Rapaz... eu já vi muita coisa nesse mundo, mas tem umas que marcam a gente pra sempre, né? Lembro direitinho dum tempo de juventude, quando ainda trabalhava na usina de cana... aquele sol rachando o queingo, o corpo moído, e a cabeça fervendo de desejo de se sentir vivo. Era eu e Nildo, meu irmão mais velho, cabra teimoso, encrenqueiro, mas era meu sangue, minha parte.
Num dia desses, depois de mais um batente nos canavial, nós se picamo pra casa. Se lavamos no rio, demos vencer a pai e mãe como quem se despede pra ir guerrear no mundo — porque a zona, meu irmão, era quase um campo de batalha. Pegamos o boato da bodega de Sua Jurema, que era mais puteiro daquele bar, e lá tudo se misturava: pinga, dança, suor, pecado e faca.
Chegando, eu e Nildo começaram a beber. Dançava com as moça que de moça não tinha mais nem reza.
E Nildo, cabra besta quando bebê, logo se afeiçoou a uma quenga nova que andava por lá, daquezlas que balançam e quebra coração de macho besta. Só que a madrugada é bicho traiçoeiro, e foi nesse escuro que apareceu dois caboco estranho. Já chegou de olho na quenga que tava com Nildo, querendo levá-la à força, dizendo que era "deles".
Eu, que tava transada com outra quenga, ouvi o alvoroço. Vesti a calça na pressa e fui ver o que tava comemorando. A cena era um mundarêu de gente em roda, Nildo com a peixeira raspando no chão e fazendo trovão feito, chamando a cabra pra briga:
— "Tu me conhece não, infeliz. Eu como o rabo de quem mexe com meu sangue. Tu sabe cortar carne de jabá? Pois vai morrer agora!"
O cabra teimou, dizendo que a quenga já está com ele.
Eu fui logo no meio:
— "A quenga tem o próprio querer, fica com quem quiser, e hoje ela tá com meu irmão!"
Mas Nildo não sabia calar a boca. Chamou os dois de "filho de água, fila da puta", e aí foi que o inferno se abriu. Um dos cabra virou o capeta: deu-lhe um muro tão miseira na cara de Nildo que o sangue voou em mim. Aquilo me ferveu o sangue. Não poderia deixar barato — sangue do meu sangue ali caído.
Fui pra cima, dei-lhe uns catiripapo bem dados, a cabra caiu babando sangue. O outro traz a peixeira e contém:
— "Na mão tu é bom, mas na faca vamos ver!"
Eu já saquei a minha e respondi:
— "Pois agora você vai conhecer o aço da minha alma, filho de uma rapariga!"
Foi um quebra-pau dos infernos. Mesa esvoaçante, cadeira quebrando, garrafa estourando, prato de sarapatel pra todo lado. Era pitu, conhaque, caipira, copo sujo, tudo virando arma. Vi até um Dalmore 64 Trinitas na mesa, whisky fino demais pro puteiro — dei uma golada pra ter coragem.
eu dava cada pulo da bexiga lixa tome peixerada, tome facada e Nanda de pega no cabra eu já tava casando que só a disgrama Pensei como eu ia sair da que La, nisso apareceu no meu frete, minha mãe feita um santa toda de branco, e mim disse se tu deixa deu deu iram morre, quando tu chega em casa tu se lasca.
Nisso, no meio da briga, eu dei uma peixada na coxa da cabra que berrou alto, caiu sangrando. O irmão dele, mesmo com a cara estourada, tentou puxar a faca da perna dele e correr. E correram mesmo, os dois — se meteram no mato que nem besta fera, uivando de dor e vergonha.
No fim, ficou só eu e Nildo, suado, sangrando e sem um tostão. Sua Jurema chegou com a conta dos prejuízos: quebrado mesa, copo, janela, derramando bebida cara... pagamos tudo com o dinheiro da feira. Fomos liso embora, sem nem o café da manhã.
Lembro de andar na estrada escura com a camisa encharcada de sangue e Nildo do lado, a cara inchada. Ninguém disse nada. A lua nos cobria, testemunha muda da deterioração.
Essa foi só uma das desgraças... porque depois ainda teve Vicente Rui, que era o cachorro chupando mangá, e que Nildo acabou matando por causa de Dalvinha — uma mulher casada que se engraçou com ele. Mas essa já é outra história...