Harauto despertou sem saber se ainda estava vivo.
Seu corpo estava frio, mas o ar ao seu redor era quente e denso, carregado por umidade e um cheiro desconhecido, uma mistura ferro e algo que lembrava mato molhado. Ele piscou algumas vezes, tentando afastar a névoa dos sentidos, mas o que viu não fazia sentido algum.
Acima dele, o céu não era azul. Havia um brilho difuso, uma coloração entre violeta e âmbar, como se o sol estivesse preso atrás de um véu escuro, incapaz de iluminar por completo. O ar não era apenas pesado, mas tremia. Um zumbido baixo, quase imperceptível, parecia estar presente constantemente no seu respirar, como se o próprio ambiente interagisse com seu corpo.
Harauto se sentou lentamente, sentindo algo estranho sob suas mãos. O solo não era duro, não era terra firme, mas sim macio, fibroso, quase como se estivesse deitado sobre um tapete vivo de raízes interligadas. Ele pressionou os dedos contra o chão e sentiu uma leve resistência, como se aquilo reagisse ao toque.
Inspirou profundamente. O cheiro estava mais forte agora, e o silêncio ao redor era absoluto. Nenhum som de vento, nenhuma ave, nenhum inseto. A Terra estava morta. Mas ele estava na Terra?
A vegetação ao seu redor não se parecia com nada que já havia visto antes. Árvores imensas, de troncos retorcidos e espiralados, subiam até alturas impossíveis, desaparecendo em uma neblina dourada acima de sua cabeça. As folhas tinham tons azulados e lilases, algumas pareciam fosforescentes, emitindo um brilho tênue como vaga-lumes aprisionados em sua superfície. As plantas se moviam? Por um instante, ele teve essa impressão, mas talvez fosse apenas o efeito da luz distorcida ao seu redor.
Harauto apoiou-se nos joelhos e se ergueu. Seus músculos estavam estranhamente leves. A gravidade ali não estava agindo da mesma forma. Seus movimentos pareciam mais fluidos, como se o peso de seu corpo tivesse sido reduzido pela metade. Isso não era possível.
Ele fechou os olhos por um momento, tentando recordar os últimos instantes antes do colapso. O céu se partindo. O mar se erguendo. O rugido da Terra se despedaçando.
Então, por que ele estava ali? Como sobrevivera? E... onde exatamente era “ali”?
Seu coração começou a acelerar. Precisava de respostas.
Ele deu um primeiro passo hesitante para frente, e então sentiu.
Uma presença. Lenta. Profunda. Imensurável. Não era o vento, não era sua própria respiração. Algo estava se movendo. Ele parou de imediato, os músculos tensos. O som crescia. Passos. Pesados. Lentos. Distantes, mas impossivelmente grandes.
Harauto segurou o ar nos pulmões, os olhos varrendo a floresta ao seu redor. A vegetação tremia levemente com a aproximação daquela coisa. O solo vibrava em um ritmo que não pertencia a nenhum ser humano ou qualquer outro ser que conhecesse.
Então, entre as árvores colossais, ele viu. Primeiro, foi a silhueta. Uma sombra entre as torres vegetais, movendo-se como uma montanha que ganhara vida. Depois, os contornos. Alto. Muito alto. O suficiente para fazer Harauto se sentir como um inseto. Era um ser gigantesco. E não estava sozinho.
Seu peito subia e descia lentamente, a mente incapaz de compreender o que estava diante dele.
Mas então, o medo instintivo se transformou em algo pior.
O gigante virou a cabeça e olhou diretamente para ele.
Harauto manteve-se imóvel, o peito subindo e descendo em um ritmo irregular. O que estava diante dele não deveria existir.
A criatura era gigantesca. Humanoide, mas… diferente. Tinha traços familiares — braços, pernas, um semblante que lembrava vagamente um homem — mas seu tamanho e a forma como se movia desafiavam toda a lógica. O gigante caminhava com passadas lentas e pesadas, deslocando-se como se o mundo tivesse sido moldado para seu tamanho. Era uma entidade que não deveria estar ali, mas ali estava.
Harauto apertou os punhos, tentando controlar o impulso irracional de correr. Se fugisse, faria barulho. Se se movesse, seria notado.
Ele se encolheu atrás de uma elevação do terreno, sua mente processando cada detalhe à sua frente. A cidade não era feita para humanos.
Ele viu as construções imensas, erguidas com pedras lisas, encaixadas com perfeição. Havia caminhos, ruas largas e degraus monumentais. Mas o que mais o intrigava era o próprio material das construções. Pareciam feitas de algo mais denso do que rocha comum, com um leve brilho prateado quando a luz as tocava.
Essas criaturas não eram bestas selvagens. Eram civilizadas.
