O machado cravou-se na tora com um estalo seco, lascando a madeira ao meio. Gotas de suor escorriam pela minha nuca, colando a camisa ao meu corpo, mas eu mal sentia o calor. Era a raiva que me alimentava. A frustração. A urgência de expulsar da minha mente a lembrança de Alinna em meu colo.
Ela estava tremendo quando me abraçou. Tremendo — e mesmo assim, encaixada contra mim como se o mundo inteiro só existisse ali, entre meu peito e as coxas dela.
Outro golpe. A lâmina mergulhou fundo, partindo mais uma tora. O cheiro de pinho se espalhou no ar, mas tudo o que eu sentia era o perfume dela — baunilha e papel velho, o cheiro de uma escritora, de uma humana, de uma mulher que eu nunca deveria desejar. Mas desejo era pouco. Era mais. Era destino.
— Está tentando enterrar um demônio ou só se exorcizar? — grunhiu Daeron, o guerreiro mais jovem ao meu lado, segurando outra tora.
— As duas coisas, talvez.
Ele riu. Era um som curto, rouco, mas carregado de curiosidade.
— Dizem que você quase matou o Tyson hoje. O garoto andava merecendo, mas o que ele fez?
— Ele insultou Alinna. — Olhei para o pedaço de lenha quebrado aos meus pés. — Jogou uma pedra nela.
Daeron assobiou.
— E ainda está vivo? Estou impressionado com sua contenção.
— Eu não sou mais um adolescente descontrolado. — Peguei outra tora e posicionei no cepo. — Mas ele vai lembrar de nunca mexer com ela de novo.
— Hm. Então é verdade… o que dizem sobre vocês dois?
Ergui os olhos lentamente. Daeron hesitou, depois completou:
— Que ela é sua companheira. Mesmo sendo humana. E que você sente o vínculo, mas ela não. Porque… bem, não tem lobo.
O machado parou no ar. Fiquei olhando a madeira, como se ela pudesse responder por mim.
— Eu soube no instante em que ela nasceu — murmurei, finalmente. — Mesmo sem despertar ainda, meu lobo se ergueu dentro de mim como se ela já fosse dele. Nossa. Um vínculo silencioso, mas absoluto.
— Mas ela foi embora.
Assenti.
— Três anos sem notícias. Sem uma carta, sem um telefonema. E eu… bom, continuei esperando.
— Esperando o quê? — ele perguntou, sério pela primeira vez.
— Que ela voltasse inteira. — O machado desceu, rachando a tora com violência. — Que ela voltasse pronta para mim.
Daeron suspirou.
— Você é melhor que eu. Eu teria ido atrás. Eu teria tomado o que é meu.
— Ela não é algo para ser tomado. — Meu tom foi mais duro que o pretendido, e ele levantou as mãos em rendição. — Alinna é… frágil. Mas não fraca. Ela tem força, só não a mesma que nós. Ela precisou se encontrar. Eu entendo isso agora.
O silêncio se instalou entre nós. O crepitar das toras rachadas sendo empilhadas era o único som por um tempo.
— E agora? — ele perguntou, depois de um tempo. — Vai deixá-la ir de novo?
— Não. — A palavra saiu baixa, firme. — Agora não.
Me afastei do cepo e caminhei até o tronco onde deixávamos os cantis. Bebi um longo gole de água e me sentei no toco, tentando esfriar a cabeça. Mas tudo que vi ao fechar os olhos foi o rosto dela inclinado para o meu, os olhos castanhos brilhando sob a luz dourada da varanda.
O toque suave dos lábios dela ainda ardia em mim.
Não foi um beijo carnal. Foi um sopro. Um chamado. E mesmo assim… meu lobo havia urrado por dentro como se aquilo fosse o suficiente para recomeçar o mundo.
“Eu escolho ficar”, ela disse antes de o Alfa aparecer e nos interromper.
Eu sentia suas palavras gravadas em minha pele como marcas de fogo.
Por três anos, guardei silêncio. Não a procurei. Não fui atrás. Mesmo sentindo seu nome ecoando nas minhas veias. Mesmo sabendo que, em algum lugar do mundo, a mulher que nasceu para ser minha andava entre humanos, respirando um mundo que não me incluía.
