A noite caía sobre o Palácio Imperial, mas o descanso era um luxo que poucos podiam se permitir. Harauto permanecia sentado diante de uma mesa de madeira escura, espalhados à sua frente estavam pergaminhos selados, recém-chegados das províncias mais distantes. Eram mensagens de daimyo e emissários regionais, relatando desordens que, pouco a pouco, se acumulavam como rachaduras em uma fundação antiga.
Ele deslizou os dedos pelo papel fibroso antes de romper um dos lacres vermelhos. O conteúdo da carta era breve, mas seu peso era imensurável:
"As reservas de grãos diminuem. Os camponeses estão inquietos. Grupos não identificados foram avistados rondando os campos ao norte. Precisamos de reforços antes que seja tarde."
A segunda mensagem, vinda de outra província, não era muito diferente:
"As caravanas que vinham da costa pararam de chegar. Os portos estão vazios. Boatos de piratas circulam entre os comerciantes."
Harauto pousou a carta e esfregou os olhos. Os sinais de instabilidade estavam se multiplicando. O Japão, isolado do resto do mundo, dependia de suas próprias redes internas para manter a ordem. Se o sistema começasse a ruir, não haveria quem viesse salvá-los.
As províncias mais afastadas já começavam a agir como estados independentes, e a ausência de tecnologia eficiente para comunicação apenas acelerava esse processo. Os mensageiros levavam dias para atravessar as estradas, e cada carta recebida já carregava consigo um atraso perigoso. Os desafios não eram apenas econômicos, mas sociais e militares. Se a fome crescesse, se os clãs perdessem a confiança no governo central, o império que sobrevivera por séculos poderia simplesmente desmoronar sem que ninguém levantasse uma espada.
O conselheiro mais velho de Harauto, Takamori, se inclinou ligeiramente à sua frente, sua voz marcada pelo tom grave e pausado da experiência:
— Sua Alteza, a estabilidade já não é uma certeza. As tropas nas fronteiras estão reduzidas. Os senhores feudais começam a agir por conta própria. Alguns já cogitam cortar laços com a capital.
Harauto olhou para o mapa à sua frente. A cartografia não era digital — tintas e pincéis haviam substituído os hologramas e telas luminosas de outrora. O Japão, como era agora, parecia um antigo kimono, desfiando em suas extremidades, como se traças o tivessem comendo, cada província um pouco mais distante da outra.
Ele inspirou fundo antes de falar:
— Não podemos permitir que o Japão se desfaça. Reforce as patrulhas ao norte e envie mensageiros para os portos. Mande os mais fieis. Quero saber o que acontece antes que esses rumores se tornem verdades concretas.
O conselheiro assentiu, mas seu olhar trazia algo além da preocupação. Takamori sabia que esses problemas não estavam surgindo isoladamente. Havia algo invisível em ação, algo que corroía a estrutura do império como um veneno lento.
Mas a ameaça ainda estava oculta. Se revelaria?
Harauto caminhava pelos jardins do palácio, o peso das últimas cartas ainda fresco em sua mente. As mensagens que chegavam das províncias traziam notícias preocupantes sobre fome, insegurança e o crescimento de facções que desafiavam a centralidade do império. Mas uma ausência pesava mais do que qualquer instabilidade política.
Aiko.
O nome de sua esposa formava-se em sua mente como uma maré, puxando-o para longe do presente e levando-o a um espaço de recordações. Ela estava distante, em terras estrangeiras, separada não apenas pela geografia, mas pelo silêncio das incertezas.
Os meios de comunicação modernos não eram mais confiáveis. As redes globais, antes um fluxo constante de informações, haviam se tornado fragmentadas e intermitentes, como um sistema respirando por aparelhos. As cartas eram agora a única forma de contato, mas até mesmo elas demoravam semanas para atravessar o oceano.
Harauto havia enviado uma mensagem há dois meses.
Nenhuma resposta retornara.
Ele parou diante de uma cerejeira cujas pétalas ainda resistiam ao fim da estação. Ali, entre o suave som das folhas tocadas pelo vento, ele relembrou a última vez que vira Aiko.
Ela partira por motivos familiares. A viagem fora planejada cuidadosamente, um navio protegido, uma tripulação confiável. Mas desde então, nada mais se soube de sua situação.
— Sua Alteza?
Harauto virou-se para ver Takamori, que se aproximava com passos calculados. O olhar do velho conselheiro não carregava boas notícias.
— Não há mais registros da última localização da Princesa Aiko. — disse ele, hesitante. — Os últimos relatórios indicavam que seu navio alcançou a costa, mas depois disso... o silêncio.
Harauto sentiu a respiração pesar. O silêncio era pior do que qualquer notícia ruim.
— Temos um mensageiro na região?
— Nenhum que possa atravessar a fronteira com segurança. A estrada para as cidades costeiras está sendo patrulhada por forças que não reconhecem mais nossa autoridade.
O príncipe apertou os punhos.
— Então, enviaremos um.
Takamori ergueu uma sobrancelha.
— Alteza, não sabemos o que a espera do outro lado do oceano. Se ela não respondeu, pode haver um motivo.
— Justamente por isso preciso saber.
Harauto virou-se, olhando para o céu nublado que cobria a capital. O vento soprava do leste, do mar, de onde Aiko deveria ter retornado há muito tempo.
Se o mundo estava desmoronando, então ele teria que atravessar suas ruínas para encontrá-la.
