A brisa trazia o cheiro do mato molhado e de comida de roça recém-feita. O chão vibrava leve, como se o bairro inteiro respirasse junto com a terra.
O batuque de um pandeiro ressoava ao longe, misturando-se às risadas de um grupo que ensaiava uma roda de samba improvisada.
Moyo desceu primeiro, ainda impactado pela sombra que viu. Seus olhos buscavam respostas no silêncio entre um batuque e outro, no voo dos passarinhos que cruzavam o fim da tarde.
Foi então que ele viu.
Um android surgiu de dentro de uma encruzilhada, reluzente como uma estrela do passado que nunca deixou de brilhar. Ele usava chapéu, camisa de botão aberta no peito e uma alegria nos olhos de quem só quem conheceu e viu Uberlândia e o Patrimônio crescerem sabe ter.
Ôxe! Mas se não são os dois curiosos que tão correndo atrás do amanhã, feito tatu procurando entrada de toca! — disse ele, abrindo os braços como quem acolhe e provoca ao mesmo tempo.
Moyo arregalou os olhos.
É ele? É o…?
Mestre Bolinho.
O Mestre girava no próprio eixo como se estivesse dançando com o tempo. Os pés deslizavam no chão com leveza. Seu corpo era feito de aço, mas cheio de memória.
Vocês chegaram num momento bonito. Aqui no Terreirão do Samba, meu filho, o tempo não anda pra frente nem pra trás. Aqui o tempo gira, igual roda de samba e pensamento de mãe. Se ocê não entende agora, espera que a gira te explica.
Moyo olhou pra mim, meio sem saber se ria ou se perguntava.
Mestre Bolinho continuou apontando pros arredores.
Tá vendo esse chão? Foi pisado por vó parteira, menino que soltava pipa, lavadeira que sonhava em ser engenheira, por gente que queria amar sem ser julgado e até por quem achava que não tinha futuro. Mas aqui a gente transforma tristeza em tamborim.
Um grupo de crianças jogava bolinha de gude digital, as esferas piscando em neon sobre a terra vermelha. No fundo, um grupo de jovens pintavam um grafite interativo que mudavam conforme quem passava.
Isso aqui é mais do que bairro, minha filha, disse ele, me encarando com ternura. É terreiro de memória, é quintal de invenção.
Moyo olhava tudo em silêncio. Ele parecia ver com o coração.
Mestre Bolinho… Ele começou. O senhor acha que ainda dá tempo de reencontrar o que perdemos no caminho?
O Mestre sorriu, aquele sorriso de quem já dançou com o impossível.
Dá tempo sim, menino. Enquanto tiver tambor batendo, enquanto tiver um fio de afeto pra puxar a saudade e tecer esperança… sempre dá tempo. Só num pode deixar a mentira arrancar as raízes da gente.
Ele se aproximou e tocou no ombro de Moyo.
A vida vai te mostrar. Mas olha, presta atenção: o amor não é só flor. Às vezes, é semente em terra dura. Tem que molhar com carinho e perseverança.
Vamos Moyo. Eu disse. Precisamos ir.
Mestre Bolinho riu.
Agora sim, minha filha. Agora você tá entendendo. Bora dançar, que o mundo não espera!
Os tambores ecoavam ao longe, um chamado que parecia guiar nossos passos. Seguimos em direção à única casa que nos daria respostas, seus contornos envoltos numa névoa suave de ervas e terra molhada.
Elas nos esperam, afirmei, pisando em solo macio. Minhas botas afundaram levemente no musgo que crescia até as paredes da Casa de Cura, como se a terra a abraçasse.
Paredes de tijolos de barro reforçado com fibras inteligentes sustentavam um teto verde, onde trepadeiras floridas se entrelaçavam a painéis solares flexíveis. Ventiladores silenciosos, movidos a brisa e energia cinética, espalhavam o perfume de lavanda e de eucalipto para aliviar a mente.