Agora ela estava aqui. Em carne, osso, pele, perfume.
E eu estava perdendo o juízo.
— Vai vê-la? — Daeron perguntou.
Olhei para ele de lado.
— É uma pergunta ou uma ordem?
— Só estou tentando ajudar — disse ele, com um sorriso torto. — Cortar lenha é bom pra acalmar o lobo, mas não cura coração batendo fora do peito.
Soltei uma risada baixa, rouca.
— Talvez você tenha razão.
— Eu quase sempre tenho. — Ele se levantou, jogando um pedaço de madeira para o alto e pegando no ar. — Vai lá. Eu cuido do resto.
— Você só quer que eu me distraia para terminar o trabalho todo.
— Exatamente.
Sacudi a cabeça, rindo, e caminhei para o barracão, onde tirei as luvas e lavei as mãos na bacia de água. O céu começava a se tingir de laranja no horizonte. Um lobo uivou ao longe, respondido por outro. Era a hora da transição. Os que caçavam em forma lupina sairiam em breve. O ar estava saturado de expectativa.
E o meu peito também.
Se ela realmente decidiu ficar… então meu tempo de espera acabou.
Voltei à casa principal com passos lentos, cada músculo do corpo tenso. O cheiro dela estava por toda parte, mesmo que já não estivesse na varanda. Eu subi os degraus da entrada de madeira e parei diante da porta.
Por um momento, apenas respirei.
Então bati, uma, duas vezes.
A voz dela veio do outro lado, suave:
— Pode entrar.
Girei a maçaneta.
Ela estava na sala, sentada no sofá, de pernas cruzadas, um livro fechado no colo. O cabelo preso em um coque bagunçado, e ainda assim, linda. Mais do que eu podia suportar.
— Oi — ela disse, com um sorriso hesitante.
— Oi — retribuí, fechando a porta atrás de mim. — Seu pai falou comigo.
— O meu também — ela respondeu, com um brilho suave nos olhos. — A gente se entendeu. Depois de anos… foi bom.
Assenti.
Ela se levantou, caminhando até mim com passos lentos. Fiquei parado, como se cada centímetro da minha pele soubesse que ela estava se aproximando. Meu lobo rosnava baixo, impaciente, mas eu mantinha o controle.
Quando parou diante de mim, não disse nada. Apenas ergueu a mão e tocou meu peito com a ponta dos dedos.
— Ainda estou assustada — ela sussurrou. — Ainda não entendo o que isso é. Mas… eu quero descobrir. Com você.
Segurei a mão dela e a levei aos meus lábios.
— Então eu juro que não vou te apressar. Não vou te machucar. Só quero que saiba que estou aqui. Sempre estive.
Ela sorriu, com os olhos marejados.
— Eu sei.
E, naquele instante, a distância entre nós evaporou. Mas isso… seria uma nova parte. Uma nova noite.
E dessa vez, não haveria interrupções.
Ela andava ao meu lado pelo bosque como se aquele lugar fosse um território sagrado. O tipo de silêncio entre nós era raro: não desconfortável, mas cheio. Como se o próprio ar soubesse que havia palavras prestes a nascer, palavras difíceis de dizer.
O crepitar leve das folhas secas sob nossos pés era o único som além da respiração dela — um pouco mais rápida do que o normal. Estava nervosa.
Observei o jeito como segurava os braços cruzados sobre o peito, o olhar fixo em nada à frente, como se estivesse ensaiando algo na cabeça. Estava tão concentrada que nem percebeu quando parei de andar.
— Alinna — chamei baixinho, só para sentir seu nome nos meus lábios.
Ela parou, virando-se com um meio sorriso hesitante.
— Desculpa. Estou um pouco… distraída.
— Quer me dizer por quê?
Ela respirou fundo e olhou ao redor. Estávamos cercados de pinheiros e musgo, com uma clareira pequena e banhada pelo sol ao lado. Alinna caminhou até um tronco caído e se sentou ali, abraçando os joelhos.
— Você sempre me traz aqui — ela disse, sem olhar para mim. — Quando eu era pequena… nos fins de tarde, depois do treino, depois das visitas. Você dizia que o mundo ficava mais calmo entre as árvores.
