Lize abriu os olhos, a imagem do hipogrifo gravada em sua retina como uma queimadura. A penumbra do quarto, filtrada pela tênue luz da manhã que rachava a poeira da janela, não apagava a lembrança vívida do sonho. A voz do hipogrifo ecoava em sua mente: "Você é uma bruxa. Existe um lugar para você em Aethelgard…". A promessa ecoava, quente e reconfortante, em contraste com o frio que se aproximava.
Um arrepio, fino como agulha de gelo, percorreu sua pele. Não era um sonho; era um chamado. O mapa, impresso em sua mente com assustadora clareza: o rio serpenteava, montanhas se erguiam, florestas se estendiam, vilas se aninhavam nos vales. Ela sentia o cheiro úmido da terra, o vento fresco entrelaçado nas folhas, o gorjeio dos pássaros... como se já tivesse trilhado aquele caminho.
Dez anos. Dez anos de solidão, de risos cruéis que a estilhaçavam, de um abandono que a tornava invisível, uma sombra na própria casa. Na escola, o TDAH a tornava um alvo fácil. A incapacidade de se concentrar, a distração constante, a dificuldade em acompanhar as aulas, tudo isso se traduzia em olhares de desprezo, sussurros maldosos, e empurrões. Em casa, o abandono apenas amplificava a fragilidade causada pelo bullying, criando um ciclo vicioso de sofrimento. E agora, bruxa? Um mapa mágico para uma aldeia encantada? Um futuro diferente? A complexidade a deixava sem fôlego, seu corpo tremia, a respiração presa na garganta. A pequena Lize, que só queria brincar e ser amada, carregava o peso de um segredo mágico e a responsabilidade de uma jornada perigosa. As lágrimas picavam seus olhos, mas ela as reprimia. A voz do hipogrifo ecoava: "Você não está sozinha". Um fio de esperança, tênue como um fio de ouro, rompia a escuridão.
A porta rangeu, a voz áspera de sua mãe a arrancando de seus pensamentos: "Lize! Acorda, menina! Você vai se atrasar para a escola!" Clara, um vulto de impaciência, o cabelo um ninho de fios rebeldes. A ausência de afeto em sua voz era um golpe frio. Lize já estava acordada, presa na teia de seu sonho. O mapa de Aethelgard, um grito silencioso contra a realidade sombria que a aprisionava.
"Já estou acordada, mãe", murmurou Lize, a voz quase apagada.
A irritação de Clara era uma lâmina cortante: "Então por que você não está se arrumando? E o café da manhã? Você já preparou? Lembre-se que você vai a pé para a escola hoje..." A ameaça pairou no ar.
Um nó se formou em sua garganta. "Ainda não, mãe. Eu..." As palavras se recusavam a sair.
Clara a interrompeu: "Ainda não? Lize, você sabe que tem que preparar o café da manhã! E hoje, você vai andar até a escola, certo? Seu irmão não quer que você vá com ele de carro..." As palavras, cruéis e expostas, eram um punhal em seu coração.
Um aperto no peito. Era sempre assim. Justin a rejeitava. E Clara se curvava aos desejos do filho.
"Sim, mãe", sussurrou Lize, as lágrimas ardendo nos olhos. Clara se virou e saiu, a porta batendo com um estrondo.
Lentamente, ela se vestiu. O uniforme ridículo, as calças curtas demais. Ela vestiu meias de seda brancas, tentando se proteger do frio.
A escova de dentes raspou em seus dentes com a mesma frieza com que ela enfrentava a vida. A água fria em seu rosto, um choque que a acordava de verdade. O creme hidratante nas mãos rachadas, um gesto quase ritualístico. Na mochila, livros, cadernos, e o caderno de desenho, um porto seguro.
Ao sair do quarto, a cozinha estava fria e vazia. Ela preparou o café da manhã com movimentos automáticos, serviu a família, sem esperar nada. Saiu de casa, o peso daquela manhã a esmagando. Mas a longa caminhada a esperava.
O frio de menos 4 graus a atingiu como um soco. O ar gélido picava seu rosto, enquanto a cidade cinzenta se estendia diante dela. O barulho dos carros que passavam a distraía, assim como o gorjeio dos pássaros, um som quase irreal naquele cenário congelante. Um gatinho filhote, perdido e faminto, se aproximou dela, seus miados fracos ecoando no ar gélido. Lize parou, observando o pequeno animal, seu coração apertado pela fragilidade da criatura.
Então, na esquina, uma figura encapuzada. Não era apenas uma figura; era o hipogrifo. A surpresa a atingiu como um raio, a deixando paralisada, sem fôlego. Seu coração disparou, batendo forte contra suas costelas. Uma gratidão imensa a inundou, uma onda quente que a envolveu, dissipando parte do frio. As mensagens de carinho que ele e os outros animais haviam lhe enviado através do jogo, agora eram reais. Ela sentia uma necessidade imensa de um abraço, um abraço de gratidão, um abraço de reconhecimento. Ela sabia, naquele instante, que tudo aquilo era real. A aventura, ela percebeu, com as lágrimas finalmente escorrendo pelo rosto, já havia começado de verdade.
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