empalhados
em cima
das minhas
costelas
das mesas
e cadeiras
onde escrevo
seus cadáveres
putrefatos
nos cantos
do meu quarto
eu os matei?
9pergunto
ou eles me
mataram?
e nossa
carne
a quem
alimentará?
usarão os caninos
ou os garfos
dos animais?
sobrarão
as peles
e os pelos
engomados?
de mim
nada
sempre
nada
nem ossos
nem palavras
não fui
apresentada
não aprendi
na bíblia
coisas sagradas
então meu cordeiro
se abateu
para ser servido
no prato
10de outras
casas.
11
II. Para os que me amam e querem ficar
um
copo de leite
azeda
na minha mente
mas só quero bebê-lo
depois de azedo
uma
ameixa
apodrece
na minha mente
mas nunca quero comê-la
porque ao menos gosto
de ameixas
belzebu não suportaria
a minha mente
onde as elegias
azedam e
apodrecem
assim que mirra o olhar
baraquiel não suportaria
a minha mente
onde o leite derrama azedo
na garganta
e a ameixa vai pro lixo
toda semana
13
III. Ouroboros
eu posso escrever
com os edemas do meu cérebro
quando eles escorrem pelos dedos
e viram abscessos
uma pena
é a cabeça que não sangra
como o útero
ou os olhos
do recepcionista do hospital
que fez meu check-in
como escrevem
os poetas de hoje
sem emular
autenticidades que não têm
que não tenho
tão pequena
a Antígona
desse veneno
ou do verso
em que me estendo
posso me sepultar
em qualquer página
em que apareço
14
IV. Fluxo de consciência
duas mãos esquerdas
mas sou destra
uma bala de leite
na cabeça
a miopia segura os óculos
no cabelo
tudo que se cobre de ódio
tem amor no meio
o potássio na banana não alivia a câimbra
no seio
mastopexia sem prótese
com prótese silicone que seja
tão megalomaníaca a insignificância
do Pensamento
quase vomito no carro e em casa
não corro pro banheiro vomito nas mãos
vou pra sala e digito o poema
faço qualquer coisa
parecer um insulto
inveja e autopiedade e ira
é só desejo
comprei mais livros
que não vou ler
15casa é um lugar muito específico
em qualquer lugar que me deixo
isso não é um fluxo
de consciência
lembro do sorriso dele
a língua entre os dentes
aposto que não sabe de mim
e meus dentes entre a língua
não digo seu nome
para não ser filha da puta
não marco seu arroba
para não ser filha da puta
às vezes gosto de pensar e acho que sou
filha da puta
o presente é um futuro
de desapontamento
só brilha
o que é opaco por dentro
na terapia eu digo uma boa frase
para acabar um poema
eu quero morrer e acho que até as coisas me odeiam
16
V. 45.c
Odeio os homens
e as mulheres
às vezes até os bichos odeio
menos a que ronrona no meu pé na ponta da cama
do lado do travesseiro
os que eu pari
e são excrementos
odeio muito
odeio as pessoas
e o mundo
até os climas eu odeio
seus distúrbios sazonais
aparelhos superaquecidos
corpo corpo
todo mundo tem corpo
e eu os odeio
não é difícil saber
também que me odeio
quando tudo entrará para dentro de si
e todos se engolirão até se expelir
dez anos
quinze anos
cinquenta
um e meio
odeio uma panela de pressão sem defeito
o gosto das coisas também odeio
odeio o ódio
e o ócio
do desejo
que é também só mais um ódio
vestido de tempo
odeio a gente
às vezes até a minha gente eu odeio
desgosto sempre no rosto
arrepios de nojo
ou agulha no vespeiro
pela inevitabilidade incontrolabilidade do ódio
me coloco sozinha no parapeito
eu e os bichos
a que ronrona no meu pé na ponta da cama
do lado do travesseiro
os que pari
e são excrementos.
18
VI. Lady Sísifo
Fui eu
quem decepou a minha língua
queimou com cigarro minhas asas
demoliu a minha casa
e derramou vida ensanguentada
quando os ovos quebraram
na frigideira?
Fui eu
quem deu meu nome
para o mundo sem saber
pronunciá-lo?
Quem foi
onde foi
quantos são
os sísifos
no armário?
A água vaza
debaixo da pia
do banheiro.
Fui eu
quem quebrou
o espelho
em sete dias?
