"Não existe defesa mais poderosa do que os guerreiros devotos da guerra e disciplinados por esta terra."
Xarlesxis I, Centurião da IV Corhorte da Legião de Camor.
A guerra jamais vai embora, Roinan sofre das consequências do conflito em sua terra amada, a república não consegue ultrapassar as fortalezas de invictas de Polermos. Era o fracasso de uma guerra, centenas de guerreiros cobertos pelos mantos de suas capas sendo enterrados em comunais cemitérios, enquanto os sobreviventes voltavam com suas almas rompidas e outros com seus pedaços faltando.
A república entendeu que manter sua ofensiva era um suicídio gradual, um ato da mais pura ignorância e desdém com a vida de seus guerreiros. A anunciada derrota ecoou por todos os cantos da república. Perder o conflito foi um choque de igual valor à formação daquela grandiosa nação, que, por infeliz destino, se mantinha confinada a uma península tão pequena. Estavam presos dentro de suas próprias fronteiras, dependentes de nações desconhecidas e mercadores ousados que desafiavam as águas tempestuosas de Oceanus. O desespero e a angústia tomavam todo o senado, que via que sua legitimidade dependia da boa vontade de seus deuses...
A antiga floresta de Camor, um dos pilares de criação da república centuriana, deixou de ser uma verdejante erma terra de goblinoides para uma das províncias militares mais pujantes. A guerra para seus cidadãos não era somente um ato, mas uma filosofia, de evitar o comodismo através do conflito, de andar em trono da batalha, das armas e da hierarquia para dessa forma ascender como humanoide, assim como o Deus da Guerra fez.
Contudo, mesmo com tal antecedência, a guarda de Camor se mostrou omissa perante o conflito de Polermos. Levantando grande dúvida sobre a fidelidade da província, o senado deu início à grande desconfiança das ações após a inércia da terra goblin. Não se sabia que os resultados poderiam vir, cada passo falho poderia resultar em uma brusca mudança de poder. A suspeita pairava pelas cadeiras dos nobres, como uma fumaça que tomava tudo que estava abaixo do teto de mármore daquela grandiosa instituição.
Os senadores precisavam de uma resposta rápida, não havia tempo a ser contemplado, era necessária uma ação, pois esperar a vontade dos deuses era implorar sua própria ruína. Virgilius, Nobre Orque e senador da Capital Centuriana, foi o voluntário desta empreita, sua nota pública pelas respostas era vista como um ato de bravura entre os nobres tementes por suas cadeiras.
Pegou seus servos e montou sua própria comitiva para Camor. Levou consigo um de seus escribas, sete servos e seis de seus mais fiéis guardas da capital, entre eles Fabius, um antigo hobgoblin que outrora foi guarda de seu pai. O começo da viagem foi dado uma modesta reunião, com muitos nobres menores e alguns senadores agradecendo sua ação.
A partida foi tranquila e célere, as estradas agora ligavam as principais cidades da república, longevas pavimentações que se perdiam no horizonte formadas por pedras, calcário e cinzas dos vulcões que firmavam a estrutura que servia como as raízes pulsantes daquela nação.
Em meio ao caminho trilhado, a
preocupação tomou a face do nobre, angustiado pelo incerto futuro. O guarda de
seu pai estava ao lado, marcado pelas inúmeras guerras e conflitos desde os
tempos da fundação, via seu senhor cabisbaixo, ele se inclinou para vê-lo mais
de perto, e com sua notória calma, rompeu o silencio de dentro do carro.
— Meu senhor, o que te afliges tanto? tua face mostra que algo está torto.
Parece que está a pensar demais, como se estivesse planejando algo tão grande
quanto um cerco a uma cidade. — O senador, afundado em seus pensamentos,
teve sua atenção quebrada pelo fiel escudeiro de seu pai.
— Como não ficar aflito? Fabius. Dias atras vi o mais puro desespero tomar a casa de toda nossa legislatura, aonde os sábio e os poderosos deveriam agir com firmeza ser transformada em um lugar de desesperados e tementes.— Virgilius tinha uma voz forte, emotiva e carregada de energia — Estamos agora fragilizados, o berço de nossa civilização parece fraco só por conta da derrota de uma guerra! vi com meus olhos os pilares serem pichados ofensas a minha pessoa, multidões vindas dos portos e dos campos apenas para reclamar o porquê que seus filhos não voltaram e não foram honrados... Tudo isso por conta de uma única cidade que sequer teve um muro tombado. — Sua irritação era tão clara quanto seus gestos, parecia um feiticeiro a conjurar uma poderosa magia.
