“Amor não se conjuga no passado. Ou se ama para sempre, ou nunca se amou verdadeiramente.
Fernando Pessoa
“O amor verdadeiro é como uma pedra preciosa, é raro você encontrar, mas não quer dizer que ele não exista.”
John Lennon
“Finalmente entendi o que o verdadeiro amor realmente significa. Amar significa pensar mais na felicidade da outra pessoa do que na própria, não importa quão dolorosas tenham de ser suas escolhas.”
John Tyree
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Não posso mais adiar a tarefa de narrar a bela e comovente história dos meus queridos amigos Anabelle Marsala e Augusto César, um projeto que tenho há algum tempo, mas que vinha procastinando por desânimo e falta de tempo. A verdade é que estou ficando velho e com medo de morrer (meu coração não anda lá muito bem), e acho que tenho que me sentar e colocar tudo do papel antes que seja tarde; devo isso a eles e a mim.
Ao longo dos anos, nossos caminhos se cruzaram e se afastaram muitas vezes, mas eu nunca perdi o contato com eles, principalmente com a Anabelle, que conheci um pouco depois de ela chegar ao Brasil, décadas e décadas atrás, em Paraty. A história deles me ajudou a compreender um pouco melhor o que é o amor, e isso me levou a descobrir que eu nunca amei de verdade, apesar de várias paixões, um casamento e muitas companheiras que tive na vida.
Mas eu sou um escritor e jornalista, um eterno curioso sobre os mistérios da existência humana, e o fato é que tiramos da vidas dos outros e da nossa o material de nossos livros. A conturbada história de Anabelle, Augusto e Laura Maria já mereceria ser narrada por si só, mas, como mencionei antes, ela me ajudou a entender um pouco melhor a tragédia do amor e a elaborar e elaborar uma tese que batizei de “Uma Teoria Sobre o Amor Verdadeiro. Apresentá-la é a principal razão de escrever este livro.
Muitas partes desta narrativa foram romanceadas livremente, já que eu não poderia ter estado presente em todos os momentos aqui narrados, mas a trama segue bem próxima do que aconteceu na vida real. Todos os nomes foram trocados, por respeito à privacidade de alguns personagens e também por motivos legais.
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A história de Anabelle Marsalla e Augustos César começou muitos e muitos anos atrás, na época em que eles era dois porra-loucas sem muito rumo na vida, mas cheios de vontade de viver, de sonhar e de tentar realizar esses sonhos. Augusto tinha se formado em engenharia um pouco antes de conhecer Anabelle, mas descobrira no quarto ano da faculdade que errara na escolha de sua profissão, um equívoco que ajudou a definir seu futuro conturbado e sem glórias. Ele chegou a trabalhar um breve período na área, mas, numa decisão impulsiva e irresponsável, jogou sua vida e sua alma para o alto, largou tudo e foi tentar ser artista plástico, um sonho ingênuo que alimentava desde que fizera um curso de pintura junto com uma namorada quando estava no terceiro ano da faculdade.
Após pedir demissão de seu trabalho como engenheiro, ele arrumou uma vaga de professor para dar aulas de matemática e física no período da tarde e começou a viver um teatrinho pretensioso de que era um pintor de verdade. Algum tempo depois, participou de uma mostra coletiva de arte e passou dois anos pintando uma série de quadros que planejava exibir em sua primeira exposição individual, ao mesmo tempo que levava uma vida boêmia pela noite de São Paulo, pela qual tinha fascinação.
O seu plano era fazer sua primeira exposição e depois realizar outro de seus sonhos: viajar para a Europa e passar lá um tempo, trabalhando, visitando museus e pintando, numa verdadeira emulação dos artistas malditos na Paris boêmia do início do século XX.
Porém, um pouco antes de sua exposição de estréia, ele conheceu minha amiga Anabelle Marsala, a famosa e extravagante estilista, o que alteraria completamente seus planos e definiria o restante de sua vida.
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Anabelle e Augusto César se encontraram pela primeira vez numa sexta-feira como outra qualquer, quando ele foi com alguns amigos a uma nova casa noturna que estava fazendo sucesso entre os moderninhos de São Paulo, a Sra. Krawitz (o lugar fora batizado com o nome da vizinha intrometida da bruxinha Samantha do clássico seriado de TV “A Feiticeira”, que fizera parte da infância de toda aquela geração).
Era o início dos anos 1990, os tempos sombrios de Guerra Fria e ditadura haviam ficado para trás, e o momento era de renovação para aquela geração que antes fora existencialista nos moldes punk e dark. O mote agora era celebrar a vida, ser feliz, rir e dançar até o dia clarear ao som da nova música eletrônica, a House, e sua vertente mais pesada, o Techno. As roupas pretas faziam parte do passado, e o lance do momento era juntar os amigos e todos se vestirem de forma extravagante, com produções inusitadas e coloridas, maquiagem pesada e sapatos espalhafatosos, para chamar a atenção mesmo. Quanto mais esquisito o visual, melhor. Essa turma de modernos seria batizada de “Os Clubbers” após uma matéria que saiu na revista Veja sobre a nova moda de casas noturnas de vanguarda na noite paulistana, os chamados “clubs”, apesar de todos nós frequentarmos boates e casas noturnas desde os anos 1970 e 1980.
Então naquela noite Augusto ficou de ir a uma festa na Sra. Krawitz com sua amiga fotógrafa Regina Maia e mais alguns conhecidos. Eles se encontraram na casa dela no Alto de Perdizes, para beber um pouco, e depois da meia-noite se mandaram para o soturno e decadente downtown paulistano, onde ficava o novo club de vanguarda.
Eu estava lá nessa noite e lembro que a boate estava bombando: atores do teatro underground, drag queens, intelectuais, artistas plásticos, marchands, estilistas, modelos, músicos, jornalistas, escritores, traficantes, fotógrafos e produtores de moda, cineastas, Djs, em suma, toda a intelligentsia pretensiosa e moderninha da Paulicéia desvairada estava reunida na Sra. Krawitz para a festa.
No meio da noite, já bastante alegre por causa do álcool, Augusto brincou com uma mulher engraçada que passou ao seu lado, rindo e festejando com um grupo animado que estava indo em direção ao bar, do qual este narrador fazia parte. Um pouco depois, quando voltamos para a pista, ela o puxou pela mão e o levou para dançar
Essa mulher engraçada era minha amiga Anabelle Marsala. Ela estava vestida de forma chamativa (com uma jaquete perfecto de couro roxo sobre um bustiê preto, calças colantes pretas de lamê brilhantes, longos cílios postiços prateados e montada em botas-plataforma muito altas). Os dois dançaram um pouco juntos e depois todo mundo voltou para o bar, onde o resto do pessoal estava bebendo no balcão.
– Bonitão, cuidado com essa gringa, que ela é truqueira... – disse para Augusto o Fran, um amigo maquiador, ao ver Anabelle e seu novo acompanhante juntos.
Todo mundo riu do comentário jocoso, e a seguir Anabelle disse para Augusto, com aquele seu jeito de falar carregado de sotaque argentino:
– E aí, cara, vamos ressolver isso hoxe mesmo?
E todo mundo riu novamente, pois ela fez o convite em voz alta, para que o pessoal ouvisse mesmo.
Mas a essa altura a turma que viera com Augusto já estava querendo ir embora, e ele achou melhor deixar aquele convite para outro dia. Anotou o telefone de Anabelle num guardanapo de papel e ficou de ligar para combinar algo nos próximos dias.
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Se fosse necessário descrever uma pessoa com três adjetivos, Anabelle seria “brava”, “viva” e “louquinha”. Que ela tinha um parafuso a menos, isso todos nós sabíamos, mas era difícil dizer exatamente do que se tratava sua loucura. Às vezes, ela era prática e lógica, em outras, completamente incoerente, com um raciocínio ingênuo e infantil, o que se somava à sua graça natural e seu jeito de criança. Também havia momentos em que ela ficava completamente fora de controle, tomada por uma raiva terrível, jurando vingança, mas logo se acalmava e ria:
– Soy uma capeta... hi, hi, hi – era sua explicação para seu gênio um pouco esquentado.
Para se ter uma ideia de seu jeito diferente de ser, certa vez, quando fomos ensaiar com nossa banda post-punk numa quebrada nos confins da zona norte de São Paulo, um cara armado na entrada de uma viela mandou parar o carro onde estávamos (três membros da banda, menos o baterista), apontou um revólver para nós e mandou todo mundo descer. Anabelle olhou para o cara armado e disse em tom de deboche:
– Quero ver se você tem coragem de atirar, cuzon! (cuzão em linguagem anabelliana).
E o cara não atirou.
Passado o perrengue, todos caímos na risada e fomos tomar umas cervejas para relaxar, deixando o ensaio para outro dia.
Era “brava” no sentido de bravura, de quem enfrenta a vida com coragem e bravura e não tem medo de nada, ou melhor, desconhece o que é sentir os medos triviais que todos nós, menos “bravos, temos. E “viva” por ser apaixonada pela vida, viver com intensidade, se entregar de corpo e alma a tudo o que faz e desfrutar com imenso prazer cada breve instante.
Seu nome de batismo era Anabella. Filha caçula temporã de uma família numerosa da classe alta de Buenos Aires, teve um pai muito rígido e uma educação esmerada (estudara piano desde criança e se formara pianista clássica ainda muito jovem). Na adolescência, começou a trabalhar como modelo e atriz coadjuvante na TV, porque era muito fotogênica, apesar de baixinha, e casou-se aos 18 anos com o filho de um famoso comediante que tinha um programa na televisão – o Chico Anísio argentino, como ela costumava explicar a seus amigos brasileiros – que tinha o dobro de sua idade. Após pouco mais de dois anos de casamento e um filho, decidiu se separar e, para escapar do assédio do marido, cuja intenção era ficar com a guarda da criança, fugiu sozinha com o garoto para o Brasil, sem conhecer ninguém na bela e tropical terra brasilis.
Chegou ao Rio de Janeiro com o pequeno filho chamado Jerônimo a tiracolo e foi se instalar no histórico e boêmio bairro de Santa Tereza. Logo depois, fez amizade com uma turma de hippies e foi com eles conhecer Paraty e Trindade, isso pelos idos de 1975.
