O Último Príncipe na Terra de Gigantes/O Último Príncipe
O vento cortava a cidade com a frieza metálica de uma lâmina recém-afiada. Entre os edifícios altos de Tóquio, cujas sombras eram longas mesmo ao meio-dia, os painéis solares refletiam um brilho opaco, denunciando sua deterioração lenta e inevitável. Nos becos estreitos, postes acesos à base de combustão substituíam as antigas redes elétricas, cuja falha intermitente tornara-se tão previsível que já não causava espanto. O mundo não era mais como fora um dia. O progresso, antes uma estrada aberta, havia se fechado sobre si mesmo.
O Japão de 2175 não era uma nação de vanguarda tecnológica como outrora. O declínio não veio de súbito, mas como um fio sendo puxado de um tecido, desfiando-o com paciência cruel. As guerras econômicas e territoriais corroeram os recursos do planeta, tornando a energia um bem escasso, controlado por corporações que transformavam o essencial em privilégio. A internet não era mais um espaço público, mas uma rede restrita, acessível apenas a governos, militares e aqueles que podiam pagar pelo acesso. O mundo trocara o imaterial pelo concreto: a informação voltou a ser transmitida por cartas seladas, levadas por mensageiros treinados que substituíram cabos e ondas invisíveis.
No centro desse mundo cambaleante, resistindo como uma árvore de raízes profundas que se recusa a tombar, estava o Palácio Imperial. Atrás de seus muros grossos e jardins meticulosamente cuidados, a linhagem do Japão permanecia intacta, mesmo que o país ao redor estivesse em frangalhos. Ali, o último príncipe, Harauto, vivia como um símbolo, um nome que carregava o peso de uma história milenar e a expectativa de um povo que se recusava a esquecer suas tradições.
Harauto caminhava pelos corredores de madeira escura do palácio, onde cada passo ecoava como um sussurro em meio ao silêncio. Seu quimono era um misto de tradição e necessidade: feito de tecidos reforçados, projetados para durar, sem adornos exagerados, sem desperdício. O mundo não tinha mais espaço para excessos. Seu olhar era profundo, carregado de uma gravidade que vinha não apenas do peso da coroa que um dia herdaria, mas da certeza de que governaria um país que lutava contra a própria extinção.
Do alto da sacada de seu quarto, podia ver a cidade antiga e a nova coexistindo em um choque de realidades: templos e santuários ainda firmes, ladeados por prédios que um dia haviam sido centros de tecnologia, agora apagados, esquecidos como relíquias de um tempo que parecia mais distante do que realmente era. Mais abaixo, nas ruas, carroças puxadas por cavalos passavam ao lado dos poucos veículos elétricos restantes, cujo uso era restrito a missões essenciais. O retorno a métodos antigos não fora escolha, mas necessidade.
Harauto inspirou o ar da manhã, que trazia consigo o cheiro amadeirado das lareiras acesas por aqueles que não tinham mais acesso a aquecimento central. Seus olhos escuros varreram o horizonte, pousando sobre os limites distantes da cidade, onde as muralhas recém-construídas separavam a segurança precária da capital do caos das zonas periféricas. Desde que o Japão fechara suas fronteiras ao mundo, tentando preservar o pouco que lhe restava, cidades menores e ilhas periféricas haviam sido abandonadas. Algumas ainda resistiam, governadas por líderes locais que tentavam, sem sucesso, manter a ordem.
O príncipe virou-se e saiu da sacada. O dia começava, e com ele, os ritos que preservavam não apenas a cultura de seu povo, mas a sua própria sanidade. Antes de se vestir apropriadamente para suas obrigações, passaria pela cerimônia do chá. Era um costume que seu pai, o Imperador Akihito, fazia questão de manter, pois, segundo ele, se até mesmo o ritual do chá fosse esquecido, então o Japão já estaria morto.
Harauto se movia pelos corredores do Palácio Imperial com a precisão de alguém acostumado a seguir um caminho predeterminado. Cada dia começava da mesma maneira, não por escolha, mas porque tradição e estrutura eram as únicas coisas que ainda mantinham a engrenagem do império girando. Ele vestia um montsuki negro, de seda simples, marcado com o brasão imperial — o crisântemo dourado de dezesseis pétalas. Não havia tempo para adornos desnecessários. O mundo havia encolhido, e o luxo agora era um conceito estrangeiro.
A sala de chá era iluminada apenas pelo brilho do dia filtrado através das portas de papel de arroz. A austeridade do cômodo contrastava com a meticulosidade dos gestos do mestre do chá, um homem de idade avançada, de mãos firmes e olhar calmo, que inclinava a cabeça silenciosamente ao ver o príncipe se ajoelhar no tatame. O silêncio entre os dois era respeitoso. Harauto observava a água ser despejada no chawan com paciência cerimonial. O som do líquido quente tocando a cerâmica era a única coisa que existia no mundo naquele momento.
Ele bebeu o chá amargo sem hesitação, sentindo a temperatura atravessar seu corpo, como se estivesse absorvendo algo mais do que apenas a infusão das folhas moídas. Era a continuidade de um costume que existia antes mesmo da eletricidade. Ali, naquele instante, ele era um reflexo dos que vieram antes dele — e dos que viriam depois, se é que viriam.
O mestre do chá retirou-se sem uma única palavra. Assim como Harauto, ele sabia que aquele ritual não era um prazer, mas um ancoramento. Quando tudo à sua volta desmoronava, quando o Japão se tornava um mosaico cada vez mais precário de territórios desconectados, a repetição de um gesto ancestral era um lembrete de que ainda existia ordem em algum lugar.
