

Cilene @Cilene
Isso Aqui Meu Senhor é uma Carta ao Amor
Na dobra de um lençol revirado;
3h23 da manhã
Querido Amor,
te escrevo com as mãos frias
e o coração - que te dei - em minhas mãos
(ainda batendo)
às vezes acho que é por você
às vezes acho que é apesar de você
te nomeio querido, porque não sei como se saúda o Amor
e, como se presenteia o Amor?
com flores?
com um olhar em silêncio no ponto do ônibus?
seria com o susto de reconhecer a si mesma em outro corpo?
em outra risada?
em outro abandono?
oi, amor
oi
seria isso?
um aceno?
uma vertigem?
um poema escrito errado?
o seu corpo, Amor
é morno e confuso
é a cama quando ainda tem o cheiro dele
é o braço que aperta quando você diz que vai embora
é o eco de uma risada no caminho do teatro
no dia que você esqueceu de trancar a tristeza do lado de fora
e quando você falta
é como se todo o oxigênio do mundo tivesse voltado pra estrela que pariu isso tudo
a gente ofega, ofende, reza
a gente jura que não vai mais
e vai
e volta
e sangra
sei pouco sobre você
sei que
“um dia” é a sentença da esperança
uma quimera cruel e fria disfarçada de motricidade
e quem diria que “um dia” eu ainda iria a este amor
e que, sem expectativas, um sorriso me atravessaria, surpreendendo meus lábios já tão secos de utopia
agora, tão desprovidos de dignidade
você me quebrou, Amor
me reescreveu sem avisar que ia mudar o enredo
me ensinou que
ninguém ama impunemente,
que o peito é casa mas também é escombro
mesmo assim
mesmo assim
mesmo assim
e talvez só por isso
não sei viver sem você
e essa é a mais triste das verdades
a mais bonita também
sem você eu como
mas não me alimento
respiro
mas não suspiro
ando
mas não chego
você Amor, é incêndio e nascente
é ausência e altar
e eu… sou
essa mulher com olhos cheios de água
pedindo outra vez
para ser acolhida nos seus braços
mesmo sabendo que
você às vezes também não sabe abraçar
nesse dia dos namorados,
te escrevo com tudo que restou
e tudo que falta
Sua sempre,
Sereia

Cilene @Cilene
Assassina
Matei noventa e nove
Com mãos firmes, olhos marejados,
degolei futuros como quem corta flores lindas demais para durar
Feita de carne e dilema,
visto preto desde que aprendi a decidir
Há noites em que ouço passos
são eles: os caminhos mortos,
arrastando promessas pelas sombras
e me chamando de volta pelo nome
que eu teria se tivesse sido outra
Caso ninguém tenha lhe avisado,
Insisto: escolher é um ato terminal
A vida não admite apelação,
nem visita íntima ao “e se”
O diabo desta vida
é que cada escolha feita
me faz cúmplice da estrada trilhada
e viúva de todas as outras
Sinto o cheiro do arrependimento
antes mesmo que ele brote em meus escombros
A nostalgia lambe meus pulsos nas madrugadas em que sonho com os rostos que não irei conhecer
Mato futuros com a frieza de quem ama
Não de desamor,
mas de sobrevivência.

Cilene @Cilene
Feroz
Não se pode amar um leão sem ajoelhar-se diante da fome
Amar um leão é despir-se com olhos cravados nos músculos que anunciam a violência
É sentir o hálito quente no pescoço exposto, é pedir a boca que dilacera
Amar um leão é estremecer com o faro lançado entre as coxas como quem sabe onde a alma geme
Não se ama um leão sem a necessidade das garras, das presas e de saciar o ventre aberto
Amar um leão é sentir prazer na vertigem da condenação dos seus olhos
Amar um leão é esperar de quatro na mata escura sem se decidir se hoje será a leoa ou a corsa
Na selva da pele o desejo é uma fera sem jaula.

Cilene @Cilene
Lua de Sangue
Se te despisse com os lábios e te vestisse com desejo, de que cor seria o prazer?
Lua, és tu vermelha de timidez ou sangras os cortes dos que se amam sem poder?

Cilene @Cilene
Luz dos meus olhos
Passo os dias e as tardes te procurando
À noite, ainda estou calculando
Quantas aeronaves continuam pousando
Sem você chegar
O escuro é ainda um grande amigo
Escondo nos dias meus
A luz dos olhos teus
Sinto sua falta e ninguém pode ver

Cilene @Cilene
Adiantei o pedido: uma água com gás, dois copos com limão fatiado e gelo.
Ele chegou. Pedi dois expressos sem açúcar.
Nos cumprimentamos como dois cotovelos adolescentes: ossudos e desajeitados.
Meu rosto quase ofereceu a boca. O hábito, às vezes, é mais forte do que a vontade.
Ele olhou para os nossos copos com olhos tristes.
- Você está bem? - dissemos ao mesmo tempo e sorrimos olhando para baixo, sem mostrar os dentes.
- Você primeiro. - Meneou com a cabeça.
- Tudo indo. É estranho. - Respondi.
- Eu também, muito estranho. - Ele tomou a vez.
Fiquei em silêncio. Tomei a água toda. Troquei a cruzada de pernas.
Coloquei a pasta com os papéis sobre a mesa. Peguei uma caneta na minha bolsa e levei a mão ao papel.
Ele a segurou. Olhei para nossas mãos juntas, senti o calor tão familiar… apertei a palma de sua mão com as pontas dos meus dedos, olhando para ele. Olhei de volta para as mãos, balancei a cabeça negativamente, com pesar.
Assinei e passei para ele o papel e a caneta.
Ele assinou olhando dentro dos meus olhos, sem olhar para o papel.
Não precisei piscar para as lágrimas rolarem dos meus olhos.
Levantei.
- Obrigada. Beijei-o na bochecha demoradamente.
- Já vai? Não tomou seu café! Ele alertou-me.
- Esfriou.
Eu saí. Olhando para trás, ele me assistia ir embora. Pensei que, assim como o café, se a gente deixar, o amor também esfria.

Cilene @Cilene
Conto inspirado em um dos contos de Delta de Vênus

Cilene @Cilene
Insatisfação
Faz tempo que não escrevo safadezas
Também elas não me satisfazem
A carne que tem memória do seu feitiço
Ou a memória que tem o cheiro da sua carne?
Não sei…
Sei apenas que existem esses dias que existo menos
subjugada pelos meus desejos
Eles protestam o que querem e só isso poderá satisfaze-los
O que quero não posso me dar
Tudo grita dentro de mim
Tudo calo
Você não vê?
Parece que vou rachar ao meio
Só por te querer