Lá, desbundou como todo mundo naquela época, viveu o sonho da liberdade junto à natureza, e foi quando nos conhecemos (este redador também desbundado e vivendo o sonho, que ainda não havia acabado no Brasil). Nessa época, ela chegou a morar num rancho de canoas de pescadores, sempre com o pequeno Jerônimo a tiracolo. Por sua simpatia e jeito alegre e engraçado, ela fazia amizades com muita facilidade, e nessa praia conheceu as amigas que a acompanhariam por toda a vida. Com Anabelle não havia meio-termo: ou você a adorava ou a detestava.
Eu tinha um amigo argentino, o Charles, outro fugido da ditadura argentina, e os apresentei. Os dois tiveram uma conexão imediata e, óbvio, se tornaram um casal. Charles vivia em São Paulo, e logo depois o recém-formado casal foi passar um tempo na Terra da Garoa. Na grande metrópole, com o novo companheiro, montou uma uma confecção e abriu uma loja de roupas. Mas nunca ficava muito tempo longe da praia, que adorava.
Como quase todos os jovens daquele tempo, ela experimentou várias drogas, mas teve problemas mesmo com a maldita cocaína, que começou a usar em São Paulo com o Charles, que gostava muito de um pó. Com ele, viajou várias para a Bolívia no famoso “trem da morte”, indo buscar pó para vender nos bares da noite paulistana.
Ela viveu quase dez anos com o Charles, que ajudou a criar Jerônimo como se fosse seu próprio filho. Apesar de levar uma vida desregrada e de loucuras, Anabelle sempre foi uma boa mãe, deu uma boa educação ao filho e nunca deixou faltar nada ao menino, nem uma vacina sequer. O único problema era que ela era meio estranha, e o pequeno Jerônimo tinha vergonha de que seus amiguinhos de escola vissem que sua mãe era tão diferente das mães deles; sempre que algum desses coleguinhas aparecia para brincar ou fazer tarefas escolares, o menino a escondia na cozinha ou no quarto dela.
Depois do fim do casamento com o Charles, Anabelle continuou sua vida de loucuras com suas amigas brasileiras do tempo de Paraty, viajando por todo o Brasil, Porto Seguro, Cabo Frio, Ilha Bela e Cabo Frio.
De volta a São Paulo, conviveu com os Novos Baianos na Serra da Cantareira, Moraes Moreira e todos daquela turma. Depois entrou na onda do post-punk e tocou teclados em várias bandas da cena underground paulistana, algumas delas das quais fiz parte (como o grupo Valquírias da lendária Cláudia Wonder, a primeira vocalista trans do rock brasileiro).
Foi quando mudou seu nome para Anabelle, inspirada em uma atriz francesa que fazia sucesso em meados dos anos 1980. Adotou o nome artístico “Anabelle Marsala”, este último seu sobrenome verdadeiro, de origem italiana, mais precisamente da imemorial Sicília, a terra da Cosa Nostra, a famosa máfia siciliana. Foi nessa época que entrou na roleta-russa de tomar injeções de cocaína na veia junto com algumas amigas barra-pesada, e sofreu várias overdoses, mas seu coração era forte e ela aguentou as pancadas mortais desferidas pelo capeta, ao contrário de muitos outros que ficaram pelo caminho.
Sua carreira de loucuras continuou ainda por vários anos, e diversa vezes ela escapou por um capricho do destino: numa briga com um namorado, os dois chapados de pó, ela tomou um tiro de revólver no maxilar, que, por sorte, entrou de cima para baixo e apenas arrancou um dente maxilar, um preço bem baixo para quem foi alvo de uma arma de fogo. Capotou e destruiu carros na loucura da noite da Paulicéia; viu amigos morrerem de AIDS ou de overdose, mas parecia que seu anjo da guarda nunca a abandonava.
Foi nessa época de loucuras que conheceu seu terceiro marido, um punk da zona leste de São Paulo, com quem montou uma pequena fábrica de sapatos para o público alternativo. A ideia foi dele, que já trabalhava nessa área fazia algum tempo. Começaram numa pequena garagem no bairro da Mooca, e o negócio foi engrenando aos poucos. Chegaram a fazer algum sucesso entre o os moderninhos de São Paulo, mas o casal não se entendia mais e, após uma separação conturbada, Anabelle indenizou o ex-marido e ficou com a fábrica, pois a tinha financiado com o dinheiro de sua família. Um pouco depois, conheceu o jovem artista plástico Augusto César, que era doze anos mais novo do que ela.
Sua história de bravura e loucuras era sua marca registrada. Uma vez, conversando com amigos, disse, com aquele seu jeito engraçado de falar:
– Quando morrer, quero que escrevam na minha lápide “Me diverti bastaaaaanti.
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Na noite seguinte à festa na Sra. Krawitz, avistei Augusto na famosa boate alternativa Cais, onde a banda de uns conhecidos nossos iria tocar. Eu o conhecia de vista fazia algum tempo, pois sempre nos encontrávamos em eventos na noite desde o final dos anos 1980, mas ainda não éramos os amigos íntimos que seríamos em breve.
Augusto acordou tarde no domingo e só no começo da noite resolveu telefonar para Anabelle. Marcaram um encontro para o dia seguinte.
Na festa de sexta-feira na Sra. Krawitz ele tinha bebido bastante e por isso não se lembrava exatamente das feições de Anabelle; mas uma coisa era certa: ela não fazia seu tipo (loiras altas e magras). Ele se recordava que ela era morena e de baixa estatura, apesar das enormes botas de salto plataforma que estava usando. Mesmo assim, decidiu marcar um encontro. Na época, ele telefonava para todas as mulheres que conhecia na noite, nem que fosse para vê-las pelo menos uma vez sem estar sob o efeito do álcool. Afinal de contas, o que ele queria mesmo naquele momento era viver intensamente, conhecer gente diferente, e toda oportunidade era válida, ainda mais para alguém que se considerava um pintor boêmio, ao estilo de seus ídolos Picasso e Van Gogh.
Augusto chegou à portaria do prédio onde Anabelle morava e pediu para avisar que estava esperando lá embaixo. Depois de alguns minutos, o porteiro disse pelo interfone que não havia ninguém no apartamento da “Dona Anabelle”.
“Estranho – Augusto pensou – acabei de falar com ela pelo telefone.”
Alguém um pouco mais supersticioso ou com mais presença-de-espírito teria visto aquilo como um tipo de sinal mandado pelo universo, dado meia-volta e desistido do encontro. Na verdade, tal ideia passou rapidamente pela cabeça do jovem artista plástico, mas ele a desprezou, pois seu ceticismo era arrogante demais para aceitar tal tipo de sugestão. Voltou então para casa e ligou novamente para Anabelle.
– Estou aqui – ela respondeu, e foi verificar por que não tinha sido avisada de que Augusto passara para buscá-la, descobrindo que justamente o seu aparelho de interfone estava com defeito.
Esclarecido o que acontecera, Anabelle ficou de passar na casa dele, que era perto, como uma maneira de compensar o contratempo.
Pelo resto da vida, Augusto se lembraria do interfone quebrado naquela primeira vez que foi buscar Anabelle em casa. Muitas outras vezes ele voltaria a pensar que aquilo fora um tipo de sinal, que talvez fosse “alguém” tentando avisá-lo de algo, mas o fato é que ele não acreditava nesse tipo de coisa, muito menos que o destino das pessoas estivesse escrito nas estrelas ou seja lá onde fosse. Quão ingênuo.
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Dessa vez tudo deu certo. Anabelle passou na casa de Augusto e os dois saíram para beber alguma coisa, indo parar no estiloso Bar Colúmbia, na esquina da Rua Augusta com a Estados Unidos, onde se sentaram a uma mesa na calçada. Ela estava de novo muito maquiada, dessa vez usando longos cílios postiços com as cores do arco-íris, que combinavam com a jaqueta de lamê furta-cor que vestia por cima de um corset negro.
Augusto não se sentiu fisicamente atraído pela estilista, mas a achou diferente, divertida e com um jeito muito engraçado de falar, além de que ela o acompanhava no ritmo dos chopes, que não paravam de aterrissar na mesa. Assim como há garotas que têm queda por bad-boys1, Augusto tinha uma queda por mulheres que o fizessem rir.
Enquanto conversavam, ele descobriu que as botas roqueiras de bico fino que estava usando tinham sido compradas na loja dela – a Monster´s – e que ela tinha uma pequena fábrica que produzia os sapatos de vanguarda queridinhos dos modernos de Sampa.
Por seu lado, Augusto comentou que era artista plástico – ou ao menos se considerava um – que tinha participado de uma exposição coletiva e em breve breve faria sua primeira individual; e também que escrevia poesias e resenhas sobre vernissages, que eram publicadas em jornais e revistas junto com as fotos de sua amiga Regina Mafra. Nesse momento, ele nem se lembrava mais de que era formado em engenharia.
Naquela noite, eu e meu amigo Léo Castello tínhamos ido a um vernissage numa galeria na rua Estados Unidos, que era um dos eventos que tínhamos em nossa agenda para a nossa “saída” (sim, naqueles tempos a gente saía quase toda noite). Ficamos lá um pouco, bebemos, encontramos alguns conhecidos e depois fomos buscar um táxi na esquina com a rua Augusta, para então ir a uma festa que estava rolando no Aeroanta. Assim que cruzamos a esquina, avistamos a Anabelle e o Augusto César. Os dois nos viram e nos convidaram a sentar, para beber alguma coisa. Depois de alguns chopes, eles decidiram ir conosco para a festa. Cabe ressaltar que o Léo Castello era uma das figurinhas mais carimbadas da noite alternativa, desde que sua família abrira o lendário espaço cultural e boate Carbono 14 em meados dos anos 1980, um lugar que marcou época na cena underground da Capital. Pegamos carona com eles, pois estávamos sem carro (como bons boêmios que éramos, a gente nunca mistura álcool com direção). Apesar de ser uma segunda-feira, o Aeroanta estava bastante cheio. Assim que entramos, o Léo e eu deixamos o casal sozinho, de modo que não conversamos mais naquela noite.