— Eu ainda acho isso — murmurei, sentando-me a seu lado.
Havia algo em seus olhos que me doía. Uma luta interna que eu não podia combater com garras ou dentes. Um tipo de batalha que pedia paciência.
— Eu pensei muito nas últimas horas — ela disse por fim. — Em você. No meu pai. No que significa estar aqui de novo… depois de tanto tempo.
Assenti. Esperei. Não iria interrompê-la.
— E eu percebi — ela engoliu em seco — que parte de mim não quer mais ir embora.
Fiquei muito quieto. Porque, por dentro, meu coração estava rugindo.
Ela continuou, mais baixo:
— Eu sinto como se algo em mim pertencesse a este lugar. Não sei se é nostalgia, ou a presença dele, ou a sua… — olhou para mim, os olhos brilhando — mas quero ficar. Quero tentar. Só que…
Ela se calou.
— Só que…?
— Só que tenho medo — confessou, com os olhos marejados. — Medo de não ser aceita. De não caber aqui. Todos vocês sentem o laço, o lobo, os instintos. Eu sou só… humana. E por mais que eu tente fingir que não ligo, eu ligo, Theo. Eu me importo com o que pensam. Com os olhares. Com o julgamento.
Ela mordeu o lábio inferior e desviou o olhar para o chão.
— Eu sei que não pertenço completamente a este mundo. E, mesmo assim, ele é tudo o que eu quero.
Meu peito se contraiu com a sinceridade dela. Eu a encarei por longos segundos, absorvendo cada uma daquelas palavras.
— Alinna — disse, a voz mais rouca do que eu esperava. — Quando eu soube que você era minha, eu tinha dezoito anos. Era só um garoto, mas o lobo em mim já sabia quem você era. O que você era. E não importava se você tinha lobo ou não. Você era o destino dele. E meu.
Ela levantou os olhos. A luz do sol filtrava pelos galhos acima, pintando o rosto dela com dourado.
— Desde então, eu passei cada ano me preparando para o momento em que você voltasse. Imaginando mil maneiras de fazer você querer ficar. E nenhuma delas era forçada. Porque eu nunca quis te prender aqui. Eu só queria que, quando voltasse, fizesse isso com o coração livre.
Estendi a mão e segurei a dela. A pele dela era macia, quente, tão viva que meu instinto uivou baixo, ansioso.
— Você tem medo dos outros. Mas os outros não importam, Alinna. Quem dita seu lugar aqui não são eles. Sou eu. Seu pai. Os que te amam. E se alguém ousar te desrespeitar por ser humana, vai lidar comigo. Vai sentir o peso do Beta da matilha. Eu não vou permitir que alguém diminua você.
Ela respirou fundo, e lágrimas silenciosas escorreram pelas bochechas.
— Mas eu nunca vou sentir o que você sente. O vínculo, a marca, o cio…
— E isso muda o que sinto por você? — interceptei, firme. — Nunca. O que eu sinto é real, com ou sem reciprocidade espiritual. E sabe o que mais? Eu sinto você, mesmo assim. Quando me olha, quando sorri, quando segura minha mão. Eu sinto você aqui dentro — levei a mão livre ao peito — como se o destino tivesse dado um jeito de te costurar em mim, ponto a ponto.
Ela deixou escapar um pequeno soluço, e se jogou contra meu peito. Eu a abracei forte, envolvendo-a completamente, sentindo sua forma encaixar-se à minha com a mesma perfeição de todas as outras vezes.
— Eu estou com tanto medo de me machucar — ela sussurrou contra meu pescoço.
— Então me deixa ser seu abrigo.
Ficamos assim, em silêncio, enquanto o vento soprava entre as árvores.
Ali, com ela nos meus braços, tive certeza de uma coisa: o vínculo que nos unia ia além do que a biologia explicava. O destino não precisa seguir as regras dos shifters para cumprir seu propósito. E Alinna era o meu.
Toda.
Com ou sem lobo.
O caminho de volta até a cabana foi silencioso, mas não tenso — um silêncio macio, entrelaçado com os ecos da conversa que tínhamos acabado de compartilhar. Alinna caminhava ao meu lado como se cada passo tivesse um novo peso, como se a floresta a estivesse absorvendo de novo depois de tanto tempo longe. E talvez estivesse mesmo.
