Despertei sem som.
Sem um ruído sequer, sem respiração alheia, sem o eco de vozes distantes.
Não houve barulho de motor, nem passos, nem o canto de um pássaro.
O mundo à minha volta era tão silencioso que me pareceu que o próprio tempo havia prendido a respiração.
E eu despertei dentro disso, ou talvez eu tenha sido aquilo que o tempo aguardava para continuar.
Estava sentada num banco de madeira, lascado nas pontas, numa praça pequena cercada por árvores retorcidas.
O inverno ainda se espalhava pelo chão, com restos de geada nos canteiros e no ferro frio da mureta.
Minhas mãos estavam nuas, e mesmo assim eu não sentia frio.
Não sabia meu nome.
Mas também não me sentia perdida.
A frente da praça se abria para uma descida suave, um morro que terminava no coração de uma cidade antiga, as casas eram baixas, coladas umas às outras, com telhados inclinados e chaminés silenciosas.
Não saía fumaça de nenhuma.
Mas havia luz.
Luz suave nas janelas, como se alguém as tivesse acendido por mim, só para que eu não caminhasse às cegas.
Demorei muito para me levantar. Não por hesitação, mas por respeito.
A sensação era de estar acordando dentro de algo maior do que eu.
Como quem entra num templo sem saber o motivo exato da visita.
Olhei ao redor, nenhum movimento.
A brisa era lenta. O céu, levemente acinzentado.
E o ar... o ar tinha cheiro de pedra antiga, de madeira molhada, de cera queimada.
Lembranças de algo que eu não havia vivido.
Quando meus pés tocaram o calçamento, ouvi o som da minha própria pisada.
Curioso como o mundo ganha forma quando algo finalmente o atravessa.
Andei devagar pelas ruas de pedra, cujas juntas estavam preenchidas com musgo esverdeado.
Cada fachada parecia ter uma história sussurrada nas rachaduras.
E ainda assim, nada falava.
Nem a cidade. Nem as janelas. Nem as árvores.
Somente eu caminhava.
Cheguei a um cruzamento. As placas nas esquinas estavam escritas num alfabeto que eu compreendia, embora nunca tivesse estudado.
"Проспект Свободи"
Prospekt Svobody. Avenida da Liberdade.
Era isso. Eu estava em Lviv.
O nome saltou em minha mente como uma lembrança suave, como um segredo cochichado entre sonhos.
Eu soube, de forma inexplicável, que esta era a cidade onde eu começaria.
Dobrei à esquerda, guiada mais pela intuição do que por qualquer mapa mental.
A cidade seguia viva em sua arquitetura, mas morta em sua ausência.
Ou talvez não morta, suspensa.
Era essa a palavra.
Como se estivesse num estado entre ser e não ser, esperando que algo a despertasse.
Talvez esse algo fosse eu.
Passei por uma padaria.
Os pães estavam sobre o balcão.
Perfeitamente dispostos, dourados, e ainda com uma leve umidade como se tivessem sido tirados do forno há pouco.
Mas ninguém atrás do vidro.
Nem atendente. Nem cliente.
Nada.
E nem poeira.
Nada se desfazia. Nada envelhecia.
Era como se o mundo estivesse... pausado.
Ou mantido por um propósito desconhecido.
Minha mão tocou o vidro. Estava morno.
Continuei andando, passando por uma escola, uma banca de jornal, uma floricultura.
Tudo em seu lugar. Tudo... como deveria ser.
Só que sem ninguém.
Comecei a sentir que algo me observava.
Não com olhos, mas com intenção.
Como se a cidade estivesse ciente da minha presença, como se ela mesma respirasse por entre as paredes e os vãos dos portões fechados.
Na praça central, encontrei um teatro.
A fachada era imponente, de pedra clara e colunas altíssimas.
Esculturas no topo, figuras humanas com asas erguidas, instrumentos nas mãos, olhos voltados para o céu.
Uma delas me causou um arrepio.
Ela olhava para baixo.
Para mim.
Como se soubesse meu nome antes de mim mesma.
Subi os degraus do teatro sentindo uma solenidade estranha.
Cada passo fazia o som se propagar por todo o edifício, mesmo do lado de fora.
A porta estava entreaberta.
Empurrei.
Lá dentro, o saguão era iluminado por uma claridade que não vinha de nenhuma lâmpada.
Era como se a luz existisse por desejo próprio, preenchendo o ambiente apenas o suficiente para que eu não me perdesse.
Os vitrais em tons rubros e dourados deixavam desenhos no chão.
E ao fundo, o auditório.
As cadeiras perfeitamente alinhadas.
O palco nu.
