O cheiro da floresta sempre me despertou mais rápido do que qualquer despertador. E naquela manhã, antes mesmo de abrir os olhos, senti a brisa fresca entrando pelas janelas da cabana, carregando o aroma úmido das folhas, do mato, do rio que corria nas proximidades. Respirei fundo, como se aquele ar pudesse preencher os espaços onde a saudade tinha feito morada.
Demorei alguns segundos para reconhecer onde estava — o colchão firme, os lençóis limpos, o silêncio acolhedor. A casa da Matilha. Minha casa… talvez de novo.
Me espreguicei lentamente, o corpo ainda dolorido da viagem e do turbilhão emocional da noite anterior. Lembrei do abraço de Theo, do beijo respeitoso em minha testa, e o coração apertou de um jeito bom. Um jeito perigoso.
Levantei devagar, vestindo o moletom largo que costumava usar para dormir, e caminhei até a cozinha com passos silenciosos. O relógio sobre a parede antiga da sala marcava 06h42. Papai e Theo ainda deviam estar dormindo — ou, mais provável, correndo pela floresta nas suas rotinas matinais.
Foi então que tive uma ideia.
A cozinha ainda guardava os traços da minha mãe — armários envernizados, panos bordados com flores, potes etiquetados com letra cursiva. Senti uma pontada de saudade e carinho ao abrir a gaveta e encontrar a colher de pau que ela tanto usava. Era como se o passado tivesse me acolhido de braços abertos naquela manhã.
Decidi preparar o café da manhã para os dois. Não era só uma forma de agradecer a acolhida, mas uma tentativa de fazer parte de novo. De mostrar, mesmo que em silêncio, que eu queria ficar. Que queria tentar.
Comecei pelo bolo de mandioca — a receita antiga da minha mãe. Ralei a mandioca com paciência, misturei o leite de coco, açúcar, ovos e um punhado de queijo ralado. Coloquei para assar, sentindo o cheiro doce se espalhar devagar pela casa.
Enquanto o bolo assava, preparei a massa da panqueca, deixando-a levemente amanteigada, com um toque de baunilha. Fiz panquecas altas e douradas, empilhadas umas sobre as outras, com um pouco de mel entre elas. Depois, parti para as omeletes: ovos bem batidos com cebolinha, queijo minas e um pouco de tomate cortado miúdo. Usei a frigideira de ferro que ainda lembrava minha infância — onde minha mãe fazia ovos com farinha nas manhãs frias.
O café ficou por último. O cheiro forte e amargo me trouxe lembranças das conversas ao redor da mesa, do riso grave do meu pai, do olhar atento de Theo mesmo quando eu era só uma adolescente metida a literária demais para os costumes da Matilha.
O sol já entrava em feixes oblíquos pelas janelas quando ouvi o som da porta se abrindo. Meus ombros se enrijeceram por reflexo, e me virei devagar.
Era ele.
Theo.
Vestia uma camisa escura parcialmente aberta no peito, com gotas de suor ainda escorrendo pela têmpora. O cabelo bagunçado denunciava que tinha acabado de correr. Estava lindo. Tão intensamente lindo que me fez perder o ar por um instante.
Ele parou à soleira da porta, os olhos fixos em mim — ou talvez na mesa. Sua expressão mudou para surpresa suave, depois para algo que parecia admiração, e então aquele sorriso. Aquele sorriso de canto de boca que sempre me desarmava.
— Bom dia — falei, limpando a mão em um pano de prato.
— Bom dia, Alinna. Você… acordou cedo.
— Achei que vocês mereciam um café decente.
Ele se aproximou, cheirando a terra, suor e floresta. O tipo de cheiro que uma garota criada entre livros não devia gostar — mas que, no meu caso, era mais viciante do que qualquer perfume francês.
— Está maravilhoso — murmurou, passando os olhos pela mesa posta com o cuidado de alguém que queria pertencer.
Me aproximei das xícaras, servi o café e entreguei uma a ele. Quando nossas mãos se tocaram, o calor subiu pelos meus dedos. Ele segurou a xícara, mas não afastou a mão de imediato. Seus olhos prenderam os meus, intensos.
— Você é mesmo filha da sua mãe. Ela faria tudo exatamente assim.
Sorri, sentindo o calor da lembrança.
