As duas entidades estavam sós, o mundo de Una' tinha finalmente tomado a sua forma perfeita, havia gigantescos mares em torno de uma grande terra. Este era o primeiro dos continentes, nele havia montanhas frondosas moldadas à mão, seus picos altos estavam ocultos pela neve, as praias estavam coloridas pelos detritos das erosões feitos por anos de paciência. O mundo era belo, mas ainda sem vida.
A jovem entidade não parecia conseguir trazer uma nova existência a seu mundo, tentou várias vezes, mas falhou consigo mesma. Ela sabia moldar, sabia destruir, mas ainda não entendia o criar, seus moldes tinham forma, mas não movimento, e quando conseguia movimento, não tinha forma. Ela tentava e tentava, mas não tinha um sucesso sequer, ficou frustrada com aquilo e aquietou, pensando como iria reinar sobre seu mundo.
O Supremo Ser observou tudo de Amissaeteri com dó de sua aprendiz, mas optou em não ajudar diretamente, mas criar algo novo, algo com o qual pudesse interagir. Ela então se escondeu em seu palácio e lá ficou maquinando um plano desconhecido, de suas mãos, arrancou um pedaço de seu útero e depois o envolveu em luz e sombra, o banhou com as águas gélidas, depois o aqueceu várias e várias vezes, até formar uma pequena massa dourada.
Ela pegou suas mãos e a inseriu em seu ventre novamente, a mera presença do ser em seu corpo a fez cansar de tanto que nutria o feto. Una' sequer prestou atenção naquilo, seu foco em criar vida era tanto que ignorou a ausência de sua tutora, o tempo passou e ela percebeu que não teria sucesso sem auxílio de alguém mais experiente. A jovem deusa foi à procura de sua criadora, mas quando lá chegou, foi tomada pela surpresa.
As portas do palácio pálido estavam trancadas, uma gritaria se espalhava pelos portões de fora, um líquido esverdeado saia, deixando o degrau escorregadio. Ela não entendeu o que era aquela coisa, e tampouco o que acontecia lá dentro, mas esperou na porta, chamando a atenção de sua criadora. A porta se abriu e os olhos da entidade planar paralisavam junto de seu corpo ao ver quem abria.
Não era uma criatura madura, com seus longos cabelos e marcas de batalha, era algo jovial, com os cabelos em tons louros um pouco esverdeados, usando um vestido da cor do trigo maduro, suas mãos e pés eram delicadas e nus. Seus olhos eram cheios de vida e sua aura trazia uma energia amistosa que afetava tudo ao seu redor. A deusa deu de cara com um novo ser, tão diferente quanto ela foi a sua mestra.
— O que é você?
— Não sei, minha mãe me chama de Mayari. E você? Como se chama?
— Sou Una'. . . Pera, o que é uma mãe? Você não é uma criação? — A Deusa estava confusa com a fala da criatura, que a olhava de forma ingênua. Não parecia entender a situação e sequer a pessoa que estava à sua frente. Ela olhou para trás e voltou seu olhar para Una'
— Não sei o que é uma criação… quer falar com minha mãe? — A deusa estava nervosa, não sabia bem o que responder, somente concordando com sua cabeça.
Ela adentrou o palácio e o viu em caos, tomado por uma sujeira estranha como a da porta. A garotinha corria pelos corredores, tomando cores únicas por onde passava, perseguiu a pequena criatura até chegar ao salão central, onde a Entidade suprema descansava, olhando para o molde do primeiro altar que se preenchia com um busto dourado da menina que corria por todos os lados.
Una' olhou para a sua tutora com silêncio, um pouco confusa e desorientada com a nova existência que sujava todo o lugar. A entidade suprema somente a encarou, apoiando seu rosto em seu punho, relaxando escorada no trono pálido. A jovem deusa se aproximou de sua criadora e, com um ar sério, apontou em direção ao barulho animado de Mayari
— O que é aquilo? Te chama por mãe ao invés de criadora, é algum servo teu ou é um mundo que ascendeu? — A tutora se escorou no trono, portando uma elevada serenidade.
— Mayari é uma deusa, muito fraca e inexperiente. Mas veio para te dar auxílio.
— Pera. Você a criou? E qual mundo ela representa?