Moyo parou na entrada, com os olhos escancarados.
Isso aqui tá… vivo?
Antes que eu respondesse, a casa pareceu ouvi-lo. Uma jiboia enrolada em uma coluna metálica esticou um galho em sua direção, que tocaram levemente seu ombro.
Mais do que vivo, expliquei, observando seu espelho.
Dentro, a poltrona de madeira parecia ter crescido no local, seus entalhes imitando galhos retorcidos. Quando Moyo encostou os dedos no braço, um tremor quase imperceptível percorreu o assento, como se a árvore que a gerara ainda estivesse ali, adormecida sob o verniz.
No altar, búzios repousavam sobre pequenas placas de cobre que vibravam levemente, como se conversassem entre si. Ao lado, um tablet de bambu piscava em sincronia.
Os búzios falam. A tecnologia escuta, expliquei para Moyo.
Sobre a mesa redonda, folhas de salvia frescas exalavam um aroma amargo, dispostas ao lado de uma pirâmide em realidade aumentada que girava lentamente.
Mãe Dandara, sentada na poltrona, ergueu o rosto, suas contas tilintando suavemente enquanto um sorriso enigmático se formava. Mãe Lúcia, ao lado da mesa, segurava uma cuia de barro cheia de ervas, seus olhos sábios observando tudo com paciência.
Mãe Zana apoiava-se no altar, seus dedos brincando com um pingente em forma de disco solar, a luz refletindo-se nas partículas luminosas de seu vestido.
Olá, minha Aroyê… e seu amigo, disse Mãe Dandara, sua voz grave como o som de um tambor distante.
Moyo! Ele respondeu, visivelmente desconfortável.
Vocês estão aqui para entender, não é? Para buscar o que foi deixado para trás… Continuou ela.
Eu sabia que não adiantava me esconder. As três sempre viam além das palavras.
Sim, Mãe Dandara, comecei. Estou aqui para...
Ela ergueu a mão, interrompendo-me com um gesto lento.
A questão nunca foi sobre o que você está aqui para buscar, minha filha. A questão sempre foi o que você está disposta a encontrar.
As palavras pairaram no ar como folhas ao vento. Moyo cruzou os braços, o cenho franzido.
Como assim? O que isso quer dizer? Ele perguntou.
Mãe Dandara balançou a cabeça e sorriu. O que foi cortado uma vez pode crescer mais forte… mas as raízes nunca mentem.
Ela virou-se para Mãe Lúcia, que já havia começado a mexer nas folhas dentro da cuia.
O presente nos confunde Moyo, disse Mãe Lúcia, a voz tranquila. Às vezes, a resposta que procuramos está bem aqui, debaixo do nosso nariz, mas estamos tão presos às complicações do passado ou às incertezas do amanhã que deixamos passar.
Ela estendeu a cuia para mim.
Masca as folhas de sálvia Aroyê. Elas vão te ajudar a limpar o que precisa ser limpo, para que você enxergue com clareza.
Peguei uma folha e a mastiguei, sentindo o sabor amargo se espalhar na boca. Moyo arqueou a sobrancelha.
E eu?
Mãe Lúcia sorriu.
Você já está mastigando as dúvidas menino.
Agora só precisa digerir a realidade.
Moyo bufou, sem saber se ria ou se saía dali.
Mãe Lúcia nos guiou até um espaço circular no centro da sala, onde o chão era de terra batida e musgo vivo, e um círculo de espelhos refletia o céu acima, mesmo que estivéssemos sob um teto. Era como se o tempo ali fosse maleável, dobrando-se entre passados que resistem e futuros por vir.
Ela apontou para o centro do círculo.
Aroyê, Moyo... sentem-se.
Nos sentamos. Mãe Dandara acendeu um bastão de palo santo e passou ao redor do nosso corpo, traçando símbolos invisíveis no ar.