O príncipe saiu da sala e dirigiu-se ao pátio interno, onde se preparava para receber seus conselheiros. No passado, suas reuniões aconteceriam por meio de transmissões holográficas, telas suspensas no ar, enviando e recebendo informações sem demora. Agora, a comunicação era uma coisa frágil, um elo de ferro corroído pela ferrugem do tempo e da escassez.
O uso da internet havia se tornado um privilégio de poucos. Os antigos servidores que sustentavam a rede global estavam desligados, e os poucos sistemas que ainda operavam pertenciam ao governo ou a corporações que cobravam valores exorbitantes pelo acesso. Em vez de mensagens instantâneas, cartas lacradas chegavam aos portões do palácio trazidas por mensageiros, suas montarias — ora mecânicas, ora vivas — cruzando estradas antigas para carregar notícias que já estavam desatualizadas antes mesmo de serem lidas.
Harauto pegou um dos pergaminhos recém-entregues. O selo de cera vermelha trazia o emblema de um dos daimyo, os líderes regionais que governavam as áreas fora da capital. A escrita meticulosa denunciava a gravidade do conteúdo antes mesmo que ele terminasse de ler:
"As tempestades destruíram os campos de arroz na província de Kaga. As caravanas de suprimentos não chegaram. Pedimos permissão para buscar alimentos diretamente da reserva imperial."
Ele fechou os olhos por um instante. Esse tipo de pedido tornava-se mais frequente a cada semana. O Japão, antes um império de precisão, agora sobrevivia no limite do imprevisível. As colheitas eram incertas, as rotas de comércio perigosas. Não havia mais reservas estratégicas como antes. Ceder alimentos àquela província significaria reduzir ainda mais os próprios suprimentos da capital.
Harauto entregou o pergaminho ao seu conselheiro mais próximo e suspirou. “Envie-lhes metade do que pediram. Se dermos mais, ficaremos sem nada antes do próximo inverno.”
A fome estava se espalhando, e isso significava que o verdadeiro perigo ainda estava por vir.
Os ventos que atravessavam os corredores do Palácio Imperial traziam consigo um cheiro distinto de madeira queimada, um odor que não deveria mais pertencer a uma era de avanços. Mas o progresso havia se esvaído como um rio que seca aos poucos, deixando apenas um leito ressequido de ideias inacabadas e invenções sem propósito. O mundo não regredira completamente, mas se dobrara sobre si mesmo, misturando o antigo e o novo em um mosaico de soluções improvisadas.
A energia elétrica, que um dia iluminara o Japão sem hesitação, tornara-se uma mercadoria limitada. Os reatores nucleares e as fazendas solares ainda existiam, mas seus números haviam diminuído drasticamente. Muitos foram desmontados para realocar recursos essenciais. Outros, simplesmente, tornaram-se impossíveis de manter. A eletricidade era racionada e entregue aos setores mais estratégicos: os hospitais, as estações de purificação de água e os servidores que sustentavam o pouco que restava da comunicação governamental.
O restante do Japão? Sobreviveu da maneira que pôde.
As cidades, agora menores e mais isoladas umas das outras, aprenderam a economizar cada centímetro de luz. As casas e os edifícios mais antigos, antes remodelados para a modernidade, voltaram a usar sistemas tradicionais de aquecimento e iluminação: lamparinas a óleo, fogões a lenha, calhas e tanques para coletar a água da chuva. Nas ruas, carros elétricos eram uma raridade, utilizados apenas pelos poucos que ainda possuíam acesso a estações de recarga. Em vez disso, o transporte urbano era dominado por carroças, bicicletas e veículos movidos a tração animal.
No centro de Tóquio, onde o Palácio Imperial resistia como uma fortaleza de tempos distantes, o retorno aos costumes antigos não era apenas uma necessidade, mas uma filosofia. Se o mundo já não podia avançar, ele deveria pelo menos preservar o que restara de suas raízes. Os conselheiros de Harauto não utilizavam telas, tablets ou qualquer meio digital. Os documentos eram escritos à mão, selados e entregues por mensageiros que cruzavam a cidade a pé ou a cavalo.
As comunicações com outras regiões do Japão seguiam o mesmo padrão. O país, outrora uma nação de fibra óptica e satélites interligados, agora dependia de mensageiros treinados para cruzar montanhas e florestas carregando informações em pergaminhos lacrados. Os clãs que governavam as províncias mais distantes também haviam se adaptado. O antigo sistema dos daimyo retornara, não como uma escolha, mas como um reflexo da necessidade. Cada feudo controlava seus próprios recursos, seus próprios estoques de alimentos, suas próprias milícias.
No entanto, o que realmente definia esse novo Japão não era o uso das tradições, mas a maneira como a modernidade havia se moldado à escassez. Ainda existiam laboratórios, mas seus cientistas trabalhavam com velhas ferramentas, evitando qualquer coisa que exigisse mais energia do que o necessário. Havia ainda algumas formas de comunicação digital, mas estas eram restritas e controladas pelo governo, usadas apenas para emergências ou para manter contato entre os líderes das províncias.
Harauto conhecia bem os limites dessa nova era. Ele caminhava pelo dojo do palácio, onde os guerreiros imperiais treinavam sem armas de fogo. As balas, caras e difíceis de produzir, haviam sido substituídas por espadas e arcos. Aço, madeira e disciplina. A guerra moderna, no Japão, havia retornado ao combate físico. O ronco das máquinas de guerra dera lugar ao som das lâminas sendo afiadas antes de um possível conflito.
Harauto parou diante de um dos guerreiros e observou a precisão de seus golpes. Não era apenas um espetáculo. Era um lembrete de que a estabilidade era frágil. O Japão, cercado por um mundo caótico, só mantinha sua paz porque ainda não fora desafiado por forças externas.
Os sinais desse desafio se aproximavam. E Harauto sabia que não havia como evitá-los.