7
Anabelle e Augusto continuaram a beber e curtir a festa, encontrando amigos e circulando entre o povo da noite. Ele aproveitou que não estava dirigindo e trocou a cerveja pelo whisky. Lá pelas tantas, já bastante animado, ele deu um beijo em Anabelle, que aceitou, surpreendida.
No final da noite, eles se despediram de nós e se mandaram. Quando chegaram ao carro, descobriram que um dos pneus estava furado. Augusto tentou trocá-lo pelo estepe, mas este também estava vazio. A roubada parecia inevitável, mas ele se lembrou de que ali perto havia uma borracharia que ficava aberta 24 horas. Foi a salvação para o final da noitada. Ele tomou a direção do carro e foi dirigindo bem devagar até a oficina.
– Meu herói! – Anabelle disse assim que entraram na borracharia, e se enroscou no pescoço de Augusto, dando-lhe vários beijos.
Depois de consertados os pneus, eles se dirigiram para a casa dela, mas antes pararam num loja de conveniência 7-eleven, para comprar algumas latinhas de cerveja e comer um hot-dog, ou dogón, como Anabelle dizia no seu curioso portunhol. Na saída do estacionamento, em vez de descer a ladeira de mão única onde ficava a loja, ela tentou subir e acertou em cheio o sinal de contramão, entortando um pouco o poste metálico. Ela deu uma sonora risada, virou o carro e tocou em frente, nem ligando para o que acabara de acontecer.
No apartamento, eles se sentaram no chão da sala, ao lado do aparelho de som, e ficaram tomando cerveja e ouvindo fitas antigas das bandas de que ela havia feito parte. Depois de duas latinhas, sem a mínima cerimônia, ela se esticou no chão e pegou no sono.
Dormindo, ela recordou a Augusto a engraçada e espevitada personagem Betty Boop, com os braços colados junto ao corpo e uma expressão divertida no rotos, a boquinha pequena e o mesmo rosto oval. Ele olhou para a inusitada mulher ali deitado e sorriu, pensando que nunca tinha conhecido uma pessoa tão engraçada e diferente. O dia já estava clareando lá fora, e ele achou melhor não despertá-la – como odiava ser acordado, ele evitava fazer isso com os outros. Resolveu então ir embora.
Foi caminhando até sua casa, que ficava a algumas quadras, e, no meio do caminho, tirou suas botas de bico fino, para não as gastar, terminando o percurso descalço, com os sapatos na mão.
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Sempre fui um leitor compulsivo e, como todo mundo nos anos 1980, li o romance A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera, que fazia muito sucesso na época. Achei notável que esse fosse o primeiro livro famoso que aborda o processo de nascimento do amor de um ponto de vista mais analítico, algo totalmente diferente de todos os clássicos que tratam desse tema (Romeu e Julieta, Anna Karenina etc etc).
O autor descreve desta forma o processo:
Parece que existe no cérebro uma zona específica, que poderíamos chamar de memória poética, que registrar o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida. O amor começa por uma metáfora. Ou melhor, o amor começa no momento em que uma pessoa se inscreve como uma palavra em nossa memória poética. A Partir daí, ninguém mais terá o direito de deixar uma marca, por efêmera que seja, nessa zona de seu cérebro”.
Augusto também leu o livro, e foi a primeira vez que ele se deparou com a ideia de que o amor não seria o fruto de uma grande paixão. Na época, ele não compreendeu exatamente a natureza do amor do neurocirurgião Tomas pela bela garçonete Tereza, os personagens principais da obra, mas guardou na memória a informação de que, seja lá o que fosse esse sentimento, ele era imune ao tempo e irremediavelmente uma tragédia, como é mostrado no romance.
Ele resolveu ler o livro pela segunda vez algum tempo depois de conhecer Anabelle, pois sua intuição lhe dissera que aquela história era um pouco parecida com a sua: o neurocirurgião Tomas tem sua vida decidida no momento em que, ao ver pela primeira vez a jovem Tereza dormindo, acometida de uma forte gripe, imagina ser ela uma criança desamparada que viera até ele boiando num rio em uma cesta de vime untada – numa alusão à história bíblica de Moisés – e que precisa salvá-la.
Ele a conhecera uma semana antes, enquanto esperava por seu trem em um bar decadente após uma cirurgia que fora realizar em uma cidade do interior da Tchecoslováquia, país onde vivia. Conversou rapidamente com a atraente garçonete que o atendeu, Tereza, e deixou com ela um cartão de visitas no qual estavam escritos seu endereço e telefone, e se esqueceu dela. Porém, alguns dias depois, sem avisar, ela bateu à porta do apartamento dele em Praga. O médico a recebeu com indisfarçável prazer, a arrastou para dentro e fez amor com ela no sofá da sala.
Após o sexo e um jantar improvisado, ela começou a se sentir febril e com dor na garganta. Ele a medicou e a colocou para descansar em sua própria cama, até que ela caiu em um sono profundo, e aquilo o tocou. De joelhos à cabeceira do leito, observando Tereza dormir como uma criança indefesa, pareceu evidente a Tomas que ele não sobreviveria à morte daquela pobre jovem, e ele chega mesmo a sentir que precisa e tem que morrer ao lado dela. Nesse momento, ele não sabia que aquilo que estava começando a sentir era o amor verdadeiro, e que ele iria acompanhá-lo até o último dia de sua vida.
9
Não, Augusto não descobriu seu amor por Anabelle ao vê-la dormindo no chão do apartamento dela no final da noite daquele primeiro encontro, quando notou que ela o recordava a personagem Betty Boop. Sentiu apenas um enorme carinho por aquela estranha mulher que estava ali deitada ao seu lado com uma expressão engraçada no rosto enquanto dormia. Na verdade, algum tempo se passaria até que ele percebesse que sentia algo diferente por ela, algo que nunca tinha imaginado que pudesse existir.
Como geralmente acontece com qualquer pessoa com mais de vinte anos, Augusto já se apaixonara mais de uma vez àquela altura da vida. Algum tempo antes, tivera uma forte paixão por Débora, uma arquiteta doze anos mais velha do que ele. Ela era do tipo físico que o atraía, alta e com um longo cabelo loiro, e a própria situação que fez os dois se conhecerem pareceu a Augusto meio mágica, como se fosse algo predestinado: o resultado de um número discado errado no telefone, ou “engano”, como se dizia à época (sim, os telefones ainda eram “discados”). Ela ligara para um outro Augusto César, porém os números eram quase iguais, sendo a diferença apenas no último dígito.
Augusto chegou a acreditar que aquilo era mesmo obra do destino (apesar do seu ceticismo), e aquilo contribuiu para a aura que ele criou em torno da loira (um “amor inventado”, como diria Cazuza). Em resumo, por causa desse detalhe dos telefones e por Débora ser uma mulher mais velha e interessante, ele se apaixonou perdidamente por ela e, alguns meses depois, levou um pé-na-bunda bem dolorido. Cabe ressaltar que nessa época Augusto era um jovem bastante bonito, alto, fazia alguns trabalhos como modelo e tinha a autoestima bem elevada. O infeliz nunca entendeu muito bem por que Débora não tinha gostado dele.
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Quando conheceu Anabelle, mais de dois anos depois que sua história com Débora havia terminado, Augusto se considerava um cara vivido que sabia o que era o amor – ou o que convencionalmente se chama amor: algo parecido ao que sentira pela arquiteta alta e loira. Então ele imaginou que aquilo não se repetiria com Anabelle, já que ela era totalmente diferente do que acreditava ser uma mulher por quem se apaixonaria, e achou que não haveria problema de sair mais algumas vezes com ela para curtir a vida.
Anabelle era muito conhecida na noite de São Paulo – circulava desde o final dos anos 1970, tocara em várias bandas e agora era uma estilista de sucesso que tinha aparecido naquela reportagem da revista Veja, citada como a “rainha dos clubbers” por causa dos seus sapatos espalhafatosos que faziam sucesso entre os moderninhos – e por isso era convidada a todos os eventos de vanguarda. Naquele momento, tudo se encaixou para Augusto: Anabelle seria seu passaporte VIP para fazer parte do excitante roteiro de festas descoladas na noite de São Paulo.
E entre o final de novembro e todo o mês de dezembro o casal saiu muito, três, quatro vezes por semana, indo a todas as festas de hoje e de amanhã. Iam primeiro a um evento, depois outro e mais outro, e ainda terminavam a noite no New York Bar, um barzinho nos Jardins que ficava aberto até as dez da manhã. Bebiam bastante juntos até o dia clarear, mas Anabelle, valente como era sua natureza, ainda tinha energia para trabalhar no dia seguinte. Mas às vezes ela pegava no sono mesmo, como aconteceu certa noite naquele mesmo NY Bar, quando adormeceu sentada num daqueles sofás encostados na parede. Mais uma vez, enquanto Anabelle dormia, Augusto olhou para ela e a viu como uma personagem de desenhos animados, sentadinha com os braços colados junto ao corpo, a boquinha pequena e em forma de coração igual à da Betty Boop. Ela dormiu por uns cinco minutos, até que acordou e disse, com aquela expressão engraçada típica sua:
– Hi, hi, hi, hi... acho que dormi.
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Na segunda vez que foi ao apartamento de Anabelle, desta feita chegando sóbrio, Augusto ficou reparando nos quadros, quase todos pintados por amigos dela, nas montanhas de sapatos, nos armários cheios de roupas diferentes e, fato que o assustou um pouco, que ela tinha feias cicatrizes na veias do braço esquerdo, sinal de quem usara drogas injetáveis. Aquilo o impressionou, mas ele preferiu não comentar. Como os dois bebiam muito na noite, quando transaram pela segunda ou terceira vez, Augusto esqueceu de usar preservativos ou o preservativo estourou, ele não se lembrava bem, mas o fato foi que ele concluiu o ato sem proteção. Nos dias seguintes a essa transa, ele ficou preocupado e tomado por imensa culpa. E a culpa disparou o gatilho da depressão.
Era o auge da epidemia de AIDS, a doença era fatal e os meios de comunicação martelavam dia e noite sobre os risco do sexo desprotegido, que essa conduta era mortal, o que deixava todo mundo que “errara” sob forte stress e sentimento de culpa. Augusto desde criança tinha propensão à depressão e sempre sentira angústia ao longo da vida (sua eterna companheira, como ele costumava brincar), então, por achar que podia ter contraído AIDS, ele entrou em um novo ciclo depressivo e tentou se afastar de Anabelle.