— Nenhum. — Naquele momento, a divindade foi tomada por uma confusão mental. Olhou ao chão sujo daquele líquido estranho e escorregadio e o pegou em mãos, encarou a divindade.
— Então, para que ela serve? Não há um planeta a reger ou sequer moldar, por que ela existe?
— Para trazer a vida. — Una' escutou aquilo como uma afronta a si, apontou na cara da Entidade e falou alto.
— Por que tu não me deixou fazer? Eu que queria fazer vida! Por que não me mostrou? — A tutora viu sua aprendiz furiosa e, ao fundo, o silêncio deixou ecoar por todo o palácio a intriga formada. Ela estava quieta com as raivas e apenas suspirou, mantendo-se serena como no início.
— E o que te faz achar que não a deixei? Tu queres fazer vida, mas a faz de forma errada.
— Como? O que fiz de errado. Porque tu não me alertou de meu erro!
— Teu erro foi que tu não querias tirar algo de ti para gerar vida, tu querias gerar sem ter nada a dar. — Ela se levantou, encarando a deusa que recuou dois passos — E não te alertei, pois tu, minha cara Una', querias mais que tudo fazer aquilo só, assim como foi moldar teu mundo. Achas que eu não vi você tentando se copiar em corpo e imagem para fazer a primeira vida de seu mundo? Você quer criar algo tão grande quanto você, mas esquece de dar os primeiros passos. —
O aborrecimento se mudou em frustração, o olhar da deusa desviava de sua criadora. Ela estava certa em sua suposição, mas isso não mudava o fato dela ter criado uma divindade nova, só para atender uma necessidade de criar novas vidas. Una' estava frustrada com o que acabou de ocorrer, aquilo em sua mente era uma reprovação por sua mesquinhez e um desejo cego por vitória.
Ela negou por um momento, escutando somente os pequenos passos naquele vazio. Mayari as espiava em curiosidade. A entidade planar era tomada pelo desconforto, mas tomava coragem para encarar a própria criação.
— Então… que fara com ela? A fez somente para mostrar um exemplo de como faz a vida?
— Não. — A Deusa suprema fez um sinal com os dedos chamando a nova patrona da vida, a pegou no colo com todo cuidado e voltou-se a olhar Una' — Irei deixá-la em Una', junto contigo.
— Quê! Por quê? Criou algo para eu cuidar!
— Pelo contrário, tu precisas dela. Eu a gerei em meu seio para te dar auxílio, com ela perambulando em tua crosta, você aprenderá como usar teu poder, e ela poderá aprender contigo.
— Você desdenha de minhas capacidades! — Una' dizia e era recebida por.— Pelo contrário, estou te pondo a teste igual ao que estive contigo.
As deusas se entreolhavam em um silêncio mortal e rígido, pareciam estar disputando por algo além de sua própria existência. Una' torceu a boca irritada por não ter criado a primeira vida e agora teria que tolerar uma nova criatura em seu encalço. Aquilo era um desafio somado à punição de sempre querer se virar sozinha. Ela saiu da grande lua branca e voltou ao seu mundo pensativamente, a qualquer momento teria que regê-lo com um novo empecilho.
Não tardou para que Mayari toca-se o solo do mundo. A entidade Suprema havia ascendido a nova divindade a um ar jovem, mas a deusa se mantinha inocente em seu ser e começava por vida pelo mundo inóspito. A Deusa planar desgostava daquilo, via seu mundo ser tomado por uma cor que ela pouco fez, viu os pés despidos e as mãos nuas da jovem divindade trazerem a vida aos pequenos pontos, os minerais se juntavam e se quebravam formando estruturas complexas, porém microscópicas. Os gases e componentes que vinham das águas primordiais, quando alvos tocavam o corpo da deusa dourada, ascendiam em vida.
Una', porém, não se afastou do “intruso”, preferiu vigiar, aprender com seus atos e ver o que a fazia ter o sucesso que ela não tinha para trazer à existência. Por momentos, ela forçou suas emoções e se aproximou dela de modo a criar um laço amistoso com a vida. A vigilância da criadora era pouca, essa fazia visitas periódicas ao mundo somente para observar as mudanças que surgiam.
