Conseguimos tudo que precisávamos, os documentos chegaram nos dias esperados, o início de nossas operações era certo. Inicialmente tivemos um sutil contratempo graças a Wu com seus problemas derivados pelo corpo adquirido, mas continuamos mesmo assim, tive de transferir algumas de suas atribuições.
Guan Qi toma o lugar de Zhuang no estudo do cadáver. Mesmo que este se mostre um pouco relutante de início, ele se mantinha com grande competência em suas atribuições dada. Ji Annchi desconfiava um pouco do seu novo colega, mas se aliviava por não precisar mais entrar em debates inflamados com o burocrata. Noko, por sua vez, agora estava acompanhada pelo bibliotecário do Liceu, que nos acompanhou por grande parte do início das pesquisas.
Se posso comentar sobre o bibliotecário, é que ele é um tanto incomum, também é um usuário de magias arcanas, mas tem grande diferença de Zhuang. Ele aparenta ser muito menos ortodoxo e bem liberal, com diversos elementos ainda mais culturais, mesmo que o nível de organização seja idêntico… parece que isso é um padrão dos draconatos daquele lugar. Mesmo assim, ele parece ter competência para o que estamos fazendo.
Inicialmente acompanhei os homens no estudo do corpo, diferente do anterior que era simples de se abrir, aquilo foi algo bem complexo, a pele era composta de escamas pesadas, difíceis de serem cortadas. Por um momento, pensamos em como fazer aquilo de forma eficaz, e Guan Qi sugeriu usar mais força, mas aquilo era impensável, tínhamos que preservar o corpo para o estudo e, se ocorresse um erro, poderíamos danificar mais alguma coisa que não queríamos.
Lei Jin, por sua vez, preferiu amolar a lâmina e usar alguns alquímicos para enfraquecer as escamas de uma pequena parte do corpo. Aquilo parecia melhor, até mesmo Qi concordou com a ideia com grande facilidade, eles se davam bem, era visível isso, um tomou a pedra para afiar a lâmina enquanto o Herbalista recorria aos seus recursos para criar uma solução capaz de enfraquecer o couro e as escamas.
Ajudei Jin com meus conhecimentos alquímicos, conseguimos usar uma solução que se auxilia e demos início ao corte do couro nas partes mais sensíveis, permitindo um corte mais preciso. Descobrimos que o pescoço, mesmo sendo uma parte pequena, tinha um couro grosso e escamas muito sobrepostas às outras, além de ser mais denso que o comum. Precisamos de um esforço conjunto para tirar algumas partes, mas deu certo. Gradualmente, eles pararam aquela epopeia em forma de trabalho e conseguiram abrir a barriga para o estudo dos órgãos.
Após aquilo, os deixei com a parte técnica enquanto fui ver os outros em suas pesquisas. Annchi e Wu Wu estavam em uma situação um pouco diferente… a elfa mantinha um olhar de dúvida e um pouco de desgosto com a situação. Zhuang pegou todos os documentos e os separou em tabelas e fileiras diversas dos pergaminhos, documentos e dos livros, muitos desses organizados em tamanho e autor.
O mago pegava capítulo por capítulo para ler, anotando tudo e redigindo cada elemento em uma ordem direta e precisa. Cada anotação feita era posta em uma caixa sobrepondo a anterior. Não havia muita discussão entre os dois, mas parecia que a barda estava um pouco entediada com aquele jeito que era tratada. Era notório que, por conta de Ji, conseguimos os meios para achar o corpo, mas Wu ainda não aceitou bem a decisão. Mesmo quando falavam sobre algo necessário ou interessante para as notas, Zhuang respondia de forma curta e seca.
Atuei ao lado da elfa com algumas anotações, ela aproveitou para falar de grande parte da história draconiana e muito dos elementos ligados à religião do Deus-Dragão. Percebi que ambos estavam vendo inicialmente só sobre a história, não havendo grandes conflitos, mas algo me dizia que essa falta de comunicação iria custar caro para mim quando fosse compilar, mas preferi deixar as coisas amenas.
Por um momento, foquei-me nos estudos ligados aos trejeitos e características do povo dragão. Aproveitei a presença do bibliotecário para conseguir tirar mais dúvidas, como estavam do outro lado tive de caminhar um pouco até ver as novas ações de Noko, que dessa vez aproveitou e conseguiu de alguma forma mirabolante trazer consigo outro draconato para estudo, dessa vez um miliciano da província.
Aquilo me desconcertou, como ela conseguiu trazer um soldado de uma das guardas mais rígidas do império? Eu não faço a menor ideia de quais argumentos ela usou para tal, mas foram muito bem-sucedidos. Quando indaguei o guerreiro, as poucas coisas que disse eram “uma honra em prol de toda sua raça” enquanto ela estudava na cauda pela bestial e pelo auxiliar.
Depois daquela cena, consegui comunicar com o enviado, ele era bom de conversa e parecia ter grande saber, explicou com grande destreza sobre as cores nas escamas, as formas de rosto e cifres, além de algumas características comuns e derivadas de relações com elfos. Única coisa que causava um certo desconforto era a quantidade de vezes que ele reparava em minha postura, me tocando inúmeras vezes para me portar corretamente.