Ela, por seu lado, continuava a convidá-lo para sair, mas ele dizia que não tinha vontade, que iria ficar em casa. Ela brincava, dizia para ele tirar o “bob elétrico” e aproveitar a vida (ele tinha cabelos cacheados e um topete aloirado (tingido), um pouco parecido com o visual do vocalista do Simply Red nos anos 1980, e ela costumava brincar dizendo que ele usava bobes elétricos para aprontar o visual).
Essa crise de depressão aconteceu alguns dias antes do Natal, então ele resolveu passar o Ano-Novo na praia e convidou sua amiga Regina Mafra para ir junto. Quando retornou a São Paulo, ele estava decidido a não procurar mais Anabelle.
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Num sábado à tarde antes do Carnaval, Anabelle e eu almoçamos juntos e depois decidimos dar uma passada para ver a bagunça do bloco pré-carnavalesco Gueri Gueri, que estava rolando ali perto, na Rua Oscar Freire, mais precisamente. Quando chegamos, havia um clima de festa, samba, muita cerveja e um lindo sol de verão que realçava as cores e os bronzeados.
Estávamos passeando no meio da multidão, quando Augusto nos avistou. Ele estava sentado a uma mesa em um barzinho e no convidou a sentar com eles. O jovem artista plástico ficou muito feliz de reencontrar Anabelle (eles não se viam desde o final do ano anterior), e os dois ficaram conversando entre eles, Augusto brincando com ela (ele já tinha bebido várias cervejas), ambos riam e pareciam estar se divertindo.
Eu fiquei conversando com o amigo de Augusto, que também era pintor e dava aulas de arte na FAAP, mas ele só falava de artes e artistas, e eu acabei me entediando. Como eu tinha algumas coisas para fazer em casa, disse que precisava ir embora e me mandei. Só fui reencontrar Anabelle e Augusto depois do carnaval.
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Os três ficaram no bar até começar a escurecer, quando o amigo de Augusto foi embora e o casal decidiu continuar a noite juntos (sim, naquele dia eles se tornaram um casal novamente). Passaram na casa de uns conhecidos nos Jardins, para um “esquenta” antes de cair na noite propriamente dita. Depois foram a uma festa em Higienópolis, beberam, dançaram e terminaram a noitada na Sra. Krawitz, que era o ponto oficial de final de noite dos modernos, onde ficaram até o dia clarear. E ainda foram comer pastéis na feira da Praça Roosevelt, com o sol já alto.
Os dois passaram o resto do domingo na cama, à noite foram jantar numa cantina na Rua Augusta e, no final, ainda tomaram a saideira no New York Bar. Naquela semana, Augusto iria acompanhar sua amiga Regina Mafra na sessão de fotos de seus quadros para sua primeira exposição individual, que já estava marcada, e ele estava animado com a vida. Seu marchand disse ter gostado muito do seu trabalho (apesar de cobrar uma taxa de caução, como garantia caso não vendessem muitos quadros), e o otimismo do jovem artista plástico era contagiante (otimismo, esse péssimo conselheiro). Ele estava vivendo seu sonho de ser um pintor de verdade, e viver os sonhos é a melhor coisa que pode acontecer a alguém. Anabelle também estava feliz, sua fábrica e loja iam bem, e agora ela estava com esse rapaz jovem, bonito e alto.
No final da noite, ela quis levá-lo novamente para seu apartamento, mas Augusto preferiu dessa vez ir dormir em casa. Disse que tinha que acordar cedo para correr atrás dos preparativos de sua exposição.
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O que pouca gente sabe é que, depois que voltou do Ano-Novo no litoral, Augusto estava superando sua crise de depressão e, para isso, queria se dedicar aos preparativos para sua primeira exposição individual e ficar longe da estilista argentina. Ele pensava em Anabelle, sentia saudade dela, mas achava que era melhor deixar aquela história para trás, já que pretendia ir para a Europa logo depois que sua exposição terminasse. Mas o acaso – o que muita gente chama de destino – veio se intrometer nos planos dele. Foi a coincidência daquele encontro no bloco do Gueri Gueri que selou o destino de Anabelle e Augusto César.
Como estava vivendo aquele seu teatrinho pretensioso de que era um pintor boêmio, um tipo de beatnik2 dos anos 1990, Augusto achou, mais uma vez, que não havia nenhum problema de continuar saindo com Anabelle (e também se esqueceu da ameaça da AIDS). Ele imaginava que iria para a Europa após sua exposição e que tudo terminaria sem maiores consequências para os dois; aquela teria sido apenas uma época de diversão, novas experiências e celebração à vida. Are you experienced?3
Naquele momento, Augusto ainda não havia se dado conta de que era a loucura de Anabelle que o atraía, um tipo de loucura que era diferente da sua e a qual buscava nos outros, assim como aconteceu com o escritor beatnik Jack Kerouac, autor do clássico On The Road, que encontra essa louca beatitude de que tanto precisava no amigo porra-louca Neal Cassidy, e assim descreve essa constatação na passagem mais famosa do livro: “eu me arrastava atrás das pessoas que me interessam, porque, para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo, aqueles que nunca bocejam e jamais dizem coisas comuns, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício explodindo em constelações em cujo centro fervilhante – pop – pode-se ver um brilho azul e intenso até que todos, em extase, exclamem 'Aaaaaaaah!'”
Quando conheceu Anabelle, esse trecho de On The Road logo veio à cabeça de Augusto, pois lhe pareceu óbvio que encontrara umas dessas pessoas loucas e iluminadas que Kerouac descrevera de maneira tão inspirada.
A partir daí, os dois virariam um casal celebrado na noite alternativa de São Paulo. “A estilista Anabelle Marsala e o artista plástico Augusto César” era a maneira como eles eram citados nas várias fotos que saíram deles nos jornais e páginas sociais. Eles se produziam muito para ir aos eventos, usavam roupas espalhafatosas (mas com estilo), às vezes até extrapolavam no visual, mas uma coisa era certa: os dois se divertiam muito saindo juntos.
Também gostavam de ir jantar em restaurantes no bairro japonês da Liberdade, onde conversavam entre sushis, sashimis, saquê e muita cerveja. Anabelle tinha um jeito especial de contar histórias e casos antigos, com uma graça natural e uma maneira cômica de olhar para o teto e os lados enquanto falava, e de reproduzir os barulhos das coisas e acontecimentos que narrava: tchufi, tchufi, quando apertava uma bisnaga de ketchup; thum, quando brincava de dar um soco em Augusto; pluft, ao apertar um cravo ou espinha do namorado, e assim por diante; tudo misturado ao seu sotaque característico e impagável, que errava os verbos, como, por exemplo, “caiu”, “fodeu” ou “entendeu?”, pronunciando-os: caiô, fodiô e entendiô? Augusto adorava ouvir essas histórias narradas no jeito engraçado dela, as quais serviam como cura para seu vício de insistir na saudade que ele sentia de tudo que ainda não tinha vivido4
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O maior feito de Milan Kundera em A Insustentável Leveza do Ser foi mostrar por meio de uma metáfora poética o nascimento do amor verdadeiro: o momento em que Tomas vê pela primeira vez Tereza dormindo e a imagina como uma criança que viera até ele boiando em uma cesta em um rio, e que não podia deixá-la seguir à deriva nas águas turbulentas e cruéis da vida. É uma metáfora belíssima, e o autor conclui que metáforas são perigosas, pois delas pode nascer o amor.
Entre Anabelle e Augusto tudo aconteceu de uma forma bem mais prosaica: no começo, ele gostava de sair com ela para beber e se divertir nos lugares da moda; o jeito engraçado dela o fazia rir, e, como acontece com todo cervejeiro, a “loira gelada” dava liga a esses encontros. Sem essa bebida tão antiga, eles nunca teriam se conhecido, não teriam se beijado, muito menos feito amor. Quando ele viu Anabelle sem maquilagem pela primeira vez, sentiu-se um pouco ludibriado, pois, de noite, ela estava sempre muito bem pintada, como um personagem de teatro (profissão que ela exerceu quando muito jovem na Argentina). Por outro lado, como a própria Betty Boop, Anabelle tinha um corpo bonito que não combinava exatamente com seu rosto engraçado.
A primeira vez que Augusto teve uma noção de que sentia algo diferente por ela foi quando os dois passaram um feriado de Páscoa na Vila de Trindade, perto de Paraty. Anabelle estivera lá pela primeira vez em 1976 e conhecia cada canto daquele pequeno paraíso. No primeiro dia, ela o levou à Praia do Caixa D'Aço, onde há um costão com uma formação curiosa de grandes pedras que delimitam um espaço protegido, como se fosse uma piscina natural de águas cristalinas. Por causa do tempo meio chuvoso, não havia mais ninguém por lá, e os dois puderam aproveitar sozinhos o lugar. Augusto ficou admirado de ver o prazer com que ela nadava e mergulhava como um golfinho feliz, e como ela tinha vontade de continuar na água, quando ele já estava com frio e queria voltar para a praia.
À noite foram até Paraty, para encontrar Ju, uma das amigas de Anabelle dos velhos tempos, de quando ela estivera pela primeira vez ao Brasil. Muitos anos antes, as duas tinham passado um tempo numa ilha ao largo da costa, onde a Ju dava aulas para filhos de pescadores na escolinha (e por isso recebeu o apelido carinhoso “Tia Ju”), e lá elas viveram em paz junto à natureza por vários meses. Tudo parecia parte de um sonho bom, até que um dia a Professora Ju levou os meninos para a praia, para uma aula ao ar livre, e, sem mais nem menos, um raio caiu bem em cima das crianças, matando várias delas na hora, tudo isso em frente aos olhos petrificados da jovem, que escapou por milagre, apenas com algumas queimaduras. A pobre nunca se recuperou desse trauma e, algum tempo depois, foi morar em Paris, onde se afundou no vinho e no tabaco.
