A situação ficou mais delicada do que imaginei. Mesmo tendo direito dado pelo próprio imperador, havendo auxílio de liceus e da própria casa da Mudança, eu tinha um problema grave ligado a um único objeto, o corpo de um draconato. Zhuang havia dito que, por conta de tradições muito específicas de seu povo, era extremamente difícil que um corpo estivesse disposto para ser entregue para nossa causa.
A discussão nas salas e entre os pedidos por carta era um problema claro para todos, houve semanas de troca de mensagens tanto com Běij quanto com Tion e parecia que nada ia funcionar da forma que eu desejava. Reuni a todos para tentar uma solução viável, algo que pudesse ser feito de imediato para conseguirmos dar início breve as pesquisas, mas um entrave estava dificultando tudo, Wu Wu não era muito tolerante com certas violações de sua cultura, mesmo com estas sendo necessárias para a nossa continuação.
Negações, seja pelas cartas ou pelas inúmeras justificativas para não se usar corpos de seus semelhantes, elevaram as emoções dos membros. Jun e Piao se uniram para discutir contra o mago, usando de todas as argumentações possíveis de seu acervo para rebatê-lo e convencê-lo da necessidade de colaborar. Em alguns momentos, o nervosismo na face do draconato era imenso, ao ponto de ser audível os estalos da energia saírem de sua boca. Se não fosse tão controlado quanto era, era provável que um de nós três tivesse tomado um raio no meio do peito.
Porém, algo me pegou de surpresa. Ji Annchi, mesmo sendo a mais comunicativa entre todos daquela sala, era a única que não tinha se expressado, estava concentrada em uma leitura quase crítica, sentada ao fundo, mudando sua atenção somente nos momentos de maior alarde. Noko ficou ativa na conversa, mas ficava pendendo de lado ao outro, reforçando tanto o conservadorismo de Zhuang quanto os fundamentos de Piao. Ela parecia abastecer uma fogueira com óleo puro de baleia ao invés de lenha. Por fim, em uma jogada mestra, a elfa se levantou com o livro aberto e começou a dizer certos trechos.
No momento, ninguém entendeu o significado das primeiras falas, mas quando ela avançava de parágrafo, dois lados foram tomados pela surpresa. Ela descobrira uma pequena brecha nos dogmas e na tradição sobre o tratamento dos mortos, aquilo era uma mudança de jogo e tanto, finalmente tínhamos alguma esperança do que poderia ser feito para conseguir dar continuidade ao trabalho. Mas era visível o desconforto do mago, que não gostou em nada de ver quase todos contra ele.
Ainda se tinha que achar um corpo que batia naquela exceção dita, era hora de procurar. Como uma forma de conseguirmos algum ganho de tempo, entramos em contato com alguns calabouços e funerárias próximas. Nos calabouços não se tinha nenhum exemplar usável, os criminosos eram em sua maioria criminosos e os poucos Draconatos falecidos tinham crimes insignificantes e não entravam na restrita lista. Indo para as casas funerárias, os resultados foram similares.
Algumas casas funerárias tinham certas atividades adicionais, algumas estranhas demais para sua função original. Em uma das cartas enviadas, encontrei uma em específico, que havia o que precisava, um draconato que pereceu recentemente, indagamos o que havia acontecido com ele. Foi nos dito que ele havia atentado contra um oficial de baixa patente. Quando morreu, a família negou o reconhecimento do corpo por desgosto do fato, ficando sob a propriedade do oficial que o matou, que o trocou por algumas moedas.
Em negociação singela. Ji conseguiu adquirir o corpo para estudo, porém sob um custo alto por um motivo exótico. Já que deixariam de venda os dentes e do “Baforador”, uma parte próxima ao peito dos draconatos usada para soprar elementos assim como seus primos dragões. Quando chegamos com o corpo, tanto eu quanto Annchi omitimos aquelas informações para evitar a ira do draconato que provavelmente mataria o dono da funerária.
Zhuang não ficou nenhum pouco contente em ver um dos seus mortos, via sua raça como algo maior, algo digno e respeitável… e agora ele tinha que usar magia de conservação para garantir uma futura dissecação do finado, sequer sabendo o nome de quem um dia foi. No entardecer daquela conjuração, ele me solicitou para me mudar somente naquele caso com outro integrante da equipe.
Entendia a angústia dele, mesmo sentindo um ar hipócrita, ainda mais após ele ter discutido como seriam abordadas as informações sobre os membros quando foi um elfo. Annchi comemorava silenciosamente, misturando chá frio de ameixa com baijui. Lei olhava para ela como se tivesse perdido uma aposta. Algo estava muito estranho com aqueles dois, estariam cooperando ou competindo para ver quem fazia mais esforço? Não sabia dizer, mas era bom ficar de olho se havia alguma trama.
As coisas pareciam mostrar melhora, as cargas e documentos do liceu chegaram íntegros, e há poucos dias chegariam os da casa da mudança. Porém, Guan descobriu uma coisa estranha no corpo, fui com ele para verificar o que era e de fato havia um grande buraco de três pontas nas costas do cadáver. Aquilo não batia com o fato dito, havia algo estranho a se ver, mas naquele momento eu não poderia comprometer meu dever com o imperador.
Organizei tudo nos dias seguintes, em breve iniciaremos os estudos. Noko me ajudou um pouco naqueles dias mais conturbados, enquanto Lei Jun começava a falar de algo que poderia ser útil às pesquisas. Mas ele só poderia fazer se tivesse permissão. Comecei a desconfiar do que poderia ser, mas não o impediria se, antes de fazê-lo, me mostrasse que era uma técnica de tratamento e de teste de certos químicos.
No momento, não entendi como faria aquilo, mas dei permissão para ele só o fazer após todos os outros testes. Ele me agradeceu pela oportunidade, eu devo admitir que essas semanas foram cansativas e resultaram em pouco, mas fico feliz em ver que estamos mais próximos de dar fim a essa odisseia em forma de livro.