Sentou-se novamente olhando pela janela os campos de centeio sendo lavrados por inúmeras famílias — Pior de tudo é saber que alguns de nossos gládios sequer saíram de suas bainhas, isto é, uma lastima, uma vergonha aos deuses da guerra.
Fabius atenciosamente, escutou cada palavra dramática
dita em total silencio, vendo a honrosa e fervorosa preocupação de estado se
entrelaçar ao mais angustiado desabafo. O hobgoblin tocou o ombro de seu
senhor, mantendo sua idosa mais serena face de veterano.
— Acalme-se, meu senhor, em breve chegaremos a Camor e de lá iremos discutir
com vossas lideranças. — Seu tom apaziguava um pouco as neuroses do jovem
político — Eles devem ter uma boa justificativa para motivar seus atos.
Devo te lembrar que em tempos passados eles ajudaram a formar Centurion. Não
seria sábio da parte deles, simplesmente deixar tudo que demorou séculos a se
construir e nos trair, entende?
A desconfiança ainda reinava a mente de
Virgilius, que duvidava das verdadeiras intenções da província
goblinoide.
— E se... eles fizerem isso? — O velho guerreiro coçou sua barba falha
pensativo.
— Aí nós estaremos em guerra. — O senador concordou com a cabeça receoso,
ainda preocupado com a fala, suspirando nervosamente com o que foi dito.
— Tens razão, quando chegarmos eu me certificarei em saber do próprio
legado. —
— Perfeitamente Senador.
A viagem não tardou, após um dia pelas rígidas ruas de pedra eles chegaram as bordas da grande floresta. Densa, frondosa, suas copas altas e largas escondiam a grande legião e junto dela a sua cidadela, os arbustos escondiam as casamatas e o verde ofuscava as grandes muralhas de troncos que cercava a fortificação.
Mesmo os civis que estavam fora
da proteção dos muros, passavam despercebidos, suas peles suas vestes de tons
pasteis os integravam a flora local apenas os passos eram escutados. Fabius
contemplou aquilo vendo certa graça
— Eles parecem não gostar muito de atenção. — Enquanto um sorria o outro
era tomado pela paranoia. Um som rangia por toda a floresta, os portões
raspavam o chão com força enquanto suas cordas e correntes tensionavam ao mover
das alavancas e das polias.
A cidade se revelava aos olhos dos diplomatas, os tambores anunciavam a chegada da comitiva, cornetas e flautas reverberavam por todo o distrito. Era igual à invocação de um portal, no interior tudo mudava, as árvores eram alinhadas e transformadas em caminhos suspensos para os arqueiros e defensores. O barulho era alto, revezando dos gritos dos tutores para seus alunos exaustos em seus treinamentos e o bater das bigornas que nunca paravam de trabalhar.
Aquilo não era uma cidade, mas sim um quartel de proporções colossais. Mesmo com toda autoridade, não escaparam dos procedimentos comuns da legião, sua comitiva foi revirada e seus homens foram todos verificados, sendo tirados deles quaisquer símbolos que não fossem do próprio aramam. Para Virgilius, aquilo era um insulto, uma afronta à sua pessoa e à sua família. O mesmo se manteve calado, engolindo para si a raiva.
O carro passava pelo chão duro, parando em frente a um grande estábulo ao lado de uma estalagem. A estrutura era incomum, os telhados tinham calhas e toda a água descia por dutos até áreas com plantas ou para dentro de grandes barris de coleta. Até mesmo o chão da estrada interna era inclinado para evitar o acúmulo de poças. A cidade era inteiramente uma obra de engenharia planejada.
Os membros da comitiva ficaram em choque, mesmo a capital sendo o antro da riqueza e da civilidade de toda a república, não era tão limpa quanto Camor. Virgilius alertou seu escriba a anotar sobre aquilo, era algo impensável de uma terra que antes era uma aglomeração de diversas tribos antes rivais. E ainda deles eram apenas cobrados soldados que vinham tão bárbaros quanto os ordareos do norte.
Uma realidade contrastante ao
imaginado, parecia até que estavam sob efeito de ilusão.