— Ela me ensinou com muito amor. E disciplina.
Ele riu baixo, pegando um pedaço de panqueca e levando à boca.
— Se um dia decidir ficar de vez, vai roubar o posto da cozinheira da Matilha.
— Cuidado com o que deseja, Theodore William — brinquei, mordendo o lábio.
Foi então que meu pai surgiu no vão da porta, ainda vestindo roupas de treino, mas com o semblante relaxado. Parou por um segundo, observando a mesa e a interação entre mim e Theo.
— Isso tudo foi você quem fez? — ele perguntou, os olhos fixos em mim.
Assenti, tentando esconder o nervosismo sob o avental amarrotado.
— Resolvi acordar cedo e aproveitar a cozinha. Achei que vocês mereciam um café de verdade.
Ele se aproximou, beijou o topo da minha cabeça e murmurou:
— Obrigado, filha. Sua mãe teria ficado orgulhosa.
Aquelas palavras me atingiram como uma flecha doce. Senti os olhos arderem, mas pisquei rápido. Não ia chorar sobre a mesa.
Sentamos os três para comer. A conversa foi leve, entre bocados de omelete e elogios ao bolo de mandioca que ainda soltava fumaça. Meu pai comentou sobre a patrulha da madrugada, Theo trouxe novidades sobre o estado das fronteiras, e eu apenas escutava — absorvendo o mundo deles como quem volta a aprender uma língua esquecida.
Havia algo mágico naquela manhã. Algo antigo, familiar. Um sentimento de pertencimento que eu não experimentava há anos. A mesa era como um altar — de reconciliação, de esperança, de possíveis futuros.
E mesmo que nada estivesse dito com todas as letras, Theo sabia.
Eu sabia.
Algo havia mudado.
E talvez, só talvez, eu estivesse pronta para ficar.
Lavar a louça nunca foi uma das minhas tarefas favoritas, mas naquela manhã, enquanto a água quente escorria pela porcelana e as bolhas de sabão dançavam sob a luz do sol, havia algo estranhamente tranquilo naquela rotina. Como se meu corpo, minha alma e até o som dos pássaros lá fora estivessem em um raro estado de equilíbrio.
Theo se aproximou sem dizer uma palavra, pegou o pano de prato e começou a secar os talheres que eu deixava escorrendo na bancada. Seu ombro roçava de leve o meu cada vez que se movia, e o calor daquela presença me deixava mais alerta do que qualquer café.
Fingir normalidade era uma luta.
— Isso foi um gesto bonito — ele disse, quebrando o silêncio. — A mesa, o café, o bolo de mandioca… você deixou a casa mais viva hoje.
— Só queria retribuir a hospitalidade — murmurei, enxaguando uma xícara. — E também lembrar como é viver com pessoas que se importam.
Ele não respondeu de imediato. Apenas pegou a xícara da minha mão e a secou com cuidado. Seus dedos roçaram os meus, e o toque suave pareceu eletrificar meu braço inteiro. Soltei um suspiro curto, tentando disfarçar com uma tossidinha.
Não estava funcionando. Meu corpo era uma traição ambulante.
— Faz tempo que eu não sentia essa casa assim — ele comentou, com a voz mais baixa. — Alegre. Cheirosa. Com risadas no ar.
Virei o rosto para ele e, por um instante, esquecemos completamente da louça.
Theo estava ali, tão próximo que eu podia contar cada cílio, ver a leve marca de expressão entre suas sobrancelhas, o brilho quente de mel em seus olhos castanhos. Sua mandíbula firme estava parcialmente coberta por uma barba rala, e o sol que entrava pela janela desenhava sombras douradas ao longo do pescoço e da clavícula. Deusas antigas, ele era lindo demais.
— Você sempre falava isso… quando eu era pequena — sussurrei, sem pensar. — Dizia que eu deixava a casa mais viva quando corria pelos corredores.
Ele sorriu. Um sorriso lento, terno.
— E era verdade.
Minhas mãos estavam cobertas de sabão, mas mesmo assim ele tocou meus dedos com os dele. Um gesto simples. Intencional. Arrebatador.
— Alinna… — murmurou, e meu nome em seus lábios soou como promessa, como pecado sussurrado em segredo.