Ela olhava ao redor com mais atenção do que antes — os olhos demorando-se nos troncos antigos, nas sombras úmidas entre os arbustos, nos galhos altos que se enroscavam como dedos nos céus. O cheiro do musgo, da madeira, do vento salgado vindo das montanhas, tudo parecia reconectar-se com ela.
Eu podia sentir a mudança sutil. Algo nela havia se rendido.
Ou talvez algo tivesse finalmente despertado.
Quando a cabana surgiu à frente, recortando-se contra o fim da tarde, senti meu peito apertar. Parte de mim queria agarrá-la, arrastá-la para dentro, mostrar-lhe com beijos e toques tudo o que eu guardava há anos. Mas a outra parte — a que sempre gritou mais alto — sabia esperar.
Eu precisava que ela estivesse inteira. Presente. Livre.
Subimos os degraus da varanda juntos, e ela se sentou na mesma cadeira de antes, puxando os joelhos contra o peito. O sol pintava as tábuas com laranja queimado, e os olhos dela estavam pesados. Não de sono apenas, mas de sentimento.
— Posso te fazer um chá? — perguntei, com um sorriso pequeno.
Ela assentiu, e desapareci por alguns minutos dentro da cozinha. Quando voltei, a xícara tremia levemente na minha mão. Sempre tremia, quando eu estava com ela.
Ela aceitou com um “obrigada” quase inaudível, e eu me sentei no chão, bem à frente dela, observando-a beber em silêncio. O vapor subia entre nós, doce com o aroma de camomila e mel.
— Você me ouviu hoje — ela disse, de repente. — De verdade.
— Sempre ouvi — respondi.
Ela baixou o olhar para a xícara.
— Mas hoje… foi diferente.
Esperei.
— Eu nunca me senti assim com ninguém. Tão… segura. Tão vista.
Meu peito se apertou com a ternura dessas palavras.
— É tudo que eu sempre quis ser para você.
— Você é — ela respondeu.
Um silêncio confortável caiu sobre nós. O céu começava a escurecer, tingido com as cores profundas do crepúsculo, e os primeiros sons noturnos já surgiam entre as árvores.
— Acho que vou dormir um pouco — ela murmurou, esfregando os olhos.
— Claro. Seu quarto está limpo, e coloquei lençóis novos — disse, levantando-me de onde estava. — Mas se precisar de algo, estarei por aqui.
Ela ficou de pé devagar, segurando a xícara, e se aproximou de mim com um movimento hesitante. Quando parou diante de mim, fiquei parado. Cada fibra do meu corpo queria puxá-la para meus braços de novo.
Mas esperei.
Ela ergueu o rosto e olhou nos meus olhos por um longo tempo. E então, sem dizer uma palavra, inclinou-se e encostou a testa na minha clavícula.
Meu coração trovejou.
Fiquei ali, imóvel, sentindo a respiração dela no meu peito. Minhas mãos tremeram antes de se moverem devagar, envolvendo-a com cuidado, como se ela fosse feita de cristal.
Abracei-a em silêncio, e depois de longos segundos, me afastei só o suficiente para beijar sua testa com um carinho antigo, pesado, cheio de tudo que eu ainda não tinha coragem de dizer.
Ela fechou os olhos ao sentir meus lábios contra sua pele.
— Boa noite, Alinna.
— Boa noite, Theo — respondeu, com um suspiro.
Ela entrou na cabana sem olhar para trás, e eu fiquei ali, sozinho na varanda, com o cheiro dela grudado em mim e a lembrança de seu corpo contra o meu como uma marca de fogo.
Sentado ali, sob as primeiras estrelas, soube que esperaria por ela quantas noites fossem necessárias. Com respeito. Com silêncio. Com o coração exposto como oferenda.
Porque ela era minha, mesmo que ainda não soubesse o quanto.
— Fique — sussurrei para o vento. — Fique comigo.
E voltei a me sentar no chão da varanda, esperando o sono dela repousar, vigiando a noite, como lobo que vela pela sua fêmea.
Silencioso.
Fiel.
Pronto.