— Esses são os ditos guerreiros bárbaros que ajudaram a fundar Centurion? —
Sim, meu senhor. Estamos em Camor. — O senador estava inconformado, pondo a mão
à frente de sua própria face, não de pesar, mas de choque. Aquilo era
totalmente diferente de tudo que havia escutado de seus colegas da nobreza. O
guerreiro se virou ao Orque com surpresa — Está tudo bem, meu
senhor?
Ele parou e consentiu com a cabeça, ainda
desnorteado com tanta informação à mostra.
— O que fez... uma cidade tão poderosa... recusar de auxiliar no cerco? — O
pensamento se expressava em sussurros, que poucos se atentavam a ouvir. Apenas
o guarda que estava ao seu lado o focava a atenção.
— Vamos até o Legado, lá você vai descobrir.
Não tardou para uma escolta aparecer, diversos legionários com suas armaduras polidas e em formações alinhadas saudavam o senador em fileiras, começando dos pequenos goblins e terminando nos gigantes bugbears. Mesmo o mais bestial entre as peles verdes estava tão arrumado quanto uma casa de uma boa dona.
De lá seguiram, protegidos pelos escudos que os cercavam, em cima de pequenas charretes que os permitiam observar mais atentamente a magnífica arquitetura daquela cidadela. Virgilius estranhou quando passava pelas vielas e estradas, não havia lixo, sequer dejetos..., mas também não havia crianças a brincar e tampouco civis a trabalhar pelos lados.
Curioso, este questionou o charreteiro.
— Onde está o povo dessa cidade?
— Nas zonas civis. — A resposta veio seca e direta, como ler uma placa. O
senador estranhou a fala, ainda mais confuso com o que foi dito. Eles
continuaram aquela viagem, passando por diversas outras localidades.
Algumas árvores estavam marcadas por símbolos, às vezes com legionários com escudos pequenos e puglios prontos para o combate. As casas, maioria das vezes, eram unidas, como se fossem uma parede, sem forma de entrar, não havia becos e tampouco corredores. As ruas não tinham nomes, apenas marcações no chão em pedra representando símbolos simplistas, muitas vezes de animais.
Chegaram ao centro da cidade e se depararam com a fortaleza maciça de pedras encaixadas e ligadas por barro e uma massa escura que as fixava. No topo daquelas rochas havia torres com balestras, escorpiões, catapultas e uma gigantesca pira cercada de diversos cristais. À frente das fundações maciças de rocha, um grande lago cercava toda a estrutura e a única entrada eram as pontes que saiam da fortificação.
O senador tomava uma face séria, a cidade deixou de ser incrível e confusa para seus olhos, aquilo não era uma cidade, mas sim uma zona preparada para guerra, trazendo consigo o mais puro desconforto. Seu guarda fez sinais para alterar a face, já que, da mesma forma que sua voz entonava o drama, suas feições não escapavam da mesma habilidade.
O descer das pontes e a abertura das grandes grades de ferro era o sinal da entrada, as tropas que os cercavam se afastavam, entrando em uma formação em caixa, à espera das próximas ordens. Ao fim do descer da ponte, um centurião aparecia do outro lado com uma pose exótica e elegante.
Fabius arqueou sua sobrancelha
enquanto trocava sussurros com seu mestre.
— Tem algo errado com ele... — O orque concordou sutilmente.
— É notório... Por que ele está ali? — Ambos olharam para o centurião exótico,
com um ar suspeito. Ao tempo que Virgilius ficava cada vez mais incômodo com a
situação.
— Não seja impaciente, meu senhor, em breve vamos resolver isso e ir embora
desse lugar.
— Espero... eu espero.
Eles andaram pela ponte, se aproximando do centurião, o vendo mais de perto, sua pele morena, com cabelos pretos e curtos, sua face era isenta de barba e tampouco de cicatrizes em seu rosto, a única marca de batalha era a falta de um sutil pedaço de sua orelha direita. O mesmo, com um ar cortes, fazia uma saudação à Aramam, que foi respondida de igual forma.
— Bem-vindo a Camor, caro nobre! O que traz a
visitar nossa bela cidade? — Seu tom bem-humorado e muito tranquilo era atônico
ao resto do lugar, parecia ver aquilo como algo agradável ao invés da rigidez
que era imposta por aquela estrutura.