Se o asfalto não fosse quente
e as ruas vazias
eu sairia para o inferno
todo dia.
Se a ternura não fosse fina
e o mundo não se dividisse
entre a sala e a cozinha
eu sairia para o inferno
todo dia.
De quem foi o pronome
que marcou
essa heresia?
20
VII. Gentileza
Eu não sou doce.
Eu nunca fui doce.
Os medos que escondo
têm dentes na boca,
sangue nos olhos.
Eu não sou doce.
Eu nunca fui doce.
Eu incendiei a casa
passando café
onde morre o desejo.
Eu não sou doce.
Eu nunca fui doce.
Eu lutei as guerras sozinha.
Eu as iniciei sozinha.
Eu perdi para ambos os lados.
Eu não sou doce.
Eu nunca fui doce.
O vento agudo como faca
gritando tão alto
que os pássaros desaprendem como voar.
Eu não sou doce.
Eu nunca fui doce.
Conduzindo imprudentemente,
perdendo os sinais
enquanto amo, enquanto minto.
22
VIII. Legado
Sabem que estarei em prantos na primeira fileira
com a vida sujando minha boca
o cabelo desfeito
nunca se ouviu desafinação tão alta
sabem que estarei no banco da frente do carro
fazendo-os fisicamente adoentados
as janelas baixam
nunca se viu o vento tão nauseado
sabem que morrerei nas tropas dianteiras
com a gozação do desejo
para voluntariamente pisar nas minas
nunca se presenciou um incêndio tão vitimizado
sabem que estarei em todo lugar, qualquer lugar, lugar nenhum
visível, invisível, completamente esquecida
ou difamada demais
nunca se pensou numa poesia tão estrangeira ao mérito
23
IX. Um dia antes do meu aniversário
Sábado
vomito
na privada
lágrimas
descarregadas
com detrimentos
de comida
meus amigos
não se importaram
em celebrar
meus pais
não compraram
um bolo
então pinto
as unhas
de vermelho
escrevo algo
sobre alguma lei
para uma aula
então pinto
as unhas
de vinho
durmo
meio-dia
roupas
na cama
então pinto
as unhas
de marrom
quimérico
lamento
os 22
e a perda
do que
nem
ao
menos
tenho
então pinto
as unhas
de preto
domingo
qual a
data?
26
PAPILAS
I. Papilas
o palato é o lugar do poema
onde descansa a minha língua
e a sua
todas as línguas
todas as mulas
mewing —
miando
chewing —
mastigando
escorre na saliva
e não passa da glote
a papila é o lugar do poema
onde descansa a minha língua
e a sua
todas as línguas
todas as curvas
29
II. Saiu na Peixe-Boi
tanto estufa
o peito dos homens
para falar sobre o mundo
como se fossem maiores
e mais versados
por esses assuntos
e com tanta honra
se despedem
algumas mulheres
de seus seios
para falar sobre o mundo
como se fossem maiores
e mais versadas
por tirarem dos homens
esses assuntos
e para quem sobra
o relato e o palato
e o monte de burros
o pranto e o filamento
de sangue do escorbuto
a vida e nunca o mundo
quem vai cortar os pulsos
fora dos livros e das páginas
com sujeira e sem respaldas
antes de referências desgovernadas
a garganta é um fóssil
para quem sonda
a metáfora
31
III. Labuta
não sei em qual língua me encontro
se tenho pelos ou papilas
penugens ou pupilas
sozinha a língua
dá nó
engasga
enrola
se contorce
só não cai pra fora
porque trabalha sozinha
32
IV. Produção
Ontem
escrevíamos
na língua.
Hoje
escrevemos
com os dedos.
Amanhã
com os olhos.
Depois
não escrevemos.
33
V. Os poetas
Os poetas
usam coroas
*rangendo os dentes*
naquela cabeça
que mente
camisas de botão
braguilhas abertas
vozes eloquentes
e mais importante
parceiras ninfetas
que dividem suas idades
*revirando os olhos*
ou os outros
olhos dos outros
os poetas
não sabem ensinar
mas ensinam
seu ofício
*controlando a náusea*
e mais que isso
têm troça no ensino
como hades
que não se curva
a adão
e quem dirá
dirá eva
são homens
os poetas
têm falo
os poemas
in
clu
si
ve
este.