Então naquela noite em Paraty, Anabelle e Augusto César se encontraram com a Tia Ju, que acabara de voltar de uma temporada na Europa, e foram os três jantar. Depois passearam pelas belas ruas históricas e finalmente foram a um bar, onde as duas amigas compraram e cheiraram um pouco de pó (do qual ele não provou). No final da noite, o casal retornou para o chalé que tinham alugado em Trindade. No caminho de volta, Anabelle dormiu no banco do passageiro enquanto Augusto diria pela escuridão tropical da Rio-Santos.
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No dia seguinte, apesar do tempo frio que baixou sobre a vila de Trindade, Anabelle insistiu para que eles fossem até uma cachoeira que ela conhecia. Augusto estava deitado na cama, sem vontade de se levantar, mas ela não desistia:
– Vamos, deixa de ser preguiçoso, seu molenga!
E lá foram os dois, atravessando novamente a vila até a trilha da cachoeira. Ela ia na frente, já que conhecia o local, vestida apenas com um biquíni e um par de sapatos de lona, produtos de sua fábrica. Numa certa hora, eles se perderam, e Augusto disse que era melhor voltar, pois o céu estava escuro e parecia que ia cair um pé-d'água.
– Deixa de ser bunda-mole – ela disse, decidida. – Eu conheço o caminho, já estamos chegando. Vamos, é por aqui!
Nessa hora, Augusto olhou para a namorada, que estava um pouco acima na trilha da montanha olhando para ele, e balançou a cabeça, como quem parece não acreditar no que está vendo, e pensou: “Olha só para essa retardadinha... Como pode existir uma pessoa assim?” e sorriu.
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Talvez a melhor descrição já feita na literatura sobre o “olhar do amor” seja a que aparece no romance Alta Fidelidade, de Nick Hornby, best-seller dos anos 2000 e que inspirou um filme de mesmo nome: “É provável que seja o olhar de indulgência benevolente que a mãe dá ao garotinho, ou um olhar de exasperação divertida, até mesmo um olhar de preocupação sofrida.”
Se houvesse mais alguém com Anabelle e Augusto César naquela tarde no trilha da montanha de Trindade, certamente teria visto no rosto do jovem artista plástico esse “olhar de amor” no instante em que ele parou para admirar a destemida namorada, que insistia para que os dois continuassem a subir até a cachoeira que ela conhecia. Tempos depois, ele perceberia a importância daquilo e sempre se lembraria desse dia como aquele no qual descobriu o quão belo era o sentimento que tinha por aquela estranha mulher.
Os dois continuaram morro acima e finalmente encontraram a tão esperada cachoeira do Poço Fundo, que forma uma pequena piscina natural entre as pedras. Lá, Anabelle entrou na água e se banhou com imenso prazer na torrente prateada e gelada que vinha do alto da serra. Ela chamou Augusto para acompanhá-la, mas ele se recusou, pois a água estava muito fria.
– Você parece uma velhinha – ela comentou, rindo. – Tem frio, tem medo de tudo... hi, hi, hi, hi. – Vem, entra, deixa de ser bunda-mole! – e jogava água nele.
Augusto ficou olhando enquanto ela se banhava e rolava na pequena piscina, deixava a água fria e cristalina cair no seu corpo, na sua bunda, enquanto dava risadas transbordando de prazer, e então de maneira definitiva ele se rendeu ante a visão da imensa beleza da alma de Anabelle.
Ele não tinha como saber que naquele momento o destino de sua vida já estava decidido.
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O filósofo Immanuel Kant afirma em seu livro Crítica da Faculdade do Juízo que nós só temos a verdadeira experiência da beleza quando deixamos de lado nossos interesses pessoais ao observar algo, quando olhamos para as coisas não com a intenção de usá-las para nossos propósitos, satisfazer alguma necessidade ou desejo pessoal, mas simplesmente as apreciamos para assimilar o que elas são de verdade. Vemos a beleza real de alguma coisa quando colocamos nela o nosso foco, esquecendo-nos do nosso eu.
É essa atitude desinteressada que define a verdadeira experiência da beleza. O belo per se e nada mais. A beleza da flor é inútil do ponto de vista prático, assim como a beleza de um pôr-do-sol ou a de uma sonata de Bach. De acordo com esse raciocínio, quando estamos interessados por alguém, quer seja por sua beleza física, sua fortuna ou fama, não conseguimos ver a verdadeira essência dessa pessoa, pois estamos projetando nela nossos desejos, sonhos e anseios físicos, que é justamente a definição do sentimento chamado paixão. O amor só aconteceria quando vislumbramos a alma de alguém e essa visão nos pega desprevenidos e nos comove, ocupando em nossa própria alma um lugar até então vazio, que, a partir daí, nunca mais poderá ser preenchido por ninguém (como sugere Milan Kundera em seu conceito de memória poética). E você só poderá ver a beleza da alma de alguém se não estiver procurando por ela.
Talvez seja por essa razão que nenhum amor verdadeiro nasce de uma paixão. E talvez seja por isso que a própria paixão impede o nascimento do amor.
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Depois do feriado em Trindade, o casal foi tocando a vida. Augusto se dedicava aos preparativos finais para sua exposição (montagem dos quadros, elaboração do catálogo, convites para o vernissage etc.), e Anabelle cuidava da fábrica e da loja nos Jardins. Os dois continuavam a sair na noite para circular, beber e fazer a social, e a vida parecia boa para ambos: ele vivia seu sonho de ser um pintor de verdade e ela colhia os frutos do seu trabalho.
Encontrei por acaso o Augusto alguns dias antes do seu vernissage, quando ele estava no bar Ritz distribuindo convites para o evento. Eu estava com a Lenna, com quem eu namorava na época, e um amigo cineasta de certa fama, e convidamos o artista plástico para sentar à nossa mesa e tomar um drink. Augusto e o cineasta se conheciam, já que este também era amigo da Regina Mafra, que os apresentara algum tempo antes. Apesar de vivermos numa cidade gigantesca, o fato é que acabamos convivendo em círculos relativamente pequenos, como se fosse uma cidadezinha dentro da imensa metrópole. O cineasta, que tinha uma queda declarada por Augusto, comentou que ouvira falar que ele estava namorando com a “louca” dona da Monster's, observação que Augusto achou engraçada e que o fez rir, sem entender que “louca” quer dizer louca mesmo.
Apesar dos comentários dos amigos sobre o fato de a namorada ser meio “estranha”, Augusto não se importava muito com isso, já que planejava ir para Europa assim que sua exposição terminasse, o que lhe dava certa leveza em sua relação com a estilista. Porém algo começou a incomodá-lo: a ideia de que um dia iria abandoná-la. Ele sempre imaginava o momento em que a deixaria sozinha no aeroporto – e no mundo – quando fosse embarcar para a Europa. Ele a via triste nessa imagem, e aquilo lhe apertava o coração. Muitas e muitas vezes ele pensaria nisso, prevendo o sofrimento dela ao vê-lo partir. Então ele era tomado de uma profunda tristeza por uma fato que ainda não acontecera, mas que algum dia se tornaria realidade.
Ele procurava espantar esses pensamentos tristes da melhor maneira que podia, e a correria daqueles dias o ajudava: além de frequentar a galeria de seu marchand – não só para conversar sobre arte, mas principalmente pelos happy hours regados a whisky escocês que aconteciam lá todo final de tarde – ele dividia seu tempo saindo com Anabelle e com uma loirinha que conhecera noVitória Pub numa noite que saíra com alguns amigos de infância. Aquela vida de pintor boêmio era a realização de seu sonho, e foi nessa época que começou a cheirar cocaína junto a Anabelle e os amigos barra-pesada dela, e isso também contribuía para aquele seu teatrinho de ser um “pintor maldito”.
Anabelle tivera sérios problemas com a cocaína na década de 1980, como mencionei antes; fora viciada em injeções na veia, mas, naquela época em que conheceu Augusto, tinha conseguido deixar para trás os tempos sombrios e usava a droga apenas socialmente, ou seja, dava uns “tirinhos” de vez em quando. Já ele entrou na onda do pó de gaiato mesmo; seu negócio era mesmo a boa e velha cerveja. Só foi experimentar a droga quando tinha 26 anos, e a partir daí cheirava esporadicamente na noite. No começo, ele foi contando todas as vezes que consumiu a droga, até chegar à decima, quando perdeu a conta.
Foi numa dessas noites temperadas pelo pó que Augusto teve o primeiro vislumbre sobre o caráter irrevogável e permanente do amor. Ele e Anabelle estavam em uma festa na casa de um amigo nosso, na qual mais uma vez este narrador estava presente, tomando uns drinks na varanda depois de cheirar umas carreiras, quando o artista plástico teve um insight5 sobre o que estava acontecendo entre ele e Anabelle, e comentou em tom de brincadeira:
– Tô ferrado. Eu nunca mais vou conseguir me livrar de você...
E os dois riram do comentário, pois era divertido, mas ele sempre se lembraria daquilo e compreenderia que insights são a maneira de o subconsciente se comunicar com o lado consciente de nossas mentes, aquilo que percebemos como realidade.
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Finalmente chegou a noite do primeiro vernissage de Augusto, que aconteceu numa pequena mas conceituada galeria nos Jardins. Eu estava lá, assim como um monte de amigos do artista plástico, da faculdade dele e de sua infância, antigos alunos, ex-paqueras e toda aquela fauna de moderninhos da noite. Foi um belo evento.
Nos dias que se seguiram, Augusto se dedicou à divulgação da exposição, deu entrevistas para jornais, rádios e até para um programa matutino de TV, pois eu tinha feito para ele a assessoria de imprensa do evento, ou seja, divulgar a exposição nos meios de comunicação (atividade essa que era meu ganha-pão na época). Durante as semanas seguintes, ele se sentiu mesmo um pintor; agora aquilo não era mais um “teatrinho”, tornara-se realidade.
Passada essa fase da correria de divulgação e entrevistas, não havia mais nada que ele pudesse fazer por sua obra. De acordo com seus planos, era hora de ir para a Europa, mas o problema é que seu dinheiro havia acabado. Ele tinha gastado toda a sua grana com a produção e divulgação da exposição e durante os meses em que ficara curtindo aquela vida de pintor boêmio. E o pior: só tinha vendido dois de seus quadros, que serviram apenas para pagar a caução para a galeria.