— Vim aqui por assuntos de estado, centurião. — Com um gesto calmo, o senador
indicou com a cabeça em direção ao jovem que o recepcionava. — Qual teu nome? —
das mãos do senador, um sutil sinal era feito para o escriba que pegava seu
pincel à espera de fazer as próximas anotações.
— Sou Xarlesxis I, Centurião da IV Corhorte da Legião de Camor. — Mesmo em anúncio militar, sua voz não mudava, permanecendo na informalidade. O silêncio tomava sutilmente o lugar e ele davam passos ao lado, mostrando que poderiam entrar — Senhores, vamos entrar. Vou levá-los ao legado. — Foram adentrando a estrutura ainda curiosos com o que os esperava., Virgilius quanto mais processava aquilo, mais dúvidas tinha sobre o lugar.
— Fabius...
— Pois diga, meu senhor?
— Isso é normal? — O guarda estranhou a pergunta por um momento, olhando aos
arredores.
— Na verdade... isso é o que acontece quando você dá muita liberdade a um
general paranoico.
Passaram pelos portões, vendo finalmente o interior daquela estrutura, divergindo novamente de tudo que era visto do lado de fora. O interno era um gigantesco campo de pesquisas bélicas, a fumaça dos experimentos alquímicos, ao barulho dos testes de resistência das armas de cerco em sua produção. De um lado, se via magos de guerra treinando seus aprendizes nas artes arcanas e, do outro, o efeito corrosivo de ácidos sobre certos metais.
Aquele lugar era o sonho de qualquer senhor da guerra, um parquinho de destruição em massa pronto para ser usado e testado. Se perdia a conta da quantidade de engenheiros de guerra, sapadores, alquimistas, magos e até mesmo estrategistas de defesa e cerco, juntos como uma delicada malha de fios púrpuras. A surpresa na face do nobre era escrachada, até mesmo os soldados de elite que faziam sua guarda ficavam assustados com a cena.
— Bem-vindos ao grande centro de guerra
Centuriano! Esse foi um dos motivos pelos quais nos revistamos na entrada. —
Xarlesxis dizia tudo de forma bem orgulhosa, sempre com um sorriso moldurado em
sua face.
— Isso ainda não muda o fato de terem feito isso com um membro ativo do Senado.
— Fabius soltava aquela fala antes mesmo de seu mestre, o centurião torceu a
boca, mas não acuou com o fato.
— Fazem parte dos protocolos, feitos por Summanus, nosso senador. Então, não
podemos desobedecer e nem fazer exceções! — A voz animada aos poucos incomodava
mais o senador, que escutava tais palavras com certa desconfiança.
— Está me dizendo que Summanus promulgou isso? Até
para seus aliados? — Virgilius pôs força em sua voz, deixando de parecer uma
mera pergunta para quase uma direta intimação. Xarles parou por um momento,
pondo a mão no queixo como se força a relembrar.
— Sim. Tudo para proteger nossas informações.
As informações dadas aos poucos começavam a se encaixar, a ausência das forças de Camor, as leis promulgadas por seus nobres e a composição da cidade. Tudo aquilo parecia palco para proteção de algo maior, um plano? Uma arma? Ou uma operação? Ainda não se podia entender o que estava sendo ocultado.
Acompanharam o centurião até onde estava o legado. Grande parte da comitiva não pode ir junto, indo apenas o Senador, o velho guerreiro, o escriba e um dos membros da guarda. Enquanto caminhavam até a sala do oficial, Virgilius percebeu mais uma anomalia naquele lugar: não havia escravos, de nenhum tipo ou serviço, era feito por soldados, ou por servos militares..., mas nenhum escravo.
Cada sala daquele pequeno corredor era numerada apenas no chão, com pedras pequeninas e lisas. As paredes eram em sua maioria de barro e pintadas de branco, a luz era forte ao entrar. Subiram algumas escadas até chegar a um salão de guerra, com um gigantesco mapa da república em tapeçaria. No centro, uma mesa de tática, repleta de ícones, símbolos, cordinhas e papeis, indicando não só onde estavam as tropas da própria cohorte como também a das outras legiões e supostas posições inimigas.
No canto superior estava um bugbear, dormindo, escorado na parede com uma grande clava de madeira reforçada com chapas de ferro. No centro, outro com papeis em mãos, junto dele, seis goblins e quatro hobgoblins discutindo muito formalmente. Todos estavam vestidos com túnicas grossas, cada um com um cajado do formato de um garfo, movendo peças de madeira com estes, em um gigantesco mapa encontrado no centro daquela sala.