35
VI. Língua
palavras têm pensamentos insípidos
como as laranjas na geladeira
ou o pão na cozinha
praias são feitas de pedra
o mar nunca fala
com seivas brancas roubadas
tudo que dizemos carrega
um pouco de corpo
um pouco de mágoa
palavras têm pensamentos insípidos
como os que minha mãe me deu
e eu transformo em baratas
36
VII. Língua Mãe
um grito não tem língua
é apenas som
minha mãe não tem filhos
nós emergimos do solo
meu corpo não tem fêmur
nossos ossos estalam
no teto da boca
quando escrevo
de longe
quando eu digo
romã
e não pomegranate
mamãe
e não mom
é porque
um grito não tem língua
é apenas som
na separação eu me lembro
do gosto de terra sujeira e fronteiras
no espaço eu entono
as palavras que flutuam e reverenciam
é apenas corpo
é apenas som
38
VIII. Eu
Não há eu em poema
um em escreveu
quantos podem caber
com sua permissão
nos meus pesadelos?
Pronomes de primeira pessoa
você não é escritor
ou poeta
posso eu
ser uma criança?
Linguagem tem eus
elocução conteúdo fecundação
preâmbulo revolução
vinculações
Não só tantos eus
quanto nas orações
pensamentos e álibis
a cada um exclusivos
da humanidade
Linguagens tem tantos
eus
universos tem tantos
eus
A língua está perdida
ela cai para fora da boca
sim, da minha
eu tenho sua permissão para dizer?
eu, eu, eu
meu, meu, meu
minha, minha, minha
Se estamos todos sós
no meio do palato
e dentro um dos outros
EU não deveriam ser
as vogais universais?
Estarei pronta
para o ódio de
ter sido quem disse.
40
IX. Poesia
Poesia
é des
construção
Escrever
é auto
fragment -a
a -ção
Menos dito
mais a
semên- ar
Se você
sussurrar
se você
gritar
As palavras
gemem
41
RAPADURA QUEBRA O DENTE
I. Eva e a maçã
disse que o amava
pois precisava
duma maçã para morder
quantas outras
mal sabe
já não mordi
da mesma árvore
não tão podres
não tão em tons
de marrom
parecendo vermelhas
da maçã uma larva
conversa comigo
gargalha
e conta piadas
eu também
estou estragada
gostaria de rir
na sua cara
as nossas línguas
de valquírias
esticam pretas
para fora da boca
quem entrou na minha casa
44
II. 1826
Estendo minha mão às suas maçãs
para encontrar não a sua face mas apenas
a presença pequena da sua memória
enlaço em véu de branco ressentimento
tudo que nos separa é a pedra
em que foram lapidados nossos sentimentos
agora parados
em alguma outra dimensão
que não pode ser e não será descoberta
embora a morte tenha caído sobre nós uma vez
o movimento das nossas almas se curva
sob as cordas da teoria
cada versão de mim o ama tão profundamente
quanto os cinco mares com os quais me amaldiçoou
sou eu — aquelas águas em que você se banha
a lágrima tímida fugindo dos seus olhos
o suor na testa depois de uma boa noite
de sexo apaixonado
não é história alguma é uma pintura de Bacon
minha presença não é fúria
é o amor em sua ausência
a capa pesada do luto
cuja invisibilidade me faz tensão
dor de dente enxaqueca
dor dupla face energia simétrica das diferenças
somos todos os animais da arca de Noé
feras esfomeadas
penso na morte toda vez que você ressuscita na minha mente
amor eterno é o ouroboros do passado
presente dos deuses para Penélope
mortal ainda imortal, mulher e conceito
posso descansar no mármore
e jamais ser sólida o suficiente para esquecer
46
III. Matadouro
me falta ser massacrada por você
o descanso que se segue à morte
como o ninar de um rio
logo ao lado do seu ninho
mimese d’A Morte e a Donzela
calor de um forno carregado de pães
amor e fome nunca se encontraram
esse é o prazer que me falta quando era massacrada por você
ser massacrada por você
todo o branco se disfarça de preto
anos passam e eu abandono o ato
pelos erros de deus lambendo facas
o que não se pode realizar pode ser rezado
eu sonhei que você era céu sem umbrais
me ninava até que esquecesse seu nome
e eu era massacrada mais uma vez
me falta ser massacrada por você
pacientemente aguardando no banquinho
da sua fortaleza, como você, até largar a fé
querido, eu te massacrei? você está bem?