Se tudo tivesse ocorrido conforme seus planos, ele teria ido para a Europa logo após o final de sua exposição, e toda aquela história louca com Anabelle teria terminado sem maiores consequências para os dois. Porém, sem grana, não houve jeito além de ficar em São Paulo. Mas ele queria continuar sua vida de pintor, já tinha ideias para uma segunda série de quadros, e não queria e não podia voltar a dar aulas, já que tinha sido demitido por ser um professor relapso. Então Anabelle o convidou para trabalhar com ela, em meio período apenas, para que ele tivesse tempo de pintar. E ele aceitou.
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Certa vez, aso ver Anabelle nescendo a rua onde morava, Augusto novou que ela lhe recordava o sapinho Caco da Vila Sésamo: os olhos um pouco saltados e caídos, o rosto oval e o mesmo jeitos de sorrir balançando a cabeça. Passou então a chamá-la de “Sapinha”. Antes, dera a ela outros apelidos carinhosos, como “Capetinha”, que vinha do comentário dela “soy una capeta”; “pequenina”, pois uma vez na cama ela disse: “perto de você sou muito pequenina, porque você é um homón”; e vários outros, como “Retardadinha” e “Capetusca”, este último uma variação de “Capetinha”. Apesar de na primeira vez que saíram ele a ter achado parecida com a Betty Boop, ele nunca a chamou por esse nome. Também a achava parecida com a Mônica das histórias em quadrinhos – os dois dentinhos da frente salientes, o rosto oval e os olhos grandes – isso principalmente quando ela usava o cabelo curto ao estilo Chanel. E ainda maior semelhança havia com a Mônica Bebê, que era um personagem que aparecia em embalagens de uma marca de fraldas descartáveis.
Já Anabelle, por seu lado, chamava sempre o namorado pelos diminutivos “Gutxinho” e “Guginha”, e até o aumentativo “Gutón”, porque alguns amigos o chamavam de “Gutão”. Quando falava sobre ele com as amigas brasileiras, sempre o chamava de “marito”, ou seja, “marido”, já que tinha dificuladade de pronunciar o “do” em Português.
A maioria das pessoas achava o jeito de Anabelle falar ridículo, mas para Augusto era como música para seus ouvidos.
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Quando Augusto foi obrigado a ficam em São Paulo, teve início o perído mais feliz de sua vida adulta. Às vezes, o que não planejamos pode ser o melhor que o destino nos reservou. Como diz o genial Zeca Pagodinho: deixa a vida me levar, vida leeeeeva eu.
Então ele começou a trabalhar na fábrica de sapatos na Vila Matilde, onde era encarregado geral, fazia compras de materiais e também entregas. Anabelle, apesar da pressão no trabalho, nunca perdia o bom humor e as piadas, e era comum ela brincar com o namorado quando este queria dar uma sugestão ou se metia onde não devia: “Você cala a bóooca…” Ou então, quando ficava nervosa, ela soltava o seu comentário clássico: “ Ai meu cu, minha buceta, me deixem pensar”, o que na hora descontraía o clima pesado. Quando começou a conhecer Augusto um pouco melhor, ela dizia que ele era “ciclotímico e repetitivo” (essas duas palavras absurdamente engraçadas no jeito de ela falar), pois percebera que o namorado tinha flutuações súbitas de humor (consequência da anomalia que o acompanhava desde a infância, conhecida como transtorno bipolar, ou doença maníaco depressiva, diagnóstico esse que ele só descobriria muitos anos depois).
Nesse meio tempo, Anabelle teve que sair do apartamento onde vivia e o casal se mudou para um folclórico flat um pouco decadente no bairro boêmio do Bixiga, local que tinha uma bela vista para o Vale do Anhangabaú. A seguir, ela fez um grande desfile no andar de baixo do Club Colúmbia, onde apresentou sua nova coleção de sapatos e roupas.
Três meses depois, Augusto a ajudou a fazer a mudança para um casarão dos anos 1930 que ela havia encontrado na Rua dos Franceses, no mesmo bairro do Bixiga que eles tanto gostavam (também conhecido como Bela Vista). O imóvel tinha três andares e grandes espaços abertos, tipo um loft, e uma varanda com uma bela vista das antenas de transmissão na Avenida Paulista. No andar de cima, havia uma salinha na entrada, um banheiro grande (que tinha incríveis azulejos com a imagem do dirigível Zeppelin, de quando este passara por São Paulo em 1933), e um espaço maior, onde eles montaram uma sala/quarto com os móveis dela: um grande sófa chesterfiel em L, uma cama king-size e um armário aberto, que o próprio Augusto desenhou e montou. No andar do meio, descendo a bela escada de madeira, fizeram uma cozinha americana e dois quartos: uma para o Jerônimo (o já mencionado filho de Anabelle, a quem ela chamava de Xê, versão anabelliana para Jê) e outro para o Dinho, um amigo produtor de moda que ajudaria a dividir o aluguel. No andar de baixo, com acesso por uma ruazinha lateral, havia um quintal e uma grande garagem com banheiro independente, que várias vezes foi usada por amigos de Anabelle como abrigo temporário enquanto não encontravam um lugar para morar na imensa metrópole.
Como a casa era muito grande, faltavam móveis para preencher os grandes espaços. Então o casal foi num sábado de manhã àquelas lojas embaixo do Minhocão que vendem móveis antigos e usados, e compraram vários achados: um enorme sofá tipo banana, verde new-wave, que acomodava seis pessoas; duas mesinhas de cabeceira anos 1960, de fórmica laranja e marrom; uma grande mesa de centro art-decó toda revestida de vidro acobreado, maravilhosamente kitsch, e até um vaporizador elétrico com uma bacia de acrílico cor-de-rosa, daqueles usados em salões de beleza, que Anabelle achou divertido.
– Não é engraçado, Gu? – ela perguntava ao namorado, apontado os achados.
E ele sorria, com uma expressão de indulgência benevolente no rosto, e balançava a cabeça concordando – “sim, é muito legal” – e pronto, ela comprava os móveis.
A pesada mesa art decó foi parar no centro do grande quarto do casal, sendo coroada com o estranho vaporizador rosa, como se fosse um vaso de flores (o bizarro aparelho ainda funcionava e solatava bolhinhas quando cheio de água e ligado na tomada). O sofá tipo banana foi colocado no lounge6 da cozinha aberta, no andar do meio, e aquele espaço ficou perfeito para os almoços e jantares que eles começaram a oferecer aos amigos. Sem saber, eles tinham criado um ponto de encontro para toda aquela turma de moderninhos e freaks7 amigos do casal. Eu sempre “batia o cartão” no casarão mais animado do Bixiga.
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Augusto se dedicou de corpo e alma ao trabalho na fábrica (deixando um pouco de lado a pintura), apesar de não receber nenhum salário para isso. Morando com a companheira, ele tinha tudo de que precisava, e dinheiro nunca foi mesmo sua prioridade. Ele estava achando a vida que levava muito divertida, e nunca lhe ocorreu que estava sendo um tipo de “escravinho” para Anabelle, fazendo tudo o que ela pedia, como trabalhar na fábrica e cuidar do casarão.
Apesar do trabalho corrido, o casal nunca deixava de sair à noite. Batiam cartão toda terça-feira na boate Colúmbia, onde alguns promoviam um evento semanal que misturava artes e festa. A sexta-feira era dia de encontrar o pessoal nos barzinhos da Alameda Itu e depois ir dançar no Club Massivo, boate de vanguarda que ficava bem ao lado da loja da Monster´s; ou então dar uma esticada na Sra. Krawitz até o dia clarear. Sábado era dia de jantar japonês na Liberdade, quase sempre no pequeno e simpático Yamamoto, cuja proprietária era amigo do Augusto.
Às vezes eles despirocavam mesmo, como certa vez que tomaram cada um metade de um daqueles ácidos feitos na USP e tiveram uma viagem do tipo Lucy in The Sky With Diamonds8. Augusto viu Anabelle se transformar em uma pantera negra enquanto transavam na penunbra, e depois, ao abrirem a janela do quarto, os dois viram o céu nublado da cidade brilhar como um algodão doce de diamantes dourados reverberando as luzes de sódio das antenas da Avenida Paulista (relato esse conforme eles me contaram posteriormente).
De outra feita, num amanhecer de sábado, saindo de uma noitada pelas boates moderninhas da cidade, eles foram comer pastéis na feira do Pacaembu e depois resolveram ir até o Pico do Jaraguá, chegando lá com o sol já alto, vestidos com aquelas roupas estranhas com que saíam à noite. Eles não sabiam o caminho e, em vez de irem direto pela Rodovia dos Bandeirantes, se perderam lá pelos lados de Pirituva. Todas vez que paravam para pedir informações, aproveitavam para tomar uma cerveja naqueles simpáticos botecos de bairro.
Chegaram ao alto da montanha no meio da manhã, subiram até as torres de televisão e ficaram olhando em silêncio para a ameaçadora cidade lá embaixo, cinzenta e imensa, sem as brilhantes luzes da noite que tanto os atraíam.
Numa outra vez, foram a uma grande festa de uns amigos nossos na Rua dos Ingleses, completamente “montados” (que era o termo usado para definir quando alguém saía muito produzido), usando roupas que tinham sido feitas para o último desfile da Monster´s. Anabelle usava uma capa parecida à da madrasta da Branca de Neve, feita de faixas verticais com as cores do arco-íria LGBT, e uma coroa igual à da Estátua da Liberdade. Augusto, por seu lado, vestia calças-pirata, um colete de couro com argolas de metal, no estilo sadomasoquista, e um chapéu tipo egípcio. O casal “abalou” na festa, e Anabelle chegou a ser chamada de “raínha” e “absoluta” enquanto os dois circulavam pelo evento. Depois foram dar uma esticada na ruazinha do New York Bar, nos Jardins (na verdade, tinham ido buscar um pouco de pó). Como na época essa rua ficava tomada pelo pessoal roqueiro e pelos grunges9, aquela moçada não perdoou quando viu a dupla exótica “desfilando” ali com aquelas roupas esquisitas, e vaiaram o casal, dizendo um monte de impropérios e bobagens, mandando-os irem embora para o Club Massivo. Os dois se mandaram de lá rapitxinho.