Xarlexis brandiu sua voz, chamando a atenção de todos que estavam na sala.
— Meus grandes mestres militares! Temos visitas do Senado! — Todos ficaram quietos com o anunciado, os goblinoides se entreolhavam com seriedade e certa confusão, pois não esperavam uma comitiva naquele dia. Um bugbear, trajado com uma grande túnica escura, saia do meio dos outros, tomando a frente e saudando o nobre.
— Espero que vossa excelência tenha tido uma boa
viagem, se me permite saber... o que te traz aqui? — A voz do grande goblinoide
era trovejante, mas extremamente formal, não mostrava os vícios comuns de seu
povo ou qualquer outro desvio. O senador saudou em resposta com um ar calmo.
— Vim aqui para tratar de questões de estado, muito urgentes para ser claro.
O grande legado concordou com a cabeça e os debates técnicos e movimentos cessaram, com um leve movimento, todos entenderam que era momento de sair e assim foi feito. O bugbear se levantava do lugar onde estava escorado e os estrategistas cada um faziam sua respectiva saudação antes de partirem. Oficial se sentou em uma cadeira ao lado, olhando fixamente para o senador.
— Prossiga. Estou a ouvidos.
Virgilius tossiu por um momento de nervosismo e se
sentou à frente do intimidador estrategista.
— Antes de tudo, como devo te chamar?
— Mauricius.
— Certo... Mauricius, você deve saber que algumas semanas atrás anunciamos
nossa saída do conflito contra Polermos. — Mauricius consentia com a cabeça
silenciosamente.
— Vim aqui, representando grande parte dos senadores, para questionar suas
ações. — O bugbear ficou surpreso, olhou para a porta, vendo que apenas haviam
ficado Xarles e Fabius no recinto, fazendo a devida proteção.
— Perdão? Questionar nossas ações? Que eu saiba, nós
não agimos.
— Exatamente. — O Orque mantinha sério. O Legado consentiu silenciosamente com
a afirmação.
— As outras legiões já nos notificaram dos resultados. Foram mais de mil mortes
só na frente de Roinan. — Sua fala era tão seca quanto suas ações, ele pegou
uma peça, arrumando-a no mapa junto das outras. — E o porquê de querer saber de
nossa ausência?
— É notório que a falta de vocês gerou conspirações em
torno de vossa província. Eles querem saber o porquê de suas armas não irem
auxiliar as outras legiões. — O Bugbear fintou seriamente, coçou o pescoço e
negou com a cabeça como se estivesse pensando em uma resposta inapropriada.
— Eu apenas percebi que ir para a guerra contra Polermos... era ridículo.
A resposta do oficial deu a virgilius ar de ira, este se levantou apontando contra a face do líder das cohortes.
— Ridículo? Estamos presos em uma península sem forma de prosperar, nossos inimigos nos cercam e nos prendem em nossas próprias fronteiras e lutar para libertar a república da última barreira que a impede é ridículo!?! — Sua raiva não se limitou a voz, dando um forte golpe na mesa. — Falar isso é cuspir no tumulo de seus irmãos de batalha!
Mauricius mantinha uma postura estoica, somente levantou uma peça que havia tombado pelo golpe feito pelo senador.
— Sim... é ridículo. — Colocou a peça na mesa novamente, escorando a mão em sua própria bochecha. — Acha que é sábio jogar meus guerreiros para uma morte certa sem qualquer chance de vitória? A cidade que vocês atacaram é atualmente impossível de ser derrotada por meios naturais. Vossas forças esqueceram de estudar seus inimigos e, só pelo fato delas terem números menores, desdenharam e acabaram tendo este fatídico resultado.
Virgilius encarou com surpresa, cruzando os braços
ainda focado no bugbear. Em sua mente, aquele ato de omissão era uma afronta a
toda a república que demoraram tanto para erguer.
— E o que você sabe? Que estudos eram esses que deixamos de fazer e que
resultaram em nossa derrota? Por que Polermos é impossível de ser vencida? — O
Legado se levantou, olhando para o nobre em sua frente, mas voltando sua
atenção à grande tapeçaria que formava o mapa da república.
— Por acaso já ouviu falar sobre druidas?
— Sim, os sacerdotes das florestas ligados aos deuses da natureza.
