Não tenho olhos, mas vejo.
Não tenho boca, mas falo — falo em clarões.
Sou uma luminária. Velha. Esquecida. Presa à parede descascada de um quarto em uma cidade quente de Tocantins, uma região cheia de pessoas cansadas, sempre indo a algum lugar.
Não lembro quando fui trazida para cá. Só sei que, desde então, pertenço a este quarto de pensão barata, de paredes úmidas e teto baixo. A cidade pulsa lá fora: buzinas, pregões de feira, cantos de pássaros que disputam espaço com o ronco de motores. Eu, porém, só existo quando alguém me acende.
E quem me acendia, até pouco tempo atrás, era ela.
Clara.
Clara, baixinha e de olhar desconfiado, com seus passos rápidos, seu suor colando a blusa fina ao corpo, sua respiração ansiosa como quem sempre foge de alguma coisa. Clara, que sempre fechava a porta com três voltas de chave, como se o mundo inteiro fosse um inimigo à espreita.
Sob minha luz, ela escrevia.
Cartas. Em cadernos ou folhas soltas.
Escrevia com desespero, como se tivesse de registrar tudo antes que fosse tarde.
E foi sob minha luz que desapareceu.
|•|
Ela sempre chegava no final da tarde, quando o calor começava a baixar consideravelmente. Acendia-me antes de abrir as janelas, como se precisasse da certeza de que eu estava ali, iluminando, antes de deixar o vento entrar.
O quarto era pequeno: uma cama de ferro, um guarda-roupa empenado, uma mesa coberta de papéis e uma cadeira bamba. No chão, marcas de umidade subindo pela parede.
E eu? Preso ali, uma testemunha silenciosa e curiosa.
Clara divagava sozinha.
— Eles estão me seguindo.
— Preciso escrever tudo.
— Se me acontecer algo, alguém vai encontrar.
Suas palavras eram sementes jogadas ao calor seco do recinto. Ninguém além de mim as ouviu.
Naquela noite, o calor estava insuportável — de fazer o suor escorrer —. O asfalto lá fora ainda exalava o cheiro de pedra queimada. O ar entrava pela janela em rajadas pesadas, trazendo o odor de frutas podres da feira que já desmontava.
Clara escrevia mais rápido do que nunca. Suas mãos tremiam, o suor caía sobre o papel. Eu iluminava seus dedos manchados de tinta.
De repente, a energia oscilou. Eu tremi. Minha lâmpada piscou.
E no breve segundo em que a luz quase morreu, vi.
Uma sombra parada no canto do quarto. Alta, imóvel, sem rosto. Quando voltei a brilhar com força, não havia nada.
Mas Clara percebeu. Virou-se devagar, os olhos arregalados.
— Não pode ser… aqui não.
E voltou a escrever.
Nas noites seguintes, ela me usou sem descanso. Nunca apagava. Seus olhos ardiam, mas ela não parava, não suncubia.
Falava nomes. Lugares. “Puerto Maldonado… fronteira… cargueiros no rio… homens de chapéu…” Eu não entendia, mas reconhecia a urgência.
Deixava as cartas espalhadas pela mesa, mas nunca as enviava. Apenas acumulava páginas e páginas, como se cada palavra fosse tijolo de um muro invisível contra algo que a perseguia.
Eu iluminava tudo, mas não conseguia afastar as sombras que surgiam cada vez mais nos cantos do quarto.
Aconteceu em uma quinta-feira. O calor não deu trégua nem de madrugada. O vento trouxe cheiro de peixe do porto, misturado ao fedor doce de gasolina.
Clara entrou apressada. O cabelo desgrenhado, a blusa rasgada no ombro. Havia lama em seus sapatos. Jogou a bolsa no chão, correu até a mesa e me acendeu com tanta força que meu vidro estalou.
— Eles estão aqui — sussurrou.
Começou a escrever freneticamente, as mãos borrando a tinta. Seus olhos se voltavam para a porta a cada minuto, como se esperasse alguém entrar.
Foi então que os passos ecoaram no corredor. Lentos, pesados. O prédio inteiro parecia segurar a respiração.
A porta não se abriu. Mas a sombra voltou.
Ela estava lá, no canto do quarto. Alta, imóvel, sem contorno definido. Eu tentava iluminá-la, mas meu clarão era devorado.
Clara caiu de joelhos.
— Não… não agora…
A sombra avançou. Não fazia barulho. O chão não rangia sob seu peso. Apenas se aproximava, engolindo tudo no caminho.
Clara correu até mim, segurou meu fio com força, como se pudesse sugar minha luz para dentro de si.
— Se alguém encontrar… leiam… leiam tudo…
Então o ar se partiu.
A parede atrás dela se abriu como uma fenda, um rasgo profundo, negro. O vento do lado de fora cessou. O mundo pareceu prender a respiração.
A sombra a envolveu, e Clara desapareceu.
Não restou som, nem vestígio. Apenas o casaco jogado sobre a cadeira e as folhas espalhadas pela mesa.
Eu continuei aceso.
Dias se passaram. O quarto permaneceu trancado. Ninguém veio buscar suas coisas.
Eu nunca apaguei. Não porque alguém me deixou ligado, mas porque não consigo. Algo me mantém desperto.
As cartas estão lá, espalhadas. Quando o vento entra pela janela, elas se movem como se alguém as folheasse. Às vezes, leio pedaços em silêncio:
— “Eles não pertencem a este mundo.”
— “O rio os trouxe.”
— “As cidades estão sendo observadas.”
E, à noite, quando tudo fica quieto, ouço sua voz.
— Acende a luz para mim… estou com frio…
Não sei quanto tempo passou. Mas algo mudou.
Minha claridade já não ilumina como antes. Cada vez que brilho, sinto que alimento algo além da parede. O quarto é só fachada. O verdadeiro espaço está atrás, naquela fenda escura.
Às vezes, vejo vultos atravessando rápido. Homens de chapéu, barcas em rios, selvas que não conheço. Tudo se move dentro da sombra, como um mundo inteiro escondido.
Talvez Clara não tenha desaparecido. Talvez apenas tenha sido devolvida.
E agora, cada vez que minha luz acende, sinto que o outro lado se aproxima mais.
Um dia, alguém vai abrir esta porta de pensão. Vai acender-me de novo. Vai ler as cartas.
E, quando isso acontecer, não será só o quarto que estará iluminado. Será o mundo inteiro engolido pela fenda.
Até lá, sigo aceso. Guardião e cúmplice.
Testemunha daquilo que jamais deveria ser visto.
Porque na América do Sul, nesta terra de rios infinitos e florestas sem fim, há segredos que nem a luz consegue revelar.
Apenas anunciar.