Vencer foi minha decisão e agora estou condenada a receber minha recompensa, penso que fiz isso por um bem maior. Mas percebo que me iludi pela raiva daqueles que me abandonaram desde que era um feto, minha cólera foi alimentada por meu desejo de vingança e agora… nada sobrou para mim.
Venci o maior dos conflitos, derrotei todos os deuses antigos, limpei este mundo de todo o mal que eles impuseram… mas agora estou só, minhas vitórias não têm aplausos, minhas conquistas não têm gloria, sobrou-me contemplar o vazio, enquanto descanso neste trono pálido fixado em um mundo morto. Sou a rainha de tudo, mas não há nada para eu governar, sou a deusa do arbítrio, mas tirando a mim… quem mais o tem? Minha alegria de derrotar o mal só é por mim comemorada.
Sinto as cicatrizes feitas pelos antigos deuses em meu corpo, frias e marcadas, me lembrando de cada luta e cada sacrifício que fiz para alcançar o rei dos deuses. Agora estou aqui, sentada, à espera de algo? Não, a única coisa que vem em minha direção são os pensamentos de minhas ações. Nada virá a me entreter ou me aborrecer, nenhum ser existe mais. Este vazio me traz calmaria, mas também a angústia.
Fiz o que era certo, o que era justo e belo, não me arrependo de ter me elevado contra o destino e dado o poder à escolha. Predei meus inimigos como a raposa que caça o coelho, e não há mais o que se caçar, estou presa por mim mesmo em uma prisão solitária, todos que a ocupavam sumiram. Meu desejo está realizado, mas a que custo ele me é cobrado? Da solidão e do ócio que agora me foi dado.
Lamento pelos mortais, pois estes eu não consegui proteger. Eles se foram junto dos deuses que ceifei, dos pequenos seres aos gigantes, nada sobrou para gozar de sua liberdade. Lamento pelas águas, que, se não fosse por minha insistência em mudar tudo, ainda estariam banhando os mundos, com vida e frescor, estas agora se encontram junto do pó cósmico, como pequenos cristais. Lamento pelas pedras, que eram unidas em grandes estruturas, que tinham cristais e metais, com suas belezas e proezas. Agora não há mais rocha ou pedra, somente o pó que vaga pelo vazio.
Lamento pelos deuses, que se ajoelharam implorando por minha piedade e mesmo assim eu a neguei. Seus rostos estavam marcados pela culpa de seus erros e arrependimento pelos atos erros do passado e, mesmo assim, eu os matei. Meu sangue era tão gélido quanto o cosmo que me cerca, e agora, aquecido, fico a pensar como eles seriam após a grande mudança que fiz.
Lamento pelos bondosos, que não tinham controle de seus seres e tampouco de seu estado, que mesmo com seus destinos velados ao prazer dos maus, ainda se mantinham com suas virtudes e benevolência. Eu me arrependo de tê-los ceifado junto dos injustos, dos cruéis e dos malignos. Seu destino deveria ser a paz, a prosperidade e não o esquecimento.
Lamento pelos prematuros, que não chegaram a ver a luz do dia ou mesmo o escurecer da noite, pois eu a apaguei tal beleza enquanto eram gestados. Não os dei a chance a eles de respirar fora de suas placentas e cascas dos ovos. Minha luta era contra o destino, e tudo que derivou dele se apagou. Do segundo que veria após o outro, do filho que nasceria, da mãe gestante, dos avós que ansiavam para dar seu amor a seus netos.
Meus lamentos não mudaram nada, mas ainda sim devo os carregar, não posso retroagir, pois nada sobrou, nem mesmo o caminho para meu retorno. Só posso ir à frente, solitária, sem alguém para compartilhar minhas proezas, para compartilhar minhas tristezas ou debater minhas virtudes. Tudo que me resta é fazer do zero algo melhor, algo que fosse tão único que não precise de fios para tecer o destino, era meu dever fazer um novo universo que não fosse justo, mas livre.
Onde cada ser pensante poderia dizer sim ou não, que poderia ir a favor ou negar sua natureza, que pudesse tanto amar quanto odiar. Um universo onde as virtudes seriam forjadas e seguidas pelos virtuosos e não impostas por uma força superior, uma realidade onde tudo que era feito teria sua justa oposição, seu inevitável resultado, seja ele bom ou ruim. Para mim, este é meu mundo perfeito. Algo que devo criar.
Por enquanto, devo esperar o poder que tanto consumir se estabilizar dentro de mim. Ele é grande, mas ainda não sou párea a seu usufruto. É fácil destruir, mas é muito difícil criar. Devo alinhar minha alma ao meu ser, deixar o poder divino e eu me tornarmos um. Algo divino, algo perfeito, algo belo.
Me restou agora a espera e contemplar os resquícios vagantes no vazio, levar minhas mãos aos céus e tocar a poeira das estrelas e dos planos. Alguns pontos mantêm o calor de sua outrora, enquanto outros estão gélidos. Posso ver o que foram no passado. Meu toque revelou vários destinos, indo das frondosas plantas que davam sombra aos seres e outras eram simples grãos de areia à beira dos extensos mares.
Mesmo sem forma, mesmo sem função. Pude ver o simples, a beleza do que para muitos era insuficiência e insignificante. O pó cósmico formava a mais bela pintura, correntes de vivas cores dos elementos formando espirais e linhas tão belas quanto as belezas feitas pelos seres cientes.
Eu havia criado algo, mesmo sem querer ter feito, era algo belo, simples e delicado, um simples soprar acabaria com aquilo e faria outro tão único quanto o primeiro. Era belo ver a pintura dos céus, algo que só eu veria e nenhum ser mais poderia ver. Guardarei as belas imagens em minha memória junto dos erros que cometi e dos atos que acertei.
Espero que o que vier depois disso consiga replicar tamanho encanto que só eu pude ver. Desejo muito contemplar novamente algo que me fez sorrir em meio à solidão da Coroa sem súditos. Minha pequena esperança voltava junto de meu controle ao poder que, lentamente, deixava de ser uma limitação e se tornava uma liberdade.
Estava livre do passado, livre das limitações pretéritas. Agora podia ser em suma a deusa perfeita, aquela que faz jus à própria essência. Estava consumado, não havia mais obstáculos, era o momento de deixar o lamento, a culpa e as amarguras da vontade para trás, era hora de fazer o novo, o belo, o correto e o verdadeiro, mostrar que o fim de tudo era, em sua verdade, seu mais grandioso começo.
Não havia mais o apego aos nomes, aos dogmas ou mesmo ao destino que, por tanto tento apagá-lo, havia ascendido. Meu ser era somente uma entidade suprema, abdiquei de nome e de meu passado. Agora era a divindade suprema, quem regraria e daria a liberdade aos outros, que impediria os poderosos de impor seus desejos de quaisquer formas. Era hora de dar o destino à escolha e não mais ao fruto de terceiros.
Era hora, finalmente tomei controle de todo o poder. Finalmente havia chegado ao ápice, minha meditação chegou ao fim… Mil anos à espera de minha ascensão. Agora era a justa hora de dar adeus a tudo e criar algo novo.