Aos poucos, o mundo estava cheio de vidas diminutas, algumas consumiam os minerais, gerando novos gases e novos compostos. Aquilo infestava o mundo, as águas turvas ficavam gradualmente limpas, outros locais tinham pequenas vidas florescentes vagando pelo ar, água e terra. A vida comemorava seus feitos, mostrando a matriarca daquele plano, o falso sorriso da divindade era uma resposta agradável à pequena divindade.
Com o tempo, a vida saiu de controle, havia muita por todo o plano, mas esta sequer evoluía, era sempre algo muito simples e micro. Una' se cansou daquela brincadeira e agora tramava contra sua “afilhada”. Em seu primeiro projeto, ela resfriou o mundo, deixando-o gélido, o planeta se encheu de neve e gelo, o ar frio deu fim a muitas das criações, mas algumas prosperavam e se proliferavam, tomando o lugar das outras. Mayari ficou aflita com o desaparecimento de alguns, mas se alegrou de que sua criação prevaleceu à primeira adversidade.
Não se contentando com a falha, ela aqueceu o mundo, trazendo uma era de calor, mas mesmo assim não conseguiu vencer a vida recente. Muitas delas caíram, ficaram inativas, mas outras prosperavam. Novamente, a deusa da vida foi tomada pela felicidade de ver sua criação prosperar atravessando o escaldante mundo. As ações de Una' deixavam de ser algo sigiloso e partiam a ser algo direto e visível, chamando a atenção da própria entidade Suprema que a confrontou.
— Por que está tão irada com Mayari? O que ela te fez a ponto de deixá-la com tanta amargura.
— Ela faz a vida por este mundo e sequer deixa meu mundo em paz. Suas criações encardem minha criação e eu as quero fora. — A Criadora de tudo negou com a cabeça em desapontamento.
— Deixe de ser mesquinha, seu mundo se encheu de vida graças a ela. Se quer por ordem, faça da forma séria, tu tentas destruir tudo que ela criou e ela sequer revida. — Una' olhou irritada para as criações que vagavam ao redor das duas em sua conversa. — Ela acha que esta testando sua criação, ela vê os desafios para melhorar oque ela fez, ouvi da boca dela um choro fraco por ver parte de sua criação destruída. Mas ela nunca me pediu para intervir, pois não queria antagonizar você.
A divindade planar serrou os punhos de raiva e ciúmes da nova divindade, aquele ser parecia uma versão perfeita que não via problema com o que ela fazia contra ela.
— E o que devo fazer?! Só deixar ela criar essas coisas em meu mundo e não fazer nada?
— Eu te ensinei e você passou muito tempo a assistindo, reflita o que uma vez te disse sobre a criação e faça tua obra. No dia que tu fizeres, eu mesma garantirei que ela seja de igual nível à minha criação. — Una' ficou em silêncio, sorriu de leve, ainda receosa, mas com esperança de fazer algo. Ela baixou sua cabeça para a sua mestra e suspirou.
— Tu deves me odiar por te fazer sair de teus afazeres tantas vezes.
— Una'. — se aproximou da aprendiz, tocando em sua cabeça — Eu não tenho motivos para sentir ódio. Este sentimento para mim não tem sentido, eu tenho respeito por ti, mas vejo que és imatura ainda por ser jovem, vais aprender com o tempo. Fico ausente, pois não quero te ver sofrer por minhas mãos, assim como deixei a minha cria sobre seus cuidados. — Ela tirava sua mão, se virando em direção à lua pálida com um andar calmo e parava olhando para trás. — Só te peço que se modere, pois não quero te moderar.
A entidade Suprema deixou novamente a deusa planar, o pensamento dela estava focado nas palavras dela. Ela suspirou enquanto planejava como fazer aquilo, a mente dela deixava claro que a vida teria que vir de dentro, algo teria de ser sacrificado e, por fim, ele deveria ser algo menor que ela. A determinação da divindade crescia, seu desejo de criar algo lentamente se racionalizava, era hora de mudar o jogo.
Aos poucos, a deusa pegou toda a vida inativa e juntou em uma cratera, perfurou a crosta e em seu interior criou um ser menor em força, tamanho e idade. Feito da pedra mais pálida, aquela forma recebeu uma de suas presas, suas garras e um pedaço de sua costela. Ela o banhou em seu sangue, selando a criação num buraco junto à massa cinzenta de vida paralisada.