47
IV. Kalinka
seu terceiro dente pende levemente
para a esquerda assim que eu
me inclino para a frente
para me demorar no formato dos seus olhos
e seus olhos
ah, seus olhos
tão perfeitamente esculpidos
na minha memória
sua vírgula me aflige
pela cor dos seus olhos
e seus olhos
ah, seus olhos
tão graciosamente me guiam ao subsolo onde meu coração está
a 120 bpm
pulando cada texto, já negro
o anseio pela possibilidade do seu toque descansado,
fantasmagórico
movendo-se com os olhos
e seus olhos
ah, seus olhos
tão suavemente dançando em kiev
num salão de baile, sem vestidos de gala
eu poderia pegar o próximo trem sem morrer
se você só dissesse algo com os olhos
e seus olhos
ah, seus olhos.
49
V. Pinacoteca
Procuro o véu que falta
sobre essa fragilidade
angelical
tão feita de mármore
tão branca
tão nua
procuro o tempo
que espera
no mesmo lugar
deus do pensamento
filho de vênus
convoca os gregos feito menelau
ela calada te aguarda
parada te anseia
inquieta na pedra
o fim da sua história
quando te sonha
pra sempre te queira
50
VI. Uma mulher que escreve
por quanto lhe sonho
e preciso
mas não sabe
meus motivos
não me vê
sem vestidos
não suporta
os meus gritos
uma mulher que escreve
é uma mulher
sem carinho
o amor que fica
parte
o amor que parte
fica
eu peço a deus
deixe, deixe-me
ficar —
sem partir —
comigo.
51
VII. Nadas
trava na minha garganta
ao lado do anseio
a dança de seus dedos
seu silêncio estagnado
ah, as palavras pelas quais rezo
as palavras que me castigo a não dizer
corre pelo meu corpo
como água com gás
mesmo nada
é tudo com você
ah, eu eternamente faria
um tanto de nadas com você.
52
VIII. Sem alarmes e sem surpresas
Deitada ao lado dele depois da transa
a música que ele tocava incessante
horas antes
ecoa na minha cabeça
na sua voz
e na minha juntas
rítmica duo band
de quando cantamos aquela vez
nas cadeiras da varanda da sua mãe
deitada ao lado dele depois da transa
a música que ele tocava incessante
horas antes
a mesma que você me cantou ainda dantes
era a única reprodução na minha mente
deitada ao lado dele depois da transa
53
IX. Limiar
O amor não é o que queria que fosse. E os homens não são o
que queria que fossem. E eu não sou o que queria ser porque
o amor e os homens não são o que queria que fossem. Ou
deveriam ser. O desejo não é doce, só amargo. O desejo é todo
amargo. Damascos mastigando grãos de café. Falam muito de
amor. E falam muito de homens. E falam muito de mulheres.
Eu falo muito de mim porque desejo muito amor dos homens
e sou muito mulher. Quando deixei de ser menina para ser
mulher? Garota. 21 anos. Menina. Ainda escolho anéis e quero
flores, decoro meus cadernos e meu quarto, mas meus seios são
fartos. Minhas palavras cheiram a pecado. Eu tenho o diabo
na boca quando grito infâmias, histerias que sobem do útero à
garganta, aos homens que me deixam. Odeio-os por amá-los
demais e por não saber viver sem eles. Um segredo. Quem sabe
também sabe em segredo. Posso ser hostil. Eu sou amargurada.
Talvez o diabo esteja na língua. Eles temem a minha postura.
Essa, que se quebra. Que pede doce.
Eu penso em talvez enlouquecer. Enlouquecer por cima dos
panos. Mastigar meus homens de boca aberta. ‘It’s not about
having someone to love me anymore. This is the feeling of
being an American Whore.’ Acho muitas palavras intraduzíveis.
Female Rage. Girlhood. Rotten Work. Ultimamente todos os
rostos se parecem. Nunca o mesmo fulgor. O desejo. O desejo
doce e amargo. Não causo danos aparentes. Tomo conta da minha vida. Casei
com meu desespero escrevendo longos ensaios sobre Sylvia
Plath. Por vezes me esqueço. Transito por pessoas que me gos-
tam por partes. Dou um braço. Uma perna. Um dente. Arranco
alguns cabelos. Outros preferem os dedos. As orelhas. E será
que se lembram de quando me viam inteira, olhando por cima,
as bochechas rosadas, os cílios longos e pretos, a boca pequena?