— Havíamos enviado um relatório para o grande salão de guerra capital, que
Polermos tinha à sua disposição. E por isso, evitamos participar da ofensiva,
pois como pode presenciar... Estamos no meio de uma floresta. — Ele ainda
estava inconformado, mas compreendendo os pontos listados.
— Continue.
Ambos estavam de pé em meio àquele diálogo, Fabius e
Xarlexis trocavam sussurros enquanto seus líderes pareciam discursar um contra
o outro em um jogo político.
— Depois que enviamos esse aviso, fomos atrás de mais informações, para
garantir que era verídica, mas também descobrimos um equívoco...
— Sem enrolamentos, legado, o que vocês descobriram? — O tom do senador era
direto.
— O rei de Polermos é o druida, e os muros da cidade estão vivos.
O Senador parou, confuso com o que acabara de ouvir,
muros da cidade estavam vivos? E como isso era possível? A descrença da fala do
oficial sobre tais informações era notória, aquilo parecia ser algo absurdo.
Druidas eram vistos como aqueles que negavam a civilização, como que algum
deles seria rei de uma nação e controlaria tudo que estivesse nela?
— Como pode confirmar isso? — Virgilius questionou.
— Não preciso confirmar. Só ver os relatos dos sobreviventes e o estado dos muros, eles não caíram mesmo sob jugo de balestras e catapultas. — O Legado pegou um cajado, batendo sua ponta onde estava a cidade invicta na tapeçaria. — Ela está cheia de rachaduras, mas nenhuma pedra sequer caiu.
— Mas pedras não têm vida, como o muro é vivo?
— Na maciça estrutura existem inúmeras raízes e troncos, ele as manipula para
segurarem as rochas e impedirem o rompimento das muralhas. — Mauricius se virou
em direção do senador continuando sua explicação — E para piorar a situação, as
raízes do subsolo trabalha como sentinelas, matando os sapadores que cavam os
tuneis.
A situação se mostrava claramente negativa, cada fala,
cada informação trazia consigo desesperança de que fosse possível vencer a
cidade. O velho guerreiro, tentado pela conversa, se aproximou com uma singela
pergunta.
— Devo pensar que já tentaram usar fogo natural quanto mágico, correto? — O
grande oficial confirmou a fala do sábio guarda.
— O fogo magico é muitas vezes instantâneo, não causando danos severos e o
natural não chega a ficar o tempo necessário para matar a planta... Ainda
estamos procurando meios de vencer a muralha.
Virgilius entendeu finalmente o motivo para a ausência de Camor no conflito, não era uma traição declarada, mas sim uma precaução em busca de forma de vencer a cidade do rei druida. Ainda, sim, seria difícil de explicar isso a seus colegas, que esperavam fervorosamente por um culpado para o fracasso que haviam cometido. Xarlexius que por bons minutos se mantinha calado, se aproximou dos três com seu fixo sorriso no rosto.
— Meu caro senador. — O nobre se virou para ele
repentinamente — Estamos criando uma forma de combatê-los... algo que será mais
eficaz que apenas jogar centenas de homens em um cerco de meses. — O senador
ficou confuso com a fala de Xarles
— E como vocês farão isso? acabaram de me dizer que os muros são atualmente
"invencíveis"?
O Centurião abriu um grande sorriso, enquanto pegava
uma peça de madeira da mesa e colocava do outro lado da grande cidadela.
— Com esse método, os muros podem até serem invictos..., mas a cidadela ainda
precisa de comida... — Ele pegava várias peças pequenas colocando espalhadas
por toda extensão da nação de Polermos — Iremos nos apoiar em uma nova
estratégia, algo pequeno, mas que cause graves danos... eu a chamo de
Armênirilia ou de miniguerra. —
O senador olhou para seu guardião, que apenas sorriu tranquilamente para a situação, e para o Legado com um ar confuso com a fala.
— Uma miniguerra? — O centurião olhou para seu oficial
como se esperasse uma opinião que foi consentida.
— Melhor forma de mostrar, é demonstrando, meu nobre senador. Gostaria de ver
como é na prática?
O foco se voltou ao orque, que se mantinha em silêncio por um momento, como se toda a pressão se voltasse para sua próxima resposta. Sua concordância veio com um simples suspiro. Os quadros saíram do salão de guerra indo para outro ponto da fortificação. Os estrategistas que esperavam para retornar a suas maquinações olhavam curiosos para o senador e seu oficial enquanto os quatro conversavam ainda curiosos com aquele termo novo.