— Theo…
Não sei ao certo o que esperava que acontecesse ali, naquele instante em que o mundo pareceu parar entre pratos e copos. Mas o que vi em seu olhar foi intenso demais para ser ignorado.
Era desejo.
Cru, límpido, profundo. Mas também era respeito. E era isso que mais me desmontava. Ele me olhava como se eu fosse a coisa mais preciosa que já pisou aquelas terras. Como se não importasse minha falta de lobo, minha herança humana, meus medos. Era só eu — Alinna — que ele via.
E eu estava afundando.
— Está tudo bem — ele disse, como se pudesse ouvir o que se passava na minha cabeça.
Balancei a cabeça devagar. As palavras estavam ali, entaladas na garganta, lutando para sair.
— Eu… eu não sei o que está acontecendo comigo. Desde que cheguei, é como se… eu não tivesse mais o controle.
— Porque talvez, pela primeira vez, você esteja onde devia estar.
Engoli em seco.
— E você…?
Ele deu um passo para mais perto. Agora nossos braços se tocavam, o calor dele irradiava para dentro de mim como fogo.
— Eu sinto você, Alinna. Desde sempre. Você pode não ter herdado o lobo, mas há algo dentro de você que ressoa com o que sou. Meu instinto nunca te ignorou.
Minha pele se arrepiou.
— E agora?
— Agora… está mais forte. A cada olhar, a cada toque. Quanto mais tempo passo perto de você, mais difícil fica segurar.
As palavras caíram como pedras no fundo do meu estômago. Porque eu sentia exatamente o mesmo. O vínculo invisível, o desejo sussurrado, o impulso de me aproximar, de me render.
— Eu sinto, Theo — confessei, num fio de voz. — Mesmo não entendendo. Mesmo tendo medo. Eu sinto.
Seus olhos se fecharam por um momento, como se aquelas palavras tivessem um peso físico em seu peito.
— Você não tem ideia do quanto eu esperei por isso.
A louça estava esquecida. O pano de prato escorregou da mão dele e caiu no chão com um som abafado. O sol iluminava nossos rostos enquanto nos olhávamos em silêncio, respirando o mesmo ar, pulsando no mesmo ritmo.
Eu queria tocá-lo. Queria senti-lo com todas as partes do meu ser. Mas, ao mesmo tempo, queria prolongar aquele momento. Saboreá-lo. Porque era real. E era nosso.
— Eu nunca imaginei que pudesse… me sentir assim — admiti, com honestidade crua. — Como se o mundo todo tivesse feito silêncio só para escutar meu coração bater quando você está por perto.
Ele aproximou o rosto, mas não me beijou. Apenas encostou sua testa na minha.
— Você não precisa correr — sussurrou. — Nem decidir nada agora. Só… sente. Me deixa estar com você. Cuidar de você, mesmo quando você não achar que precisa.
Fechei os olhos, e foi como mergulhar num oceano de calma. Tão profundo que me dava medo. Mas também me dava paz.
— Tudo bem — murmurei. — Mas só se você terminar de secar os pratos comigo.
Ele riu. Um riso leve, quente, cúmplice.
— É uma troca justa.
Voltamos ao trabalho, lado a lado, nossas mãos se tocando vez ou outra, nossos corpos vibrando em uma sintonia silenciosa. Cada prato lavado, cada colher seca, cada suspiro entre um gesto e outro… tudo carregava um significado que ia além da rotina.
Eu estava me permitindo.
E Theo estava ali, inteiro.
Naquela manhã, entre bolhas de sabão, passado e desejo contido, o vínculo entre nós deixou de ser apenas um rumor ancestral. Tornou-se real. Presente. Vivo.
E eu já não queria mais fugir.
A trilha para a nascente começava atrás da casa, envolta por árvores altas, o solo coberto por folhas secas e raízes antigas. O ar cheirava a terra molhada, resina e musgo — tão familiar e reconfortante quanto os braços de meu pai quando eu era pequena. E, agora, como o silêncio confortável que pairava entre mim e Theo.
Caminhávamos lado a lado, sem pressa. Seus passos eram firmes, mas silenciosos. Ele parecia saber onde pisar, como se já tivesse percorrido aquele caminho mil vezes — o que, no fundo, eu sabia que era verdade. Eu, por outro lado, tropeçava aqui e ali, tentando manter a compostura.