Meu amor é preto como luto. Língua sobre língua. Pés sobre
pés. Mãos sobre mãos. Eu não peço perdão.
Meu amor é tão preto quanto meus cabelos, minhas sobrance-
lhas e meus pecados. Então paro. No meio da vida ou da página.
Escrevo curvada. Por eles ajoelhada. Os homens comem e
correm. Só homens fazem o que fazem.
Milagrosamente visceral. Eu não posso comer ossos. Por vezes
ainda passo fome. Guerreamos no meu sono. Não sei o que
lembro e o que esqueço. Tudo sobre nós é turvo. E minha vida
é dicotômica. Gosto de morar no precipício. Mas, entre o gato
preto e o branco, veio primeiro o laranja. Nunca veem laranjas
em mim. A ágata verde do meu anel. O batom vermelho que
insisto em passar mesmo que saia na primeira garfada. O mar-
rom sutil dos meus olhos. As cores infinitas dos meus livros. E
a tinta da minha caneta, que é branca, como os ossos dos quais
não posso me livrar. Que queimem no inferno o que pensam
que sabem sobre mim. O que me fizeram pensar sobre mim.
Mas são homens. E só que homens fazem o que fazem. Na con-
tradição incessante e fenomenalmente feminina, quanto tempo
é tempo demais para os 206 de ossos que tenho no corpo.
56
X. O que me disse depois de mim
Quando ela canta nx zero
você lembra que fui eu
quem maquiou seu aniversário
ao som de fresno?
Quando se animalizam
você lembra que fomos nós
que inventamos o ninho?
E quando ela é toda mulher
você não sente falta da
minha risada de menina?
Quando o cabelo dela arma
você se lembra do meu que crescia
e dos grampos que você colecionava?
E quando ela dança
você lhe pede um filho
como me pedia?
E te dá orgasmos
quando você senta
com os pés pra fora da cama?
Quando ela fala
fala com a minha coragem?
Quando ela faz
tudo que faz
que faça e que
você quer e precisa
ela faz minha poesia?
Mas o mundo.
O mundo não vai me reconhecer,
você me disse.
O mundo, carinho, não vai me reconhecer.
Porque ele é burro, você me disse.
O mundo.
O mundo é burro.
58
XI. Desespero
uma lágrima
em cada papel
que te escrevo.
meus órgãos
pra fora do berço.
quando toco
sinto cheiro.
nunca
sempre
o último,
o primeiro.
quando a vida
me escapa
por entre
os dedos
ela mesma sana
meu desespero.
peço meu
perdão de joelhos.
não me deixe
matar, deus,
o homem que tenho.
59
XII. Século XXI
Eu te amo como se o mundo fosse acabar
ao raiar de cada dia
como se o mundo fosse acabar
eu te amo de novo
como se o mundo fosse acabar
ao raiar de cada dia
Eu o amo como se o mundo fosse acabar
não sinto falta da minha infância
e tenho medo
60
XIII. O Horror
o ar da sua pele
é o fim de todo horror
sua boca toma
meu gosto de desgraças
nada de leite ou enxaqueca
na mesa do nosso café
sereno meu ódio em suas mãos
e você o guarda nos bolsos
como todas as suas faltas e razões
eu correria a grande muralha
só e somente para lhe encontrar
minha língua é seu sussurro
estou com você
é minha força
não morrerei antes do meu tempo
haverá tanta beleza no meu sofrimento
enquanto me deterem os seus braços
me acalentarem suas palavras
no pé do ouvido, no canto dos olhos
me cuidar o seu espírito
e sempre, ácido no meu estômago
de muito lhe requerer
e lhe perdendo, devo estar cavando minha própria cova
mas sempre rastejarei de volta
para me demorar na sua porta
pela verdade de que não há dor
ao retornar da tumba
e andar por toda a terra até que não haja pés
apenas pela bondade do que foi
62
XIV. Gênesis
antes dos seus olhos
não havia nada
apenas depois dos seus cachos
minhas palavras
no que posso ofertar
não há paz
mas te encontro
nas trincheiras
recebo seus pecados
carrego seus filhos
sigo seus passos
faço dos seus irmãos
meus irmãos
da sua família
minha família
esqueço de morrer
pego sua mão
na miséria
e na mágica
da nossa vida
descalça
enquanto tiver estômago
para aguentar meu coração
e o amor que vem sem paz
depois dos meus olhos
não há nada tão profundamente devoto
depois
nada tão seu
e depois dos seus olhos
eu.