Eles saíram da fortaleza central e foram levados por
carros de guerra até o lugar onde era feita esta prática de miniguerra. O
caminho estava tão desértico quanto o resto da cidade. Fabius já estava
incomodado com aquela falta de civis e questionou.
— Por que a cidade está tão vazia assim? — Mauricius se virou e respondeu.
— Nossa cidade é majoritariamente militar, grande parte dos moradores são
soldados e a outra parte, trabalhadores específicos. Camponeses e servos vivem
nas zonas de proteção ou, como alguns gostam de chamar... zonas civis.
O legado apontava para uma torre de madeira com um sino em seu topo. — A cidade foi criada para ser a mais defendível possível, as ruas são inclinadas e abertas para que possamos sabotar cavalaria e as casas têm seus muros ligados para evitar a criação de frentes novas de batalha. Xarlexius ainda de forma amigável, tocou de lado no guarda do senador — E testamos direto essas defesas, meio que parte da cidade é vazia por conta disso. População não gosta muito dos treinamentos de cerco, ainda mais quando temos a ideia de testar as defesas contra artilharia. — O Bugbear soltou sem querer um sutil riso. Naquele momento, Fabius e Virgilius se encararam, como se estivessem cercados por maníacos em busca de perfeição bélica.
Não tardou para chegarem ao campo de treinamento de "miniguerra". Aquele lugar não era nenhum pouco convencional, ausente de muros, de bonecos de combate, de alvos de palha e sequer havia lugar para pôr as armas e armaduras dos legionários. Havia apenas uma única tenda central, grande e aberta, tinha três entradas e ao centro dela, algumas cadeiras improvisadas em torno de outro mapa de guerra, mas dessa vez contendo apenas os arredores de Camor.
Virgilius olhou de um lado ao outro, só havia som de animais e muito ao fundo o som das bigornas que não paravam de bater. Não tinha sequer uma alma ali além dos quatro.
— Onde estão os soldados? Não vejo ninguém.
— Na verdade, meu caro senador... eles estão aqui. —
Xarlexis estendia a mão rodando, indicando para toda a mata que os rodeava, mas
nenhum barulho, nenhum movimento ou sinal foi feito. O orque procurou atento
por qualquer coisa que referisse a um simples movimento, mas nada aconteceu,
aumentando sua crença de que o centurião não estava são. — Vamos nobre, tenho
algo ainda a te mostrar.
Ou adentraram a barraca, viam-se diversos pontos da cidade detalhados no mapa, o campo de treino não se limitava aos arredores daquela estrutura, mas sim a uma gigantesca área que ia da borda leste da grande floresta até os muros da cidade. Os pontos marcados tinham diversos significados: objetivos, obstáculos, rotas, locais a serem protegidos ou atacados. Nas beiradas da mesa estavam encravadas diversas numerações com riscos em partes, como se aquilo simbolizasse missões bem-sucedidas ou erros cometidos.
— É um mapa magnífico... de fato, mas complexo. Para
que serve isso? — Fabius foi tocado pela curiosidade, enquanto via os ricos
detalhes daquele plano tático.
— São mapas de treino, cada ponto é um objetivo ou missão a ser feita, às vezes
dividimos nossos homens em Conturbenios, assim eles treinam em menores números.
— O senador escutou aquilo confusamente, na maioria das vezes, exércitos eram
gigantescos, conturbenios eram as menores divisões do exército, como isso seria
útil?
— Deixar pequenos grupos de 8 legionários vai nos
ajudar como contra Polermos? — Virgilius questionava aquilo ainda, não
entendendo como poucas pessoas poderiam dar conta de desestabilizar uma cidade.
O centurião se virou ao senador, dando-lhe uma resposta direta.
— É isso que faz a miniguerra ser especial, usamos poucos guerreiros e fazemos
grandes estragos. Enquanto chamam a atenção para gigantescas cohortes lutando
contra outra grande massa de inimigos, os conturbenios destroem plantações,
obstruem estadas, desviam alimentos e munições e além de tudo, enfraquecem os
reforços. Assim, enfraquecemos os inimigos e depois os grandes exércitos
atacam.
— E como isso vai funcionar na prática? Não temos uma
marinha forte para deixarmos diversos homens para o outro lado da península,
além disso, como que vamos garantir que seus homens vão conseguir tamanho
feito? — Xarles sorriu em deboche.