— A trilha parece menor — comentei, distraída, afastando um galho baixo com o braço. — Quando eu era criança, parecia que durava uma eternidade.
— Tudo parecia maior naquela época — Theo respondeu com um meio sorriso, os olhos voltando para mim por um instante. — Você dizia que os duendes viviam nesse pedaço da mata.
— Eles viviam — disse, rindo. — Mas eu também acreditava que você virava lobo nas noites de lua cheia só para assustar meus pesadelos.
— E não virava?
— Bom… — ergui uma sobrancelha. — Você nunca me deixou sozinha nas noites em que eu tinha medo.
Ele sorriu, mas havia algo mais por trás do gesto. Uma ternura velada, um carinho que me atravessava mais fundo do que eu conseguia admitir. O ar entre nós parecia mais denso agora, como se cada palavra fosse um passo em direção a algo inevitável.
A trilha se estreitou, e nossas mãos se tocaram por acidente — ou talvez não. A minha deslizou pela dele, os dedos roçando com suavidade, e em vez de afastar, Theo entrelaçou os nossos com uma naturalidade que me desarmou por completo.
— Está tudo bem? — ele perguntou, a voz mais baixa, quase um sussurro.
Olhei para nossa mão unida, depois para o caminho à frente.
— Está.
E estava mesmo. Pela primeira vez em muito tempo, eu sentia o chão sob meus pés como algo sólido. Não o asfalto da cidade, nem os corredores de universidades, nem os bares apinhados de gente que não sabiam meu nome. Mas aqui… com ele… eu sentia que podia respirar.
— É estranho — comecei, enquanto a brisa soprava folhas secas ao redor dos nossos tornozelos. — Como, de repente, tudo parece fazer sentido. Como se eu sempre estivesse buscando por esse lugar, esse momento.
— E agora que encontrou?
Parei. Ele parou comigo.
O barulho da nascente já podia ser ouvido ao longe — aquele som suave de água escorrendo pelas pedras. Mas o que me fazia prender a respiração era a maneira como ele me olhava.
Como se eu fosse o destino.
— Agora… eu tenho medo de perder.
— Você não vai perder — ele disse, firme. — Alinna, você é parte disso. Parte de nós. Mesmo sem o lobo. Mesmo sendo humana.
— Eles não pensam assim. Os olhares… as pedras… — respirei fundo. — É difícil ignorar quando tudo em volta te lembra que você não pertence.
Theo se aproximou devagar, sem soltar minha mão. Sua outra mão veio até meu rosto, os dedos quentes e calejados roçando minha bochecha. Ele me olhou nos olhos com uma intensidade que fez meu peito doer.
— Você pertence a mim — ele disse, como uma verdade sagrada. — E eu pertenço a você, Alinna. Não há linhagem, gene ou maldição que mude isso.
Meu coração tropeçou dentro do peito.
Ele inclinou o rosto. Devagar. Me dando tempo. Me permitindo fugir, se eu quisesse. Mas eu não queria. Nem um pouco.
Fechei os olhos no instante em que nossos lábios se tocaram.
O beijo foi diferente do da noite anterior. Mais calmo. Mais íntimo. Como se, desta vez, estivéssemos escrevendo algo novo, construindo uma ponte entre nossas almas. Seus lábios se moviam com paciência, explorando os meus com uma reverência que me fez arfar contra sua boca.
Minhas mãos subiram instintivamente até seu peito, sentindo o calor através da camisa. O corpo dele era firme, sólido, e mesmo assim havia uma ternura no modo como me segurava — como se eu fosse feita de cristais antigos e secretos.
Quando ele afastou os lábios dos meus, ainda mantinha os olhos fechados.
— Você é a minha escolha — ele sussurrou. — Mesmo se o mundo todo disser que não. Mesmo se o seu pai tentar me matar. Mesmo se você me deixar esperando uma vida inteira. Vai ser você.
As lágrimas vieram sem que eu pudesse impedir.
Não chorei de tristeza, ou de medo, mas de algo que me era mais raro: esperança.
Theo limpou uma delas com o polegar.
— Está tudo bem — ele disse de novo. — Eu estou aqui.
Assenti. E o beijei de novo, com mais urgência. Com vontade. Com desejo contido.
A trilha até a nascente ainda estava pela metade. Mas, de algum modo, já tínhamos chegado aonde mais importava.