Têm forças que querem que esqueçamos de onde viemos pra que não saibamos pra onde podemos ir, disse ela.
Mas aqui, não tem esquecimento. Aqui tem memória viva.
Aroyê, a tecnologia é uma ponte para o amanhã. Mas precisamos aprender a atravessá-la com sabedoria. Alfabetizar-se digitalmente é entender os caminhos, e não se perder entre eles.
Foi então que Mãe Zana trouxe uma tigela de argila com água e cristais ametistas no fundo. Quando ela a colocou diante de nós, a superfície começou a se mover como se tivesse vida própria. No reflexo, vi meu rosto... e de Moyo ao fundo.
A vida é um código aberto, disse ela. Quando mal decifrado, vira prisão. Quando compreendido, vira caminho.
Olhei pra Moyo. Ele desviou o olhar, mas não recuou.
E se for um erro? Ele perguntou. Mãe Lúcia sorriu.
Até os erros têm propósito, menino. Mas se não for vivido com aceitação e sinceridade, vira nó no tempo.
Mãe Zana lançou os búzios na mesa e, ao mesmo tempo, o tablet ao lado começou a piscar, sua tela emitindo uma linha de código azul e dourada.
Ah, agora os búzios também tão se conectando ao futuro? Moyo murmurou, quase debochando.
Mãe Zana soltou uma gargalhada curta, o tablet vibrou uma última vez e revelou uma mensagem:
“Conexão instável. Reconectar em breve. O caminho se abrirá quando a interferência for eliminada.”
Eita. Tô fora de área?
Algo assim menina, ela respondeu.
O que os búzios dizem é que você precisa resolver um problema de comunicação.
Olhei para Moyo. Ele desviou o olhar.
Antes que qualquer palavra nos atravessasse, Mãe Zana fez um gesto com a mão, tocando uma das contas que carregava no pescoço.
A pirâmide em realidade apareceu no centro do círculo, e começou a girar lentamente. A realidade se dissolveu ao redor, paredes, teto, sons... Tudo cedeu lugar a uma projeção imersiva, como um vídeo mapping numa instalação artística.
Vimos três amanhãs diante de nós, entrelaçados em camadas de luz e sombra.
O primeiro: uma Uberlândia viva, respirando em harmonia com a terra, onde pessoas caminhavam entre árvores frutíferas e sensores climáticos, compartilhando experiências e saberes.
O segundo: uma Uberlândia urbana. Metálica e tecnológica, onde os códigos e as máquinas ditavam o ritmo da existência. Os corpos eram monitorados, as palavras filtradas, e a liberdade uma ilusão.
E o terceiro… era um limbo. Um campo de possibilidades, um amanhã indefinido, onde a luta ainda existia, mas havia esperança.
Moyo prendeu a respiração.
Isso… isso não pode ser real, pode?
Tudo é real, dependendo das escolhas que vocês fizerem, disse Mãe Zana.
As imagens se desfizeram em partículas de luz, como se tivessem cumprido seu papel. O silêncio pesou. O peso das possibilidades se assentou nos meus ombros.
Mãe Zana se virou para mim.
Aroyê, no meio de tudo isso, há um amanhã que pode ser tanto sua ruína quanto sua redenção.
A frase atravessou meu peito como uma flecha.
.
O amanhã não está selado na pedra, disse Mãe Zana. Você tem o poder de escolher qual semente plantar.
Eu me levantei, devagar, sentindo o chão abaixo de meus pés.
E agora? Moyo perguntou, a voz carregada de incerteza. O que vamos fazer?
Eu respirei fundo. Algo em mim tinha mudado.
Vamos encontrar um caminho.
As Mães assentiram em silêncio e nos abençoaram antes de cruzar a porta.
Do lado de fora, o pôr do sol pintava o céu em tons de roxo, vermelho e alaranjado. A Changa flutuava sobre o solo com suavidade. Como se tivesse sentido a força do momento.
