O último deus antigo caia pela estocada do último golpe da guerra da era perdida, uma era onde não havia decisão a não ser dos antigos deuses. Estas divindades governaram com mão de ferro os mortais e as leis do mundo, suas vontades eram feitas independente de escrúpulo e todos os seres abaixo deles não podiam decidir sobre seu início, seu meio e seu fim. Eram brinquedos descartáveis de uma gincana doentia e que não seria parada por nada.
Uma divindade, nascida da falha de outra, surgiu como o algoz do destino. Incapaz de ser manipulada, impossível de ser prevista pelas clarividências das outras divindades, esta deusa abortada saiu dos ermos sombrios da realidade para tomar tudo para si, era uma predadora sedenta de sangue e rancor. Em suas mãos, ela empunhava a lança com a maior das bênçãos e das maldições, a lança do arbítrio, uma arma que impedia o destino de ser feito, um item que provocava tormento entre os antigos deuses.
Sua caçada começou pelos mais fracos, arrancando as centelhas divinas de seu ser em uma carnificina silenciosa e isolada. Os deuses eram soberbos e nunca pensavam que seus títulos e tronos poderiam ser contestados. A queda dos menores moldou o mundo dos mortais. Os pequenos seres controlados por estes agora estavam livres, porém, ainda sem saber o que fazer, haviam ganhado a decisão por suas ações e as consequências que dessas viriam e por isso foram tomados pela confusão de uma liberdade que nunca sequer era sonhada.
Com os anos, cada vez mais o mundo entrava em caos, deuses menores eram ceifados e devorados e os seres e objetos que estes representavam se desprendiam de suas vontades. O mundo dos mortais começou a ruir lentamente, os pequenos seres confusos, as leis naturais foram adulteradas e agora a soberba das divindades deu origem a um misto de desordem e medo. Seu orgulho e sua mesquinhez deixaram os mais fracos da hierarquia sucumbirem à morte e nem a própria morte sabia o que estava acontecendo.
A descoberta de que seus irmãos divinos foram devorados trouxe pânico às entidades, que se armaram para o grande mal que os perseguia. Mesmo unidos, a soma das centelhas divinas dos mortos demonstrou a fragilidade da cadeia do destino que estes mesmos empunharam aos seus fiéis, suas forças não afetavam o destino do antigo feto abandonado que era invisível à vidência divina.
Alguns deuses foram ao embate, mas cada vez era um funeral diferente a ser prestado, o destino que eles impuseram aos mortais agora estava sendo imposto a eles. O fim era próximo, e nada poderia ser feito. Cada Deus lutou por sua vida, lamentando-se pelos erros do passado, pelas vidas que concedeu e ceifou a próprio gosto, sentiram culpa das máculas e maldições que rogaram e das vilanias que cometeram aos inocentes em seus momentos de malícia.
Alguns encontravam-se com a entidade oculta, suplicando por piedade, mas esta se fazia de surda e executava sem qualquer remorso todas as divindades que se prostraram perante ela. Aqueles que lutavam usavam tudo à sua disposição, da ciência à magia, porém pouco se fez efeito. Tudo que vinha delas tinha um destino, mas este nunca impedia o arbítrio do sombrio predador.
A caçada sanguinária tomou os planos divinos, os mortais viam a ruína de seus planetas e os deuses a morte trajada com finas faixas vermelhas, do cabelo enegrecido esvoaçantes e das túnicas cinzentas e escuras com a marca de cada divindade ceifada e de seus poderes usurpados pela algoz.
As divindades superiores combateram com todo seu esforço e poder, o tempo havia sido parado, o espaço se distorceu, a justiça maculada e a hierarquia rompida. Nada sobrou, os deuses da antiga era tiveram seu fim, não pela lança de seu predador, mas por sua soberba e sua maldade. O arbítrio havia prevalecido pelos deuses antigos e agora tudo que já existiu havia acabado, os mares estavam secos, a terra foi salgada, as civilizações de outrora ruíram e os planos ficaram sem cor, sem amor e sem vida.
Tudo estava encerrado, a vitória solitária havia chegado à última entidade. O rei dos deuses foi seu último alvo, morto aos pés de seu trono na grande lua branca. Um trono feito da árvore que regrava em tempos pretéritos, da mesma árvore que deu início ao reinado dos deuses, foi usado para a haste da lança que deu seu fim.
A Entidade se sentou no trono, sozinha, sem súditos, sem aliados, a vida de todo o universo se resumia a ela e nada mais. Com sua lança, apontou para os mundos finados e com seu poder os transformou no pó cósmico. O vazio do universo era lugar de uma singela dança da poeira de seu passado que era apagado. Somente Amissaeteri, a lua branca e divina, havia escapado do destino dos mundos colapsados.
A divindade admirou as últimas luzes serem apagadas no céu celeste, as estrelas haviam se apagado, a poeira dos mundos havia se tornado como uma ventania que percorre o vazio... O tempo já não era mais medível, o espaço não tinha extensão e tudo que se tinha valor agora se perdeu.
O único som a ser ouvido em todo aquele vazio era do riso de um ser vitorioso, um ser que tinha poder de moldar tudo ao seu redor sob sua própria medida. Alguém que poderia fazer um universo livre do destino, justo em suas leis, sem contestações, sem omissões e acima de tudo, sem abusos das vontades de outros. A entidade Suprema se escorou no trono pálido, cansada das décadas de árdua guerra. Seus olhos estavam cansados e suas pálpebras pesaram-se aos poucos.
Sua lança ficou escorada em seu ombro, abraçada à divindade vitoriosa, sua cabeça tocou o acolchoado e sua respiração ficou lenta, seu coração era escutado por todo o vazio, em um rito calmo e harmônico. Sua luta acabou, sua batalha teve fim, seu descanso e sua meditação eram a recompensa que lhe sobrava, a ponta da lança escorreu o sangue do último Deus caído e se purificou das impurezas do mesmo.
Os olhos da entidade se fecharam, seu corpo relaxou no trono. Era o último ato a ser feito, era o fim de uma Era perdida... e o início da era do verbo.