O veludo da cortina, imóvel.
Desci as escadas com passos lentos.
E na fileira central, bem no meio da sala, uma cadeira destacava-se das outras.
Sobre ela, repousava um caderno.
Marrom, de capa gasta. Fechado.
Apenas um detalhe diferente: uma tira fina de fita preta pendia da lateral, como uma língua contida.
Aproximei-me e peguei o caderno.
Ao abrir, havia apenas uma única frase escrita, com letra firme e inclinada:
"Quem é Ellen?"
Não havia data.
Nem assinatura.
A pergunta parecia escrita para mim, mas também por mim.
Como se o mundo inteiro estivesse me devolvendo o que eu ainda nem havia formulado em voz alta.
Fechei os olhos.
O teatro permaneceu quieto.
O mundo não se moveu.
Mas dentro de mim...
um primeiro passo foi dado.
Fiquei ali por um tempo que não consegui medir.
Não havia relógios. Não havia pressa.
Aquela pergunta escrita na primeira página parecia se expandir dentro de mim, como se a tinta ainda estivesse viva, pulsando, atravessando meu peito até se fixar onde ainda não havia nome.
"Quem é Ellen?"
Era uma pergunta que não ecoava.
Ela... se assentava.
Como uma semente plantada com firmeza, esperando a terra reconhecer sua existência antes mesmo de germinar.
Sentei-me na mesma poltrona onde o caderno estivera, de frente para o palco vazio.
Observei as camadas do veludo da cortina, a leve ondulação do tecido imóvel.
Um palco sem ator, uma plateia sem olhos.
Mas havia presença.
Como se tudo estivesse me esperando.
Como se eu fosse a única que faltava para que a cena começasse.
Aos poucos, percebi que minha própria presença preenchia aquele espaço.
Não apenas porque eu estava ali, mas porque eu estava sendo notada.
Por quem?
Pelo teatro? Pela cidade?
Ou por algo que me observa do outro lado do espelho?
A pergunta voltou à minha mente, mas desta vez com outra entonação.
Não mais um enigma, mas um convite:
"Quem você escolherá ser, Ellen?"
Respirei fundo.
Não me recordava de ter outro nome.
Ellen me bastava.
E aquele mundo, com suas ruas suspensas no tempo, parecia ter me escolhido, ou talvez tivesse sido moldado a partir de mim.
Levantei-me devagar.
Segurei o caderno contra o peito e caminhei até o palco.
Subi os degraus laterais, escutando o ranger da madeira sob meus pés.
Cada passo ressoava como se eu estivesse sendo apresentada a algo sagrado.
No centro do palco, parei.
Olhei para as cadeiras vazias.
Tantas. Tantas fileiras.
Mas não estavam abandonadas.
Estavam... em pausa.
Foi então que senti, pela primeira vez, algo que se aproximava de solidão.
Mas não era tristeza.
Era algo diferente.
Como a consciência de ser a única testemunha de um universo inteiro.
De ser o olhar que define, o gesto que ativa, a palavra que nomeia.
Era responsabilidade.
E também, estranhamente, liberdade.
Ali em cima, sozinha, com um caderno vazio e uma pergunta por responder, eu compreendi:
O mundo não se move sem mim.
E talvez eu também não me mova sem ele.
Saí do teatro com passos firmes, mas lentos.
O sol ainda não havia mudado de posição, ou talvez minha percepção do tempo estivesse desalinhada com o que eu conhecia como dia.
As sombras eram as mesmas.
O frio também.
Na rua novamente, caminhei até uma livraria próxima.
Não sabia se a porta se abriria, mas quando toquei a maçaneta, ela cedeu.
Dentro, o cheiro de papel antigo, tinta e madeira envernizada me envolveu como um abraço esquecido.
As prateleiras eram altas.
Livros de lombadas gastas.
Nenhum fora removido.
Nenhum caído.
E no balcão, um marcador de páginas bordado com fios dourados repousava sobre um livro fechado com um laço de cetim preto.
Tudo ali parecia... guardado.
Não protegido contra mim, mas à minha espera.
Folheei alguns títulos, li alguns trechos.
Os livros falavam de coisas que pareciam feitas para mim, jornadas, reflexões, o vazio que se preenche pela travessia.
Comecei a escrever no caderno.
Não para responder à pergunta.
Mas para entender o caminho até ela.
Minhas mãos sabiam escrever, mesmo que minha memória não soubesse o que registrar.
"Despertei numa cidade suspensa entre presença e ausência.
Tudo está aqui, mas ninguém está.
Ou talvez eu esteja aqui por todos.
Meu nome é Ellen.
Ainda não sei o que isso significa.