Subimos a bordo. A energia da Casa de Cura ainda vibrava em mim.
Eu sabia que Moyo precisava saber algo mais.
Tem um lugar que preciso te levar. Ele me olhou, curioso.
Para onde?
Segura firme.
Liguei os propulsores da Changa. E decolamos... Eu observei Moyo enquanto ele absorvia a cena, os olhos inquietos, os músculos ainda tensos.
Eu podia ver nos ombros dele o peso de tudo que havia descoberto. O choque do tempo, a incerteza do que vinha pela frente.
Tomei a iniciativa, rompendo o silêncio entre nós.
Você quer saber por que está aqui Moyo? Minha voz era firme, mas não dura.
Ele balançou a cabeça.
O que você acha?
Isso não faz sentido.
E você? Ele perguntou.
Quem é você nisso tudo? Qual o seu papel nessa história?
Respirei fundo.
Eu sou... A palavra pesou no ar. Quem mantém a linha entre o que fomos e o que ainda podemos ser.
Moyo passou as mãos pelos cabelos brancos, exausto. Você fala como se fosse um oráculo.
Desde pequena, eu sabia que minha missão era proteger o que veio antes de mim.
Fechei os olhos por um momento, sentindo a memória de minha bisavó Lélia surgir. Vi suas mãos enrugadas bordando símbolos antigos nos tecidos que cobriam nossa casa. Vi seus olhos atentos contando histórias que tentavam se apagar.
Minha bisavó, Lélia, me ensinou que o passado nunca morre. Ele só se esconde, esperando que alguém o traga de volta à luz. E agora, essa história continua em mim.
Moyo me encarava com ceticismo.
Seja mais clara, o que você quer dizer com isso?
Aproximei-me dele, deixando que visse em meus olhos.
Por quê eu?
Deixei o silêncio fazer seu trabalho.
E o que acontece agora?
Sorri levemente, deixando a resposta no ar.
Agora, nós chegamos no nosso destino.
O portão se abriu com um rangido antigo, como se a própria terra abrisse os braços pra nos acolher. Em letras douradas, escritas: ‘Graça do Aché’.
Era mais que um centro cultural de memória era um corpo vivo, um aquilombamento urbano cheio de lembranças. Pisamos ali como quem pisa no colo da avó.
As paredes eram adornadas por retratos de Capitãs e Capitães, de cientistas e sambistas, mestres e mestras de capoeira, de mães e curandeiras. Cada rosto contava uma histórias de quem não deveria ser esquecido.
Ao sairmos do corredor de retratos, fomos recebidos pelo Jardim dos Ancestrais. Um espaço onde as raízes falavam mais alto que os muros. Cada árvore e planta foram plantadas com as mãos de uma mulher preta que viveu e floresceu antes de mim.
As lavandas sussurravam segredos ao vento, enquanto um beija-flor pousava na flor de um ipê roxo, curvando-se como em reverência.
No canteiro à direita, cada nome estava gravado aos pés de uma árvore sagrada: Ivete Almeida, sob a sombra generosa de uma mangueira; Antônia Aparecida Rosa, abraçada pelas raízes de uma Jabuticabeira; Ormezinda Ferreira, na copa de uma sibipiruna; e Conceição Leal, guardada por um flamboyant.
As pessoas passavam devagar, como se não quisessem pausar o tempo. Crianças escreviam seus nomes numa parede digital, onde a frase "O Amanhã nasce em nós" piscava suavemente em LED amarelo.
Na ala à esquerda, era o acervo Jeremias Brasileiro, uma exposição de fotos antigas de reinados do Congado cobriam uma parede inteira. Mulheres e homens com cajados de madeira e com coroas de flores dançavam, eternizados em preto e branco. Havia calor, havia riso, havia tambor, havia resistência e memória. E tudo isso pulsava junto.