O aroma de incenso preenchia o Salão das Preces Silenciosas, onde o corpo do Imperador Akihito repousava sob uma luz pálida de lanternas a óleo. A morte viera sem cerimônia. O câncer o consumiu em segredo, como uma lâmina invisível perfurando-o de dentro para fora. Quando os médicos do palácio notaram a gravidade da doença, já não havia nada a ser feito.
Harauto permaneceu de pé, sozinho diante do esquife. O mundo ao redor parecia dissolver-se em um borrão, como se o tempo tivesse se partido junto com a linhagem imperial. O Japão, seu Japão, acabara de perder seu último pilar de estabilidade. E ele não estava pronto para ocupar esse vazio.
Os monges, cobertos por mantos de linho simples, entoavam mantras ancestrais. O som reverberava entre as colunas do templo, vibrando na madeira como se o próprio espaço absorvesse a oração. A morte do Imperador não seria anunciada ao público imediatamente. Era necessário preparar a sucessão, garantir que o momento fosse controlado para evitar o caos. Mas Harauto sabia que nada mais estava sob controle.
O câncer de seu pai fora uma sentença lenta. Mas o verdadeiro mistério era outro: por que Akihito nunca mencionara a doença? Ele governara até seu último fôlego, tomando decisões e conduzindo a diplomacia do império sem jamais demonstrar qualquer fraqueza. Harauto não sabia se isso era um ato de força ou medo do que aconteceria quando ele se fosse.
Takamori aproximou-se, a voz baixa, para que os monges não escutassem.
— Sua Alteza, há algo que precisa saber.
Harauto voltou-se para o conselheiro, o olhar afiado cortando a névoa da tristeza.
— O que aconteceu?
Takamori hesitou, então retirou de suas vestes um pequeno envelope de seda negra.
— Uma carta. Do próprio punho do Imperador. Encontramos em seus aposentos, endereçada ao senhor.
Harauto pegou o envelope e, sem demora, rompeu o lacre. A escrita de seu pai era cuidadosa, mesmo na fragilidade dos últimos meses. As palavras, entretanto, eram o que realmente importavam.
"Meu filho, quando ler isto, eu já terei partido. O único conselho que lhe deixo é:
Não confie em ninguém até ter certeza que os outros confiam em você!”
Harauto fechou os olhos por um instante. Poderia ser só uma mensagem de motivação para um futuro Imperador, mas carregava um peso que ele ainda não conseguia compreender.
Ele guardou a carta no interior de seu quimono e virou-se para Takamori.
— O que sabemos sobre a morte do Imperador?
O conselheiro suspirou.
— Os médicos garantem que foi o câncer. Mas não podemos mais aceitar certezas tão facilmente.
Harauto assentiu. O momento de luto duraria apenas o necessário. Depois, ele teria que olhar além da superfície.
*
Enquanto o corpo do Imperador esfriava nas câmaras internas do templo, Aiko atravessava o mar para uma despedida que nunca deveria ter acontecido.
Ela partira antes da morte do Imperador, sabendo que não retornaria a tempo. Seu destino: Xangai.
Os pais de Aiko haviam retornado para a China anos antes, quando as relações diplomáticas entre os dois países ainda eram toleráveis. Eles tinham influência dentro do governo chinês, mas mantinham-se afastados das movimentações políticas que varriam o continente como um incêndio sem controle. Agora, Aiko estava indo encontrá-los, talvez pela última vez.
A China não era um país unificado como antes. Ela, assim como o Japão, havia se fragmentado em zonas de influência. As antigas potências haviam desaparecido do mapa e em seu lugar surgiram senhores de guerra, coalizões militares e alianças temporárias. Algumas cidades prosperavam sob novos líderes, outras eram territórios de ninguém, governados pelo comércio de armas e mercenários.
O mundo não tinha mais fronteiras fixas.
Aiko sabia que sua chegada a Xangai não seria simples. O governo central ainda existia, mas sua autoridade era instável. Alguns generais controlavam mais territórios do que o próprio governo. Outros, operavam como fantasmas, financiando conflitos para minar aqueles que tentavam restaurar a ordem.
E havia algo mais. Algo que Harauto não sabia.
Aiko não apenas estava indo para encontrar seus pais.
Ela carregava informações que não podiam cair em mãos erradas.
E havia aqueles que fariam qualquer coisa para impedir que ela voltasse viva para o Japão.
*
O planeta não era mais governado por superpotências. A ideia de um único país liderando a economia global era uma relíquia do passado. Agora, alianças efêmeras formavam-se e se desfaziam como marés, ditadas por interesses momentâneos.
O colapso das grandes infraestruturas tecnológicas fez com que muitos países perdessem sua conectividade global. O comércio era feito de forma precária, e qualquer território com acesso a energia, alimentos e metais raros tornava-se um ponto de disputa.
As Américas estavam divididas entre federações militares e estados independentes. A África prosperava em regiões onde novas formas de energia foram desenvolvidas, mas o resto do mundo via isso como um recurso a ser explorado. A Europa havia se fechado em fortalezas de concreto, e a Rússia operava a partir das sombras, patrocinando guerras por procuração em todo o globo.
O Japão ainda resistia, mas estava isolado. Era o único país do mundo que ainda tinha uma monarquia oficial.
E Aiko tinha atravessado o mar, como se atravessasse esse mundo todo, completamente instável, sabendo que seus passos fora da segurança do palácio poderiam levá-la para a morte ou algo pior ainda.