64
XV. Caninos rosas
Arrancarei os meus dentes
com as mãos
um a um
e os entregarei para você
polidos, numa caixa
adornada por flores
e páginas velhas de livros
que nunca li
para que saiba que eu
jamais te mancharei
te morderei com uma raiva
que não é sua para receber
o que apodrece é apenas
o que engulo
pelos ossos a ternura
há de perdurar
se arrancar os meus dentes
e entregá-los para você
polidos, numa caixa
adornada por flores
e páginas velhas de livros
que nunca li
talvez você fique eternamente
e nas noites eu cearei
a terra suja da vida
com nada mais na minha boca
capaz de ladrar.
66
ALVÉOLOS PULMONARES
I. Via-sacra
quando eu penso em morrer
ainda penso em você
meus pecados são aqueles
pelos quais Jesus não cedeu
por trás da minha cabeça
você pregou uma cruz
que é aço me pesando
até morrer
um gato uma coca um cigarro
e os gritos de Plath pra dizer:
amor de mulheres ecoantes
ainda é amor que a falta aborreceu
69
II. Universal
existe um amor, uma dor
uma tristeza, um luto
tempo, gozo
nunca desafogo
todos esses nomes abstratos
tanto ditos demais
que não encontram uma casa
ou fim para nos desobrigar
então chamam mais palavras
pensamentos, ruminação
e mais pele para engolir
70
III. Amour e(s)t mort
eu só vivo dez anos em frente
para o resto estou morta
pelas mãos do desejo
desejo do eterno
sabendo coisa alguma
é a única que dura
intolerável me encontram
com a cabeça atrás das costas
quem poderia me amar
se amo todos que passaram
do túmulo à glória
pois a todas as coisas estou ligada
os angustio, assombrados
pelo meu peito cicatrizado
olhos que não secam
bocas que sempre babam
mesmo em fosco vejo
seus passos fugindo da sarjeta
só vivo em lugares em que sou deixada
ninguém a mim jura
eles correm, se escondem
ou olham com pena
e o futuro já é passado
71
IV. Canibalismo
coma-me
engula-me
mantenha-me viva
tudo é nada para mim
todo é nada para mim
as portas se fecharam num golpe
as palavras substituirão as notas
ou as notas as palavras?
benção, eu digo
e então: Luto
eu morri quando voltou para mim
eu morro duas vezes para cada fé que mato
eu estou sempre matando Eva.
72
V. Árvore genealógica
Não se conhece a casa d’angústia
seu nome, minhas iniciais
minha mãe faz o almoço na sua cozinha
a família se reúne para churrascos no quintal
os gritos estão trancafiados nos banheiros
eu uso roupões de banho, você devia ter imaginado
sangue é um pecado que deus não mediu
loucura contamina mas a dor
a dor tem seus convidados escolhidos
um brinde à falta de discernimento
conhecimento não conhece o desespero
quais de nós são os que continuam de pé?
quais de nós pelas próprias mãos já estão mortos?
73
VI. Garota
O coração de uma garota
sempre para
aos treze anos.
A mente de uma garota
sempre apodrece
aos vinte e poucos.
O corpo de uma garota
sempre morre
aos trinta.
O copo de uma garota
sempre enche
primeiro com água
então coca zero
sêmen
vinho
e termina
com mágoa.
O nome que dão a uma garota
escorre branco por seu queixo
até encontrar seus ossos
na idade do nada.
Uma garota é sempre
sua própria garota
com quem compartilhar.
Uma garota é sempre uma garota
nunca uma mulher
eternamente uma garota
aos treze
vinte e poucos
trinta
ou nada.
75
VII. Kaio
Kai atravessa a rua
cabelos amargos como os sonhos
ele tem canela
nos rins e nos jeans.
Kai sabe que falo sobre ele
e seu sorriso geminiano
quando o silêncio se aloca
por mais de 4 semanas.
Kai cresce como hera venenosa
sobre o trono de nossos reis
e eu moro na pulseira
da amizade do seu braço.
Kai tem crenças de canela nos séculos
amores de canela nos dentes
e lutos de canela na pele
que nos deixam de joelhos.