Eu e Moyo atravessamos a exposição. Os passos dele eram hesitantes, os meus firmes. Eu sabia o que estava por vir, mas ele... ele ainda não compreendia o tamanho da revelação que o esperava.
Chegamos a sala Maria da Graça Oliveira: o coração do Graça do Aché. Estantes de bambu guardavam memórias digitalizadas, enquanto uma tela holográfica flutuava no centro da sala, emitindo uma luz suave.
Toquei a superfície da tela, e o banco de dados de UberlandArt.com reconheceu minha presença. A energia do espaço se alterou. As luzes piscaram por um instante, e então, uma sombra tomou forma no ar uma silhueta nebulosa emergindo num corpo de uma mulher.
Moyo prendeu a respiração.
Que a memória de Nia, atravesse os versos do tempo e venha até nós!
A névoa densa brilhou no centro da sala. O ar ficou carregado de eletricidade. Então, lentamente, ela apareceu.
Seus cabelos, antes sempre trançados com pequenas contas azuis, agora flutuavam como se fossem feitos de luz. Seu olhar, afiado como sempre, atravessou Moyo.
Moyo...
A voz dela soou como um sussurro de vento, e eu vi as mãos dele tremerem ao ouvir seu nome depois de tanto tempo.
Nia? Ele sussurrou, como se temesse que tudo aquilo fosse uma alucinação.
Ela sorriu não um sorriso de alívio, mas de quem já sabia o que estava por vir.
Dei um passo para trás. Aquele momento pertencia aos dois.
Nia manteve os olhos nele.
Sou uma projeção das memórias que deixei. Mas o que direi agora é o que eu, Nia, te diria neste reencontro.
Moyo continuou parado.
Minha história não começou no dia em que nos conhecemos. Nem no Carnaval. Nem na perseguição.
O holograma oscilou levemente, como se absorvesse o próprio peso das palavras dela.
Minha história começou numa sala apertada, cheia de carteiras riscadas e um quadro de giz sujo.
O ambiente mudou. A projeção agora mostrava uma pequena Nia, de tranças curtas, sentada na última carteira de uma sala de aula.
Eu era só uma menina negra tentando entender o que os números queriam me dizer. Enquanto outras crianças fugiam das equações, eu corria pra elas. A matemática era a única coisa que fazia sentido.
A cena evoluiu, mostrando Nia aos treze anos, com um livro de criptografia nas mãos, os olhos brilhando com cada linha de código que lia.
A matemática me levou até os códigos. E os códigos me mostraram um mundo que não me via.
Ela respirou fundo.
Desde pequena, me ensinaram a ser obediente. A entender que a infância podia até ser uma fase de experimentação, mas que isso não valia para meninas como eu.
As pessoas ao nosso redor não enxergam curiosidade quando estamos explorando o mundo. Elas veem ameaça, bagunça e problema.
Ela soltou um riso seco, e desviou o olhar.
Minha mãe queria tudo certinho. Não tolerava sujeira, não aceitava desordem. Meu cabelo tinha que estar impecável antes de sair de casa, porque ela sabia que o mundo ia julgar. Se eu estivesse desarrumada, não iam ver uma criança, iam ver uma negligência.
Cada detalhe tinha que ser controlado, porque qualquer escorregada era motivo para olhares de reprovação.
Ela esfregou as mãos uma na outra, como se sentisse ainda a rigidez daquela disciplina.
Quando a gente entrava numa loja, ela falava: ‘não encosta em nada’. Não chega nem perto do vidro, nem das prateleiras. Fica quieta. Fica parada. Fica invisível. Porque se alguma coisa quebrasse, não iam culpar um acidente, iam culpar a gente.
E aí, eu cresci ouvindo isso. E entendi cedo que, se eu obedecesse, talvez doesse menos, ou talvez as coisas fossem menos difíceis. Eu percebi que, quanto mais eu seguia as regras, menos eu era punida. Que obediência, para mim, significava liberdade.