Pouco tempo depois, Anabelle decidicu abri sua loja nas noites de quinta a sábado, para aproveitar o movimento que havia nesses dias na Alameda Itu por causa do Club Massivo. Era o auge da agitação LGBT que tomara aquele pedaço dos Jardins desde o início dos anos 1990, e parecia uma boa ideia abrir a loja nas noites de movimento. A rua ficava cheia de gente: drag-queens, turmas de gays, lésbicas, mauricinhos, patricinhas e curiosos em geral, que desfilavam entres os carros parados pelo trânsito intenso, numa verdadeira festa urbana. Nessas noites, Anabelle e Augusto passavam por lá e ficavam circulando entre a loja, o bar da frente e o Club Massivo, se divertindo com os amigos. Aqueles foram dias de glória para eles. Glory days, glory daaaaays10
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Ao contrário de Augusto, que não se apaixonou pela namorada, mas se comoveu ao vislumbrar a beleza de sua alma, Anabelle estava fortemente apaixonada. Ela achava o namorado lindo, alto, simpático, adorava trepar com ele e, além de tudo, agora ele a estava ajudando em sua fábrica. Ela nunca ligou muito para o fato de ele ser artista plástico e ter feito uma exposição recentemente. Adorava ser vista com ele na noite, dançar e receber elogios, tais como “parabéns pelo gato” e outros do mesmo tipo. Augusto era o seu troféu, um simbolo de seu sucesso como estilista e empresária, enfim, um bibelô. E isso é como uma droga que vicia, e muito.
– Acho que alguém está apaixonado aqui – disse certa vez o Markito, um amigo nosso, ao vê-la obviamente in love com namorado.
– Que sorte você deu, Gringa, de conseguir esse homem... – comentou outro desses amigos na mesma noite, com uma pontada de inveja.
Já as amigas de longa data de Anabelle não entendiam o que um jovem tão bonito como Augusto vira nela, e sempre pergutavam o que ela tinha feito para segurá-lo.
– Você deu uima bela chave-de-buceta no garoto, hein Bela? – costumava brincar sua amiga Nina.
E Anabelle ria, toda feliz, também não entendento muito bem o que se passava com Augusto, mas sabendo que ele, no fundo, gostava dela.
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Augusto, além de artista plástico, também tocava violão e escrevia poesias. Esta foi escrita para Anabelle, que a mostrava a todos os amigos, como prova do amor que seu namorado sentia por ela.
Poema para a Capetinha
Conheci uma menina
de olhos grandes
perninhas grossas
que fala engraçado
e adora dançar
Ela é um pouco louquinha
mas me faz feliz
com sua alegria de viver
seu sorriso
a minha menina
Ela mesma não sabe
que sem querer já entendeu a vida
e simplesmente brilha e ri: hi hi hi hi
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O casarão da Rua dos Franceses abrigava Anabelle, Augusto, Jerônimo e o Dinho, sem contar os “agregados” que passavam algum tempo no andar da garagem por não terem onde morar na cidade, graças à boa vontade da estilista, que nunca negava guarida a ninguém. A casa virou um tipo de comunidade, num movimento de vai e vem que nunca parava.
Enquanto Augusto fazia pequenas reparações no imóvel, várias vezes ele ouviu ao longe um grito lancinante de Anabelle, como se ela estivesse sendo assassinada, e ele, ao ouvir aquilo, ia correndo em seu socorro, para constatar que tudo aquilo tinha sido causado por uma simples barata e que a namorada subira em cima de uma mesa ou cadeira, refugiando-se e gritando histericamente por causa de daquele “bicho horrível”. Então ele ia atrás da barata, dava um pisão nela, livrava-se dos restos mortais, limpava o chão e pronto: Anabelle podia descer da mesa. Apesar da sua bravura, ela, no fundo, tinha fobias e delicadezas como todas as outras mulheres.
Passados esses contratempos com as baratas e outros pequenos problemas do casarão, o casal passou a receber os amigos para almoços e jantares, para os quais costumavam preparar pratos diferentes, como lulas recheadas ou à romana. Lembro de um domingo em que eles fizeram um grande churrrasco, e toda aquela “máfia” dos amigos deles apareceu. No começo da noite, quando todos já estavam bastante animados por causa das cervejas e caipirinhas, começou o ensaio da escola de samba Vai Vai, que passava pela rua bem abaixo do casarão. Da varanda dava para ver o desfile, e aí o pessoal decidiu descer para se juntar à bagunça, que seguiu até a quadra na Praça 14 Bis, onde o ensaio terminava. Eu estava ao lado de Anabelle, que ria e dançava ao som da bateria, se entregando ao momento com aquela sua famosa alegria de viver, que acabava contagiando todo mundo ao redor.
Foi nessa época que Augusto começou a fazer sushis e sashimis. Ele tinha aprendido a técnica ao observar os cozinheiros trabalharem nos restaurantes japoneses da Liberdade, e era comum então Anabelle e ele chamarem os amigos para um jantar oriental. Enquanto Augusto preparava a comida, todo o pessoal se jogava no grande sofá banana e nas poltronas velhas, bebendo cerveja e conversando, numa cena que lembrava um pouco a Silver Factory11 de Andy Warhol.
Passou a ser comum os amigos do casal se encontrarem no casarão da Rua dos Franceses antes de saírem para dançar e também quando voltavam da noitada. O problema é que sempre aparecia alguém com cocaína, que era esticado na providencial mesa de vidro no centro do quarto do casal. Foi nessa época que Jerônimo batizou o local de “A Casa da Noite Eterna”, em referência ao ritmo de entra-e-sai que rolava durante as madrugadas de sábado e domingo.
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Apesar de a loucura ser atraente, e algumas pessoas loucas sejam engraçadas e muito interessantes, o problema é que os loucos tendem a se comportarem quase sempre – e não poderia ser diferente – como loucos.
A primeira vez que Augusto teve noção de que a loucura de Anabelle era real (apesar de todo mundo o ter advertido de que ele estava namorando como uma louca) foi quando ela tentou se jogar do viaduto da Rua Galvão Bueno, bem ao lado do Arco da Liberdade, aquele portal vermelho que marca a entrada do bairro japonês de São Paulo. O casal tinha ido jantar no Yamamoto, e Anabelle entornou um monte de saquês, perdeu a linha e acabou dando um showzinho no restaurante. Após saírem, ele a levou para andar um pouco, na tentativa de amenizar a bebedeira dela, mas aí ela começou a dizer que queria cocaína, que queria um pó de qualquer jeito, e ele respondeu que não, que era hora de ir para casa. Foi quando ela surtou e trepou na amurada do viaduto, tentando se jogar na autopista lá embaixo. Augusto pulou em cima dela e a abraçou, ficandos os dois apoiados no para-peito, enquanto ela gritava:
– Me solta, me solta. Eu quer um pó!
Augusto a abraço com força, dizendo que estava tudo bem, até que ela finalmente se acalmou. Ele nunca soube se aquilo havia sido fingimento ou se ela tentara mesmo se jogar do viaduto. Numa hora dessas, é melhor não arriscar.
Também nessa época começou a descobrir o ciúme patológico de Anabelle, Certa vez, na Sra. Krawitz, ele estava tomando uma bebida no bar, quando uma garota que conhecia de vista sentou-se a seu lado e puxou conversa. Eles estavam batendo-papo não fazia nem um minuto, quando Anabelle apareceu enfurecida e saiu agredindo a menina:
– O que você tá querendo com meu marito, sua piranha? – e se postou entre ela e Augusto, que, sem entender nada, saiu andando.
Ele não gostou nada daquilo, pois, segundo sua ótica cartesiana, não havia dado nenhum motivo para Anabelle ter ciúme. Foi embora sozinho, puto da vida, andando de Santa Cecília até o apartamento de sua mãe, que ficava no Jardins, enquanto o dia clareava. No caminho, jurou para si que não queria mais saber daquela mulher louca.
Porém, enquanto andava, foi aos poucos de distraindo com a arquitetura daquela parte da cidade, com os anjos tocando clarinete na Igreja do Coração de Maria e com os prédios coloridos do arquiteto Artacho Jurado. Ao chegar em casa, já não sentia mais raiva da namorada. Ele aprenderia ao longo dos anos que uma das principais características do amor é a impossibilidade de sentir por ódio ou raiva da pessoa amada, não importa quão grave tenha sido a ofensa recebida.
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Apesar do ciúme patológico de Anabelle e do pavio-curto de Augusto, os dois se davam bem e eram muito felizes juntos. Suas personalidades eram completamente diferentes: ela era um pessoa forte e cheia de vida, e ele, frágil e com tendências depressivas, mas eles se assemelhavam muito nos pequenos detalhes que tornam a convivência de um casal fácil e prazerosa: gostavam do mesmo tipo de música, das mesmas comidas, de dançar, do mar, de beber e tinham também aquela tendência de viver o momento sem levar em conta o futuro.
Augusto se rendeu ao amor que sentia por Anabelle, apesar de ainda não ter uma noção clara de que aquilo era o amor verdadeiro. Por seu lado, ela estava apaixonada e vivia como tal, num estado de completo embriagamento e leveza. A felicidade dela era tão grande, que costuma dizer para ele:
– Te amo tanto que dói.
Os dois se entendiam na cama, na mesa e até no banho. Era comum eles se banharem juntos, e Augusto costumava passar creme esfoliante nas costas dela, que tinha a pele daquera região do corpo com muitas marcas e protuberâncias, segunda ela, causadas por todas as drogas que tinha tomado na vida. Anabelle era a “criança” de quem ele tinha que cuidar, o bebê que viera boiando numa cesta no rio da vida. E ele cuidava.
– Dá beixinho, dá beixinho – ela costumava pedir. E era prontamente atendida por ele.
A felicidade da casa ficou completa quando o Jerônimo trouxe para casa um cachorrinho poodle que era de sua namorada, mas com o qual ela não queria ficar, pois o bichinho era muito agitado e aprontava muita bagunça.
– Tatxinho... Vamos ficar com ele, Gu? – Anabelle perguntou ao namorado, e eles concordaram em adotar o cãozinho.