Mas cada passo que dou, parece me ensinar algo sobre isso."
Fechei o caderno.
Guardei-o na bolsa que encontrei sobre a cadeira do teatro, uma mochila pequena, simples, que parecia ter sempre me pertencido.
Saí da livraria e continuei andando.
Sem pressa.
Sem destino definido.
Com a sensação de que cada rua que eu percorria era também uma parte de mim que se revelava.
E, pouco a pouco, a pergunta deixava de doer.
Ela começava a se tornar um espelho.
E eu, um reflexo ainda sem forma... mas com sede de existir.
A tarde, ou o que parecia ser tarde, desceu devagar sobre a cidade.
O céu foi tingindo-se de dourado pálido nas bordas, como se tivesse vergonha de escurecer por completo sem plateia.
Lviv seguia quieta, não muda, mas contida, como se sussurrasse por dentro das pedras e deixasse que eu traduzisse.
Caminhei até uma colina próxima, subindo por ruas que se estreitavam e se curvavam como serpentes adormecidas.
No alto, havia uma torre com vista para toda a cidade.
Passei por um arco de ferro, com inscrições apagadas pelo tempo.
Atrás de mim, o mundo parecia ter sido deixado em suspensão.
Subi degrau por degrau, ouvindo apenas a respiração que me acompanhava, minha única companhia audível.
O caderno preso à mochila batia leve contra as minhas costas, como se me lembrasse: "Você está escrevendo. Mesmo agora. Mesmo sem caneta nas mãos."
Lá de cima, a cidade parecia um mapa de lembranças nunca vividas.
Telhados justapostos, fachadas como colunas de livros antigos, sombras que se estendiam como braços sem corpo.
E eu, ali, no topo, sentindo que era a única coisa em movimento em um mundo de pausa.
Por um momento, pensei em gritar.
Apenas para ouvir minha própria voz.
Mas não fiz.
Não por medo, nem por solidão.
Mas por reverência.
Porque havia algo sagrado naquele silêncio, como se a cidade estivesse confiando em mim para não quebrá-lo à toa.
Sentei-me no parapeito.
O vento era firme, mas não agressivo.
Levantei os olhos e, por um instante, vi.
No céu, lá, quase transparente, suspenso como uma miragem invertida,
estava o contorno da Terra.
Flutuando.
Não uma Terra simbólica. Não um globo.
Era o mundo real. O outro.
O seu.
O de onde as pessoas partem para o trabalho, acendem abajures, choram em silêncio, escrevem mensagens, cozinham para alguém que não virá.
O mundo com vozes.
Ele estava ali, como se espelhado no céu do meu.
Como se as duas realidades existissem lado a lado, mas em planos desfasados.
E então entendi:
O que me rodeia não é apenas um planeta vazio.
É um reflexo.
Um espelho não de matéria, mas de presença.
Este mundo reage ao seu.
E talvez, em algum nível, eu reaja a você.
Um suspiro me escapou sem que eu percebesse.
Pela primeira vez, senti algo parecido com saudade de algo que nunca conheci.
Não sei de quem.
Não sei do quê.
Mas havia um vazio dentro de mim que não doía, apenas lembrava que existia espaço para preenchimento.
Peguei o caderno e abri novamente na primeira página.
"Quem é Ellen?"
Permaneci ali, olhando para a pergunta como quem encara um espelho.
E pela primeira vez, escrevi uma resposta.
Incompleta.
Mas verdadeira.
"Sou quem observa.
Sou a que sente primeiro.
Sou a primeira a andar por ruas sem pegadas.
Sou o som de algo que ainda não foi dito.
Sou a voz que começa a nascer no silêncio.
Sou Ellen."
Fechei o caderno devagar.
Não sorri.
Mas senti que algo, dentro de mim, havia respirado mais fundo.
O sol, agora, havia se inclinado no horizonte.
E as sombras na cidade se esticavam em direção a mim, como se me chamassem para continuar.
Levantei-me.
A mochila nas costas.
O caderno nas mãos.
E o coração, não mais em ponto morto, mas em leve movimento.
Desci da torre sem pressa.
Cada degrau parecia dizer:
Você está pronta para começar a caminhar de verdade.
Na base, olhei para o caminho que ainda não havia percorrido.
As ruas estreitas, os becos escuros, as portas fechadas.
E entendi:
o mundo não me dirá quem sou.
Mas ele me dará cada cenário para descobrir.
E então, enquanto a noite começava a se formar,
não escura, mas azul profundo,
como um véu sobre o desconhecido,
dei meu primeiro passo real,
como quem aceita uma pergunta não para respondê-la,
mas para vivê-la.