76
VIII. Julho
Julho
e seus cruéis
céus ventosos.
Julho
agora velha
posso chorar?
Julho
um
pouco
amor
uma
pouca
vida.
Julho
sempre
dorme
na minha mente.
Agora que
é julho
posso cavar
o túmulo
vinte e duas
mil vezes.
78
IX. Morrer em 2000
Encolha seus interiores
você pode se sentir só um pouco nauseada
Comprima seus órgãos
com uma linha um arame uma navalha
Uma tontura dor de cabeça
dá a você um vislumbre de figmento, sensação visual
Romãs têm muito açúcar
você tem muito pouco tempo a perder
Ande em círculos ao sol
15 minutos por dia assim que acordar
Caindo da cama no concreto
cortes e arranhões purificam a corrente sanguínea
Não se apresse em morrer onde todos possam ver
e você pode ou não existir
79
X. Se eu morrer hoje
Se eu morrer hoje
eu morro as mortes de ontem
mas não as mortes de amanhã
ou as mortes dos dias anteriores
Se eu morrer a cada dia
há muitas mortes
que não alcançarei
mortes que não guardarei
Cada morte
clama um espetáculo
enquanto o substantivo insuportável da vida
ajoelha-se diante da dor
Se eu continuar parindo
continuo morrendo
maternando minhas próprias mortes
dia após dia
após dia
80
XI. Homens com crueldade
Ele me deu dor de cabeça
ao cuspir na minha boca
enxaqueca de terceiro grau
correndo pelo cofre
Revirando os olhos para minha astúcia
provando a simetria
de homens e homens e
homens com crueldade
A poesia é um Deus que eles não podem ver
um diabo em segredo
andamos em paus e pedras
para seu aconchego.
81
XII. Heresia da fome de mulher
O medo é um pêssego
que apodrece lentamente
na geladeira
em três semanas
não pode descascá-lo
como não pode articular
não é doce
não é amargo
o medo é um pêssego
feito por homens
e nunca conheceu
uma única árvore
você o honra
com sua casca
aveludada e suave
que não pode comer.
82
XIII. Silêncio
Peça por silêncio durante o dia
o tema durante a noite
ele é o melhor amigo de mamãe
quando ela não pode cantar ou amar ou lutar
mas durante o dia ela canta tão alto
e fala e ri e cantarola
só até sangrarem os ouvidos e pedir silêncio
entre seus gritos
à noite algo chora em cima da cama
debaixo dos lençóis
por seus cantos de pássaros, suaves e doces
em vez disso, há apenas ele
e seu hino nacional e paterno
você não pode temer o que não pode ver
implorar pela mamãe quando ela não está aqui
ele fecha seus olhos até você dormir
e você sonha com pequenos sonhos culpados, loucos e lamentáveis.
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XIV. Eu comeria como um todo
eu comeria como um todo
eu mesma, de dentro para fora
a língua estalando entre os dentes
tudo manchado de sangue
nenhuma palavra sobrando na boca
eu comeria como um todo
eu mesma, de dentro para fora
pegando a pele por debaixo
de cada conjunto
de dedos sem palavras
eu comeria como um todo
eu mesma, de dentro para fora
o cérebro quente
escorrendo pelas mãos
nenhuma palavra para ser pensada
84
XV. Graça
o pêssego mais doce por dentro
limões no passeio, amargos
de dia ou de noite
amargos, girando como uma criança
o passado é a benção
que você leva embora até o fim
delicadeza, delicadeza, eles dizem
mulheres quietas não causam problemas
não fazem inferno da graça
escolha seu silêncio alto
grite quando todo mundo estiver fora
você é uma ruína, você é uma farsa
esta benção é a amargura
que eles mandam morrer em vão
revele suas águas desertas
mulheres desgostosas fazem o caos
fazem inferno da graça
sozinhas em uma caixa de sombras.