Ela ergueu os olhos para mim.
Mas que liberdade é essa?
Na escola, eu era sempre a baderneira. A que falava demais. Não importava o quanto eu tentasse me moldar, sempre esperavam que eu fosse um problema.
Aprendi a ser boa no que fazia, mas sem chamar atenção demais.
As imagens aceleram, agora mostrando Nia, já adolescente, estudando programação no IFTM.
A tecnologia que eu tanto amava era usada para nos vigiar, nos criminalizar, nos silenciar. Então decidi aprender a falar a língua dos códigos melhor do que qualquer um.
Moyo observava, absorvendo.
Foi assim que me tornei Ani.
As imagens mostraram Nia na UFU, no Jambolão, mexendo em seu notebook.
Hackear era minha forma de dizer ao mundo: eu vejo vocês. Eu lembro dos que sumiram. Dos que nunca tiveram voz.
Ela respirou.
Crescer assim me fez acreditar que ser forte era estar sempre pronta pro embate.
E por um tempo, foi isso mesmo: peito estufado, olhar afiado, palavra afiada também, porque se eu não me protegesse, ninguém ia.
Mas sustentar quem somos vai muito além de enfrentar o mundo com o punho cerrado. Carreguei essa armadura por tanto tempo que uma hora ela começou a pesar. E ninguém fala disso.
Ninguém fala do que acontece depois. Depois que você levanta a voz. Depois que você enfrenta. Depois que volta pra casa com o corpo inteiro atravessado por mágoa, silenciamento e cansaço.
O sistema é tão engenhoso que transforma a violência que te impõem numa narrativa sobre quem você é. E é assim que a opressão vira arquitetura: começa de fora, mas termina por dentro, que vai tão fundo que a gente começa a repetir com a gente mesma o que fizeram com a gente. Me tratando como me trataram. Acreditando que eu merecia menos.
E foi aí que eu entendi: sustentar quem eu sou é mais que me defender. Não é só dar murro em ponta de faca. É reconstruir cada caco que a defesa deixou pelo caminho.
É não permitir que a centralidade da minha vida seja ocupada pela violência, pela mágoa, ou pela necessidade constante de reagir. É não aceitar que o que fizeram comigo vire minha verdade.
É me lembrar, todos os dias, que existo para além do olhar do outro. Que mereço ser inteira, sem pedir desculpa por isso.
Sustentar quem eu sou, Moyo, é recusar que o que fizeram comigo defina quem eu sou. É dizer pra mim mesma, com a mesma altivez com que encaro quem tenta me apagar.
Também aprendi a recolher os cacos com dignidade. A me reconstruir com a mesma força que uso pra enfrentar o mundo.
E sabe de uma coisa, Moyo? Eu nunca fui a menina pra namorar. Nunca fui a moça bem comportada, caladinha, bonitinha. Pelo contrário: eu era o excesso. Ria alto, falava pelos cotovelos, emocionada demais.
E eu ouvi da minha família e de muitas pessoas, de que eu não seria amada se eu fosse essa moça. Se eu fosse esse exagero, que eu precisava ser menos pra ser escolhida por alguém. E assim ter valor.
A gente acredita em tanta bobagem sobre o amor quando é mais nova.
A gente entende que talvez pra tê-lo a gente precisa se anular. E por que não pelo contrário?
E com esse dúvida consegui ser extremamente amada em todos os meus excessos. Mas em algum momento eu tive que fazer uma escolha entre o amor do outro, e essa validação.
E durante a vida eu escolhi eu. Eu apanhei anos por ter me escolhido. Mas me escolhi.
E no final da vida passei me perguntando. E se não tivesse a chance de me escolher? Quem eu me tornaria?
Ela olhou para baixo.
A gente é ensinada a criar nossas próprias formas de continuar viva mesmo quando tudo ao redor quer o contrário.