Harauto respirou fundo, absorvendo cada detalhe. Os gigantes pareciam viver em harmonia. Alguns trajavam roupas rudimentares, feitas de tecidos desconhecidos, algo entre couro e seda. Outros portavam ferramentas de metal, mas não havia sinais de tecnologia avançada. Nenhum fio, nenhuma máquina, nada que lembrasse eletricidade ou armas modernas. Eles não tinham torres de comunicação, nem veículos.
E, mesmo assim, a cidade estava viva.
Harauto viu um grupo de gigantes carregando cestos imensos, cheios de frutas estranhas que pareciam brilhar levemente. Outro grupo transportava blocos de pedra, organizando-os em uma nova estrutura. Não havia gritos, não havia desordem.
Mas algo o fez prender a respiração. Não eram apenas os gigantes que estavam ali.
Harauto desviou o olhar das criaturas e viu, entre as construções colossais, algo que não pertencia àquele mundo.
Ruínas, fragmentos da Terra, ali, misturadas ao cenário titânico, estavam estruturas que ele reconhecia. Escombros de prédios humanos, placas metálicas, restos de veículos retorcidos. Ele conseguiu distinguir o que antes era parte de uma ponte, agora presa entre duas construções ciclópicas. Mais ao fundo, viu uma estrutura que poderia ter sido um templo ou um centro cultural, seu teto desabado, suas colunas partidas.
Não foi apenas ele que caiu ali. Harauto sentiu o ar pesar. Seu coração batia forte. Outros humanos também haviam sido jogados naquele mundo.
Mas onde estavam?
Ele cerrou os dentes, tentando conter o turbilhão de perguntas. Eles estavam vivos? Capturados? Se escondendo, como ele?
Antes que pudesse formular uma resposta, o solo tremeu. Foi diferente de antes.
Não era um tremor vago e distante. Era próximo. Intencional. Harauto sentiu o pulso vibrar no solo antes de ouvir o impacto da passada.
Alguém o viu. Lentamente, ele virou a cabeça. Um gigante estava ali, parado a poucos metros.
Olhos imensos o encaravam com algo que Harauto não conseguia decifrar.
E então, a criatura se moveu.
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Aiko abriu os olhos para um céu que não conhecia. Ela não caiu sobre terra firme, nem entre árvores colossais. Ela caiu no oceano.
A água era fria, mas não de um jeito natural. Era um frio denso, que se infiltrava em sua pele sem ser gelado. Ela engoliu ar, tossindo ao sentir o gosto metálico que o sal deveria esconder. Mas não havia sal.
Essa não era a água da Terra.
A superfície ondulava de forma errática. Ondas não obedeciam ao vento, moviam-se como se tivessem uma própria consciência, crescendo e encolhendo de forma imprevisível. Algumas eram pequenas, outras se erguiam como muralhas de vidro líquido, e Aiko percebeu que não eram aleatórias.
Elas lembravam uma memória distorcida do que um dia foram os oceanos da Terra. Como se tivessem sido arrancadas do planeta e atiradas em um lugar onde não pertenciam.
Aiko respirou fundo e forçou seu corpo a se mover. Ela estava sobre os destroços de um navio.
As tábuas rangiam sob seu peso, pedaços de metal e madeira boiavam ao seu redor, girando em círculos desconexos. Outros estavam ali.
Humanos. Sobreviventes.
Ela virou a cabeça e viu rosto após rosto, emergindo da água, tossindo, engasgando, agarrando-se a qualquer coisa que flutuasse. Eles estavam todos perdidos ali.
Aiko tentou se erguer, mas o navio partido não oferecia estabilidade. Ela precisava entender onde estavam. Precisava entender o que havia restado da Terra.
Foi então que ela olhou para o horizonte. E viu a ausência. Onde antes deveria estar a linha costeira da Ásia, havia apenas um véu de névoa densa, pulsante como vapor aprisionado. O nevoeiro não era natural. Ele se movia.
E algo se movia dentro dele. Aiko não viu uma forma clara, mas o que viu foi suficiente para fazer sua respiração acelerar.
Um vulto. Gigantesco. Algo estava na névoa. Algo vivo. Um ronco distante reverberou na água, profundo e abafado, mas Aiko sentiu a vibração em seus ossos. Os sobreviventes ao seu redor começaram a gritar.
Ela precisou forçar sua mente a se acalmar. Terror não salvaria ninguém. Terra. Ela precisava encontrar terra firme.
Mas será que ainda existia terra firme nesse mundo? E, pior ainda… Será que esse oceano tinha fim?
Aiko não sabia.
Mas, enquanto olhava para os rostos dos outros náufragos e ouvia o rugido crescendo dentro da névoa, ela percebeu que não eram apenas os gigantes que governavam esse novo mundo.
Algo maior. Algo muito mais antigo.
Algo que já os estava esperando.