Consegui anotar bastante sobre os documentos e as citações, foquei-me depois no trabalho da aventureira que estava indo bem. Ela sabia mexer com pessoas, e inclusive convencê-las do que ela fazia, ela estudou as escamas, o sopro, as garras, os dentes, a força de cada ato, a ação de cada coisa e fator, naturalmente eu viria aquilo como perigoso, mas ela conseguia me convencer de que era necessário.
Por todo o momento de tratamento do guerreiro, ela se manteve comunicativa, ele parecia procurar algum tipo de confirmação ou validação de algo, como se todo ato provasse que ele era um exemplo a ser estudado. Seu corpo era forte, isso era visível, de resto, ele era comum, mesmo portando algumas coisas ligadas à magia… ele não a usava, sendo mais focado no poder físico. Até sua cauda, que em muitas vezes é vista como algo que lhe dá estabilidade em combate ou investida, está sendo usada como algo de combate.
Ajudei-a por um momento até que conseguimos garantir algumas coisas, principalmente funcionamentos físicos e locomoções do corpo e algumas reações alérgicas. Aquilo procedeu com grande excelência, e consegui entender um pouco mais das anotações de Noko e como elas eram feitas. Por fim, retornei ao centro para ver como estava o processo com o corpo, mas a visão não era tão agradável quanto o esperado.
O Copista e o apotecário estavam perplexos, haviam extraído todos os órgãos possíveis do corpo, mas parecia ter algum empecilho, os atrapalhando em sua atuação. O pâncreas estava deformado, amarelado e cheio de ondulações, parecia maior que o normal, a bexiga estava tão estranha quanto, parecia um saco de fundeiro. Olhei para eles por um momento, sem entender o que de fato aquilo era, era um órgão doente.
Além dos órgãos estranhos, foi descoberto que parte da carne, principalmente onde se encontrava o ferimento que levou à morte do guerreiro… estava envenenado. Aquilo era estranho, e ia totalmente contra o que nos foi dito. Eu sentia um alto arrependimento por aceitar aquele acordo…, mas não era o momento de recuar, tínhamos que terminar o que havíamos começado.
Tive de chamar Ji para nos ajudar a entender o que havia ocorrido de fato, mesmo ela não gostando de mexer em corpos, ela foi a nosso auxílio, descobrimos que aquilo era uma doença ligada à bebida, pessoas que bebiam demais podiam ter aquilo. Era um fato curioso, mas graças àquilo teríamos que especular o tamanho original dos membros que estavam maiores graças a mácula.
Quando abrimos os órgãos, a situação era pior, da bexiga saíram diversas pedras, no total seis, e o fígado parecia uma massa disforme de tão estranho que estava. Agradeci Annchi que voltou para seu posto enquanto nos cuidávamos do corpo. Eu tinha poucos arrependimentos na vida, um deles foi ter comprado aquele corpo. Infeliz que fui com o tanto trabalho que este me deu, mas ainda tinha que continuar.
Voltei aos dois que focavam nas escritas, já haviam feito boa parte dos documentos, aquele método aplicado pelo draconato era eficaz, mesmo que não mostrasse ser muito passível de discussões ou ideias. Mesmo assim, pude ver grande parte dos documentos, está tudo feito de forma muito tabelada, e várias vezes continha elementos que chegavam a ser bem técnicos. Na parte de Ji, as anotações se mantinham iguais às antigas, muitas notas, mesmo que curtas.
Na parte ligada à Wu, as coisas tomavam um ar bem mais elaborado, vi muitos mapas mentais, resumos, explicações curtas e cronologias. Ele tinha um costume estranho que tabelas notas em números no fim das páginas e usava constantemente símbolos com significados explicados em outras folhas. Aquilo era uma forma de economizar tempo, era genial, mas não sabia como seria usar aquilo em um livro gigante como era o livro das raças.
No total, demoramos quase três semanas desde o início para completar os estudos sobre os draconatos. A religião deles não era fácil de se compreender, suas culturas eram pouco comparadas à dos elfos, mas eram muito complexas. Nas questões de variantes, podia mudar perante a cromagem de cada um e, por fim, elementos como nobreza, nomes, métodos, origem ficaram bem mais precisos, mas custaram tempo.
Devo admitir que o trabalho do corpo me levou a suspeitar de algo, mesmo dissecando o corpo inteiro, percebemos diversos problemas, aquilo foi um assassinato e não uma execução, eu teria de verificar isso, depois… ainda havia muito trabalho. Terminamos de fazer todas as anotações que eram tantas que viraram quase manuais de entendimento da história e da cultura, até mesmo o bibliotecário ficou surpreso com a quantidade de informação extraída dos poucos documentos e pergaminhos que vieram.
Perdi a capacidade de dormir por algumas noites tentando compilar somente o essencial para explicar aquele povo, nunca imaginei que haveria tanta informação assim só de um grupo minoritário no império. Temo que isso valerá para outras raças de fora, mas até lá haverá um caminho muito longo a se seguir… no momento, consegui expor o que precisava, muitas notas foram passadas…
Quero acabar logo com isso, eu devia ter ouvido a Noko… Koboldos seriam bem mais fáceis de fazer. Mas agora não havia como retroceder, dias vão se passar, mas tenho que entregar isso… e ainda agora, que sei que há mais alguma coisa a ver, mais algo a explorar. Não irei deixar impune as mentiras daquele falso coveiro, ele vai pagar por ter me enganado.