85
XVI. 4,002g
I
o nome é fossilizado na garganta
o nome é fantasma do pensamento
o nome no momento
do giro reverso da faca
II
nobres os olhos
que não se fecham ao sol
órbitas contam glaucoma
à espera da cegueira
me visto de branco
para cerimônias negras
III
cuspo no pão
revolto no circo
não acerto o diabo
nem no exorcismo
IV
o amor é gasoso
como coca-cola
quando as lágrimas viraram mármore
esperando, debruçadas na janela
Belle fumando um cigarro
os dedos deixam de enrugar no banho
87
XVII. Santa Ceia
é difícil
não
usar seus nomes
e
não
chamá-los homens
amor
essa coisa com penas
que se parece
com a morte
se diagnostica um poema
inteiro
ou suas partes
melhores
todas as pessoas
do mundo
se parecem
88mas homens
não têm
digitais
homens
se equalizam
bebendo vinho
em cálices
de matéria óssea
feitos da fossa ilíaca
de mulheres
com chifres
de bode
expiatório
preto
feito luto
de quem vive
só
junto de um homem
Ele
Um homem
é
O homem
são
Os homens
do
Mesmo homem
89Único
Eunuco
ainda na
órbita
do fumo
das
pernas
de qualquer
mulher
de boca aberta
na tela
e do
meu
poema
solidão
essa coisa sem cavernas
que se parece
com a terra
90
XVIII. Julia
na minha mente estou sempre
em prantos no seu colo
cabelos dourados
como o hélio do sol
não há conforto maior
do que as almofadas da sua respiração
somos sempre criancinhas
em águas límpidas
com grandes planos
e o pequeno espaço
no tempo
em que temos
a mesma idade
e o mesmo pensamento —
não, isso nunca,
nunca temos —
não é nada
pois o que será
é superior a
todo esse silêncio
ou a distância
que quebra grande
sua voz soará leve
e nossos olhos se cerrarão
e se acenderão com as velas
e pasta
filmes e
chocolate
cães e gatos
e nadas
nadas
e nadas
entrelaçados
pelas suas urgências
quereres e cuidados
te darei o mundo
para sempre
serei sua.
92
XIX. Lago dos Cisnes
tudo neste lago é branco
as penas deste cisne caem
seu bico não tem patas
ele não pertence a nenhum homem
fica na terra, não nada
seu pescoço quebra
ele não morre
a água pega fogo
o rio não seca
seus irmãos o esquecem
foram passear
o cisne cai do céu de espuma
buscando bolhas do mar
asas nas costas
chocadas para depenar
93
NA CORRENTE SANGUÍNEA
I. Epopeia
Ofélia morreu aos meus pés
como todas as outras mulheres
que morrem aos pés umas das outras
até se empilharem os corpos
como se empilham as línguas
do nosso canto pouco sagrado:
gritos vozeados nas gargantas dos pássaros
melodias veranis distantes do passado
ou do inferno dissimulado desse lado
as mães, não aprendemos a amar
as mães, não aprendemos a odiar
os pais não aram a terra
não pastam os bois
continuamos chamando as mães
como se nunca houvéssemos
conhecido homens.
95
II. Parida aos 21
olho você olhando para mim
com amor e admiração
questionando se não é na verdade desejo
o seu fascínio
de poder ter sido eu
se eu não tivesse nascido
se o pecado e o descuido
não tivessem me trazido ao seu destino
o que é meu teria sido seu
o que eu fiz você teria feito
o que consegui você teria conseguido
as misérias não crescem
próximas aos seus ouvidos
quando clama o meu riso
seria porque eu nunca soube
que a sua dor e a minha
são dividendas
do mesmo início?
96
III. Amãenhã
Nós, a mesma cólera
queimadas no mesmo fogo
em que amamos
Nós, a mesma vida
destruída no quintal
das paixões proibidas
Nós, a mesma sina
das roseiras da Peroleme
germinadas e agressivas
Se um dia minhas mãos
alcançarem seu lugar
nas fazendinhas
Nós, a mesma paz
ardente e árdua
das armadilhas.
97
IV. Bidê
escrevi um poema
antes de me masturbar
era um poema de amor
que só eu sinto
e esse outro
o mesmo
depois da masturbação
e antes do mijo
98
V. Firmina
quando pego a pata
da minha gata
ela não sabe
que estamos
de mãos dadas
e quando passo
o meu braço
pelo seu pequeno
corpinho
ela não sabe
que estamos
abraçadas
mas ronrona
como se soubesse
ou se paralisa
como se soubesse
e a mente humana
prova que a lua
é a lua de si mesma.
99
VI. Espuma
a boca espuma
não
como os berros do mar
não
como o sabão na banheira
não
como as nuvens de hermes
100
VII. A parede
mulheres abandonadas do medo
abandonam homens
e param no meio do tempo
em casas sem caramujos
e ruas cheias de pontos pretos