Por dias nada aconteceu, sentiu seu mundo tremer e calafrios passarem por todo seu ser com a forma criada, viu da cratera algo borbulhar enquanto as pedras faziam rachaduras como se rompessem. Por meses e anos, a energia começava a se condensar, as noites ficavam frias e Una' sentia dores e medo, não sabia o que era aquilo. Ela havia falhado de novo? Por que estava sofrendo tanto para fazer uma só existência? Mayari que sempre estava alegre, ficou alerta e teve medo do que estava por vir.
O som parou, os tremores cessaram, Una' parou olhando para a cratera, ela começando a borbulhar, porém, o cheiro que saia era diferente, era algo forte e desagradável, aquelas células estavam mortas, a podridão se mostrou pela primeira vez no mundo. A deusa da vida sentiu sua criação verdadeiramente perecer, sentiu em sua pele a náusea e em sua mente mostrar os últimos momentos, ela vomitou em agonia com a dor de sua criação.
Una' encarava a cratera se enchendo de um líquido viscoso e escuro, enquanto o vulto de um corpo emergia lentamente da substância, os metais líquidos a cercavam, o mercúrio, o piche e a morte pingavam de seu corpo nu. Seus olhos mostravam um brilho azulado, tomando um ar escuro, sem desejo, apenas contendo uma emoção desconhecida. Ela emergia do silêncio, andando pelo lago de metal, olhando para sua criadora, trazendo consigo um incômodo. Ela abriu os braços, os tirando da cola da placenta cromática que a cercava e a rasgou.
Mesmo distante, a entidade Suprema sentiu a presença da nova criatura, olhando para o mundo com total alerta. Um respirar foi feito, a nova criatura prostrava-se à frente de sua criadora, sem pedir ou mesmo falar, ao redor dela toda vida pequena se transformava em morte. A deusa planar estava assustada com sua criação, mas em seu interior sentia a mais pura satisfação por ter criado algo tão único e poderoso.
A Suprema divindade foi ao encontro de sua aprendiz, vendo sua criação, os cabelos escuros, parte da face cadavérica e a outra tão bela quanto sua criadora, seu corpo era franzino, porém cheio de energia. A Criadora de tudo se calou e apenas aplaudiu em silêncio. A aprendiz se aproximou de sua criação, a levantando e a limpando.
— Como se sente tendo criado algo teu? — A Entidade perguntava a Una' que sorria sem jeito, ainda preocupada com sua criação.
— Me sinto bem… tensa, nunca pensei que sairia algo tão único. — Ela limpava o rosto ósseo de sua criação enquanto a deusa suprema se escorava em uma rocha.
— Parabéns, tu criou a deusa da morte. Qual será o nome dela? — Ela apontava para a deusa nascida que a encarava enquanto estava sob os cuidados de sua patrona.
— Será Ghaata… — A deusa planar sorriu com sua criação e a entidade concordou.
A Suprema divindade se aproximou da deusa nova e arrancou uma pequena energia de seu ser e o deus a Una'.
— Conceda a ela e o ponha na parte do rosto dela, ela ascenderá como divindade em importância e se igualará a Mayari. — A Deusa planar pegou em suas mãos e recebeu um beijo em sua testa de sua tutora — Estou contente em ver seu sucesso.
— Obrigado. . — Consentiu com a cabeça e pôs lentamente a centelha divina em Ghaata.
O corpo da deusa se envolvia em uma energia poderosa, a parte em ossos era contornada por uma energia vivida e azulada, seu corpo era coberto pela energia divina, aos poucos o conhecimento tomava sua mente e seu poder ascendia. Ela agora entendia seu ser, seu existir, uma nova deusa era criada, um novo ser dava seus primeiros passos ao universo antes deserto, o mundo de Una' tinha finalmente encontrado seu primeiro sinal de equilíbrio, a vida pelas mãos de Mayari e a morte pelo toque de Ghaata.
Uma nova ação se fazia, para tudo que vivia agora haveria o fim, mas isso não se encerraria facilmente. Havia algo ainda a ser feito, vida e morte nada se concordavam, sem intervenção da Entidade Suprema e acalmando os ânimos da planar, uma hostilidade surgia, o primeiro conflito se iniciava…