— Mas já conseguimos fazer isso, é só o senhor que não percebe.
O nobre ficava irritado com aquele jeito de Xarlexis, todo momento parecia ver aquilo como uma diversão e não como uma obrigação. Rangia os dentes e cerrou os punhos por um momento, o que mais queria era socar a face do pomposo centurião. Fabius distraído, olhou para a floresta que os cercava e chamou a atenção de seu mestre.
— Meu senhor... poderia dar uma olhada — Virgilius se virou irritado, pronto a baforar a raiva junto de sua voz, até ver o que estava ocorrendo.
Ao se virar na direção que o velho guerreiro apontava, finalmente era possível ver as tropas ocultas, andando e se aproximando da barraca em um andar lento e sutil. O barulho era abafado por suas sandálias forradas de um tecido espesso. Eram dezenas de homens trajando vestes leves e armas menores, vinham de todos os lados, cercando completamente a barraca. O jovem hobgoblin sorriu esfregando as mãos.
— Não existe defesa mais poderosa do que os guerreiros devotos da guerra e disciplinados por esta terra! Contemple a minha Armênirilia! O cohorte invisível de Centurion. — Xarles se aproximava do orque como alguém que acabara de ganhar um prêmio — Agora entende que já temos um passo, só vamos precisar agora do resto. A invencibilidade de Polermos está com seus dias contados, senador, pode anunciar a todo o Senado!
As tropas de guerrilheiros estavam quietas, assim como o nobre, que as encarava nervoso de seu repentino surgimento. Aquilo era diferente de tudo que havia estudado e visto em vida, não seguia sequer a tradição antiga da guerra, aquilo era algo novo, incomum e ousado, poderia ser a chave para uma possível vitória ou os pregos para o seu próprio caixão.
O guarda olhou tudo aquilo impressionado, enquanto seu protegido contemplava tudo em choque. Era ainda incerto decidir se aquilo era uma aceitável forma de justificar ao senado sobre a inércia das armas de Camor, mas aquilo parecia promissor. Era necessário a tomada de uma decisão. Virgilius tinha total conhecimento de que, se aquilo falhasse, não seriam os senadores de Camor os primeiros a cair, mas sim ele por concordar com seus atos.
Ele arrumou sua face, tomando uma postura de extrema
formalidade e calmamente falou.
— O Senado ainda não aceitará isso como uma desculpa válida. Mas isso é
promissor, não é sensato para haver qualquer tipo de punição a vocês no
momento. Irei advogar pela causa de vocês.
O sorriso dos soldados ia se mostrando no rosto, mas logo a entonação mostrou um grande ar de hostilidade, silenciando a alegria que quase tomou o ar.
— Se perderem esta guerra, se tuas operações falharem, eu em pessoa irei decapitar cada homem que se encontra aqui. Não pela falha, mas por me derem a falsa esperança nessa operação de vocês. Entenderam? — Todos concordaram silenciosamente com o senador.
Mauricius consentiu em silêncio, com um sinal de aprovação para o centurião que ocultava sua vitória interna. A simples saída dos dois diplomatas era o sinal para que os homens e seu líder comemorassem alegres a aprovação de sua mais nova missão. Agora havia a chance de vingar os mortos, agora havia a chance de derrotar a cidade invicta, fazer com que todos os que morreram à frente dos muros não tenham sido em vão.
Aquela intimação do senador mudou os ares, se tornando uma visita. Por mais alguns dias, eles permaneceram lá, conversando tanto com o centurião quanto com os demais oficiais. A necessidade de criar uma fundamentação era clara, voltar de mãos vazias não era uma opção aceita ao orque. Virgilius ganhou as respostas e soluções que tanto queria, enquanto o grande exército de Camor recebeu a permissão para executar seus planos exóticos.
O retorno foi tão célere quanto a ida, a chegada na capital foi diferente. Muitos queriam respostas do que havia ocorrido, queriam saber as reais intenções da província isenta. As falas e os discursos do senador não foram bem-vistos pelo Senado, eles queriam culpados, não desculpas ou soluções para o problema que viriam em outros dias. Virgilius fez o possível para trazer leveza à mão dura da capital, as legiões pouco foram afetadas, ainda não havia respostas claras..., mas às vezes as soluções... viriam de lugares pouco pensados.