O bichinho se chamava Nick e logo virou parte da família. Sempre que visitas chegavam, o cachorrinho endiabrado brincava, pulava, tentava morder a bunda delas e não parava quieto. Nessas horas, era comum Augusto se abaixar e ficar rosnando para ele, como se fosse outro cão, e todo mundo ria da cena. Eles sempre levavam o pequeno Nick a todo lugar aonde fossem, na feira, no parque, na praia e até em restaurantes que permitiam a entrada de cães. Também nessa época era comum alguma amiga de Anabelle deixar a filha ou uma sobrinha para passar a tarde com eles no casarão, e era incrível ver como as crianças adoravam a gringa e se comunicavam com ela, talvez por sentirem que ela era um tipo de criança grande.
Um pouco depois, Anabelle viajou à Europa para pesquisar tendências de moda nos calçados, e Augusto ficou tomando conta da fábrica e da loja. Ela mandou um cartão de Amsterdã que dizia: “Ressaca. Indo pegar o trem para Paris. Feliz. P. Agora!”. Essa última parte era uma brincaeira que ela fazia com Augusto quando queria transar: “Pinto Agora”.
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Depois de duas semanas, numa noite de domingo, Augusto foi buscar Anabelle no Aeroporto. Quando chegaram no carro, ela disse que não queria passar a noite na Rua dos Franceses: sua intenção era fazer uma festinha num motel. Estavam na avenida Marquês de São Vicente, local onde há vários motéis, quando passaram em frente da escola de samba Camisa Verde e Branco, quando ela disse:
– Para o carro, para, que eu vou pegar um papelcinho. – Querendo dizer um papelote de cocaína.
– Mas você não conhece ninguém aí... – Augusto observou.
– Deixa comigo, que eu conheço todas as biqueiras.
E lá se foi ela, indo falar com alguns caras que estavam parados na frente da quadra da escola de samba. Cinco minutos depois, ela volta com dois papelotes de cocaína.
Entraram no motel por volta das onze da noite. Anabelle tinha comprado bebidas no free shop, de modo que eles ficaram bebendo e cheirando, fazendo sua festinha particular. Ela também havia trazido algumas perucas, as quais eles ficaram experimentando, brincando e tirando fotos. Depois que o pó acabou, eles continuaram a beber, tomaram um banho de hidromassagem e começaram a transar. Só foram embora no dia seguinte à noite, depois de transar inúmeras vezes ao longo do dia. If you start me up, if you start me up, I'll never stop, never stop, never, never, never stop12.
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Anabelle e Augusto estavam juntos fazia mais de um ano e meio, e foi nessa época que ele estranhamente encontrou uma paz de espírito que raramente tivera antes. Numa visão doce da vida, ele se imaginava no futuro ao lado de Anabelle, pintando seus quadros numa casinha de bairro em São Paulo ou na praia. Naquele momento de relativa serenidade, apesar da cocaína e da loucura da noite, ele escreveu um de seus últimos poemas, no qual mostra um otimismo raro em suas poesias (e que talvez não tivesse mesmo razão de existir).
É bom quando não acontecem acidentes nas estradas
e todos voltam para casa.
É bom quando há justiça
e irmandade
e boa vontade.
E é bom ver essa boa vontade gerando bondade.
É boa essa sensação de esperança
e esses momentos em que a vida parece valer a pena.
Muitos anos depois, quando lhe perguntavam por que tinha parado de escrever poemas, ele dizia que descobrira que não tinha talento e que ninguém deveria a se meter a escrever, a menos que sua poesias saiam de você de forma expontânea, como urina ou fezes, e que as pessoas gostem delas.
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A vida teria continuado daquela maneira leve e feliz caso Augusto não tivesse se viciado em cocaína e sofrido dois princípios de infarto. O primeiro aconteceu num sábado depois que ele voltou do Guarujá, onde tinha ido surfar com um amigo de infância. Na capital, os dois começaram a beber cerveja e acabaram indo pegar um pó. Eles ficaram cheirando até as nove da noite, quando Augusto foi para a casa da rua dos Franceses.
Chegando lá, encontrou Anabele com duas amigas, a Nina e a Sandra, e, adivinhem, elas também estavam cheirando. Como todo viciado, Augusto deu uns “tiros” com elas. Depois que as duas haviam ido embora, ele começou a sentir seu braço esquerdo doer e formigar, a dor começando a tomar conta do lado esquerdo do seu tronco, e foi quando soube que estava tendo um infarto. Começou a tomar leite, imaginando que aquilo iria ajudar, mas a dor só aumentava. Foi quando Anabelle achou melhor levá-lo a um hospital.
Saíram às pressas, ele levando uma caixinha de leite longa-vida, que ia tomando aos poucos, e foram parar no hospital Nove de Julho (por ironia, o local onde ele havia nascido). Quando foram atendidos no pronto-socorro, a dor no coração de Augusto diminuíra, e, ao falar com o médico, ela havia passado totalmente. O profissional da saúde explicou que a cocaína tinha essa propriedade de contrair as artérias coronárias e causar aqueles sintomas que ele tivera, mas, uma vez que a dor havia cessado e ele estava bem, não havia nada a fazer. Aconselhou Augusto a parar de usar aquela droga.
O casal votou para casa, ele tomou um banho, um calmente e dormiu.
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Nos dias seguintes, Augusto ficou de molho e foi tomado pela depressão. Foi para a casa da mãe, onde se recolheu para se recupar. Sentia dores no peito e jurou se afastar da cocaína. Também foi a um cardiologista, que fez um eletrocardiograma e constatou que ele tivera mesmo um princípio de infarto. Como o médico do pronto-socorro, o cardiologista aconselhou-o a se afastar da droga.
Ele ficou em retiro na casa da mãe por uma semana e, num gesto simbólico, raspou o cabelo, para que sua crânio pelado o lembrasse do perigo de cheirar. Então voltou a trabalhar, ficou longe do pó por um mês, mas, como todo viciado, acabou recaindo na droga. No começo, era só um “tirinho” de vez em quando , mas, depois de um tempo, caiu na velha rotina, se esquecendo de que estava cutucando a morte com vara curta. Ele estava no fundo do poço em que todo viciado um dia chega, mas não conseguia parar com a droga. Comentou com a namorada que os dois precisavam sair daquela vida, mas Anabelle não ajudava muito, pois achava que cheirar não era tão perigoso se comparado com o terror das injeções na veia, problema esse que havia superado.
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A situação ia se agravando, e Augusto cheirava duas ou três vezes por semana. Foi quando começou a entrar em parafuso e pensou em se afastar daquela vida, o que significava se afastar de Anabelle. A morte de Kurt Cobain13, em abril de 1994, soou como um aviso para ele: cai fora dessa, cara!
Por causa do pó e dos ciúmes de Anabelle, os dois brigaram feio no final daquele mês, e Augusto decidiu se afastar definitivamente dela. Mas a promessa durou poucos dias, exatamente até o feriado de primeiro de maio, quando ele viu na TV o acidente de Ayrton Senna em Imola.
– Puta que pariu, o Senna morreu! – ele disse para a mãe, que estava na cozinha, assim que assistiu à batida do carro contra o muro da pista. E batata, o ídolo seria dado como morto algumas horas depois. A angústia tomou conta de Augusto (assim como da maioria do brasileiros) e a primeira coisa que lhe ocorreu foi ligar para Anabelle, pois só ela poderia aliviar a tristeza daquele momento. E assim eles fizeram as pazes mais uma vez.
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O segundo infarto de Augusto aconteceu quatro meses depois do primeiro. O casal havia saído num sábado, se encontrara com nossa turma no bar na frente da Monster's, depois foram conosco para a Sra. Krawtiz e no começo da manhã fomos todos para o apartamento do publicitário Zezito Coimbra, onde ficamos bebendo e cheirando. Eu fui embora depois do meio-dia, mas o pessoal continuou por lá. No começo da tarde todos “capotaram” e só foram acordar no começo da noite.
Anabelle e Augusto tomaram uma cerveja para cortar a ressaca e depois foram para a rua dos Franceses, onde transaram, jantaram, tomaram alguns calmantes e foram dormir.
No meio da madrugada, Augusto acordou sentindo mais uma vez aquela dor no braço esquerdo, o tronco paralisado, obviamente tendo outro enfarto.
– Vou morrer, vou morrer! – ele dizia com a mão sobre o peito, visivelmente em estado de choque.
Anabelle tentou acalmá-lo, o levou ao banheiro e o colocou embaixo do chuveiro. Ele se sentou no chão do box e procurou respirar fundo, para se acalmar.
Em resumo, depois de meia hora no chuveiro, a dor começou a passar. Ele tomou leite com açúcar, deitou-se na cama, e Anabelle ficou lhe massageando o peito, até que ele adormeceu. No dia seguinte, ele entrou em parafuso novamente e decidiu que tinha que sair daquela merda em que se encontrava.
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Quando finalmente decidiu ir embora para a Europa, nada mais pôde segurar Augusto em São Paulo. Ele sabia que corria perigo por causa da cocaína e que não havia como sair daquela roubada continuando na cidade: para todo lugar que se virasse, o vício o perseguia. Ele só tinha uma certeza: precisava cair fora para salvar sua vida.
Tudo aconteceu muito rápido depois que tomou a decisão de ir embora: vendeu as poucas coisas que tinha e, para arrumar um pouco mais de dinheiro, furtou uma moeda de ouro de sua mãe, o que no total lhe rendeu uns 800 dólares. A passagem foi comprada no cartão de crédito de sua tia e madrinha, e em menos de duas semanas tudo estava pronto para a viagem. Ele tinha dois amigos que moravam em Milão e seu plano era se mandar para lá. Depois iria para Londres, onde ficaria algum tempo.
Os planos eram meio confusos, porém ele não podia voltar atrás. Mas havia Anabelle. Ele sempre imaginara aquela cena triste no dia em que a abandonaria no aeroporto, e finalmente ela aconteceu.
Anabelle levou o namorado até o aeroporto, junto com a mãe e o pai dele, que viera do Rio, onde morava, para se despedir (e também para trazer um pouco de dinheiro para ajudar o filho). Na noite anterior, o casal fizera uma festinha de despedida, por isso ele embarcou ainda de ressaca, confuso e ao mesmo tempo aliviado. Havia mentido para a namorada, dizendo que iria ficar pouco tempo fora, mas a verdade é que ele não pretendia voltar tão cedo.
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