E nem sempre chamam isso de inteligência, de criatividade. Mas é. Prever risco. Guardar o necessário pra quando faltar. Disfarçar o medo pra despistar o perigo. Transformar a raiva em combustível. Tudo isso é criação. É arte.
Só que não é aquela arte que aplaudem. É a que salva.
É a arte da emergência. Do improviso. Do “não posso errar porque dependo disso pra existir”.
Não tô romantizando a dureza, não. Eu sei o que é passar aperto. Sei o que é ter que escolher entre comer ou carregar o passe de ônibus para ir trabalhar. E com essa mentalidade, achava que sabia escapar da máquina de moer carne humana.
Ela balançou a cabeça.
Com o tempo, achei que tinha aprendido a me cuidar. Academia, autocuidado, rotina. Mas o que começou como hábito para mim virou uma obrigação. Se eu não fazia, me sentia mal. Foi aí que a auto exigência virou prisão. Porque a gente aprende a ser forte e dar conta de tudo. E não percebe que isso também é uma forma de nos manter cativas.
E nesse corre todo, nesse recriar a mim mesma a cada dia, descobri a maior habilidade que a gente tem: a de se resgatar.
Mas olha, que fique claro: não quero que me vejam como a mulher que aguenta tudo, que segura todas, que refaz o mundo sozinha. Isso não é força, é solidão.
A gente também quer colo, Moyo.
A gente também quer ser protegida, cuidada, amada sem condição.
Só que quando tudo falha, a gente aciona um arsenal antigo. Uma memória que reorganiza a vida. Um saber que ninguém ensinou, mas que habita em nós, como semente.
Como diria a mulher do fim do mundo: "Eu não vou sucumbir."
E não sucumbi.
Nem quando a solidão doeu. Nem quando a perseguição veio. Nem quando descobri que carregava uma vida dentro de mim.
A projeção piscou novamente, agora mostrando o Carnaval. Nia sorria, dançando no coreto, até que seu olhar encontrou Moyo pela primeira vez.
E então eu te vi.
E pela primeira vez, Moyo... eu quis algo além da luta.
Mas a luta me encontrou de novo.
A cena mudou, mostrando a perseguição dos policiais, Nia e Moyo correndo, os olhos arregalados pelo medo.
Eu corri naquela noite. Corri como corremos a vida inteira.
Eu queria fugir. Mas não podia. O holograma agora mostrava Nia com a barriga crescendo, sozinha em um pequeno quarto, os olhos fixos em uma tela de computador cheia de códigos.
Porque foi ali, no silêncio daquele quarto pequeno, diante de muito trabalho, que eu entendi:
Dentro de mim crescia algo que não era só meu. Era nosso.
Foi assim que Lélia chegou ao mundo. Nascida da luta e do afeto.
Como mãe solo. Sabe o que me diziam? Que a culpa era minha.
Me julgavam não pelo que fiz, mas pelo homem que escolhi para ser o pai da minha filha.
Você nunca soube... Nia suspirou.
Eu queria te contar. Mas Pereira, Benício e Silva não deixaram. Então, fiz o que sabia fazer de melhor.
A projeção mudou novamente, mostrando Nia no seu notebook, hackeando os servidores das câmeras de segurança do bairro Fundinho, liberando e compartilhando nas redes sociais, os vídeos do que realmente aconteceu na terça de carnaval:
A briga começando próximo ao coreto. Pereira dando a ordem para nos prender.
Silva te agredindo durante abordagem. E Pereira me revistando com as mãos onde não devia.
As imagens correram a cidade feito fogo em canavial.
Expus o sistema. Mostrei o que realmente aconteceu.
Mas a verdade só alimentou os mártires. Nos velórios dos policiais, dispararam salvas de tiros pra honrar 'heróis em serviço'.
Na manhã seguinte, o seu rosto estava em todos os lugares possíveis de Uberlândia. Até os grafites que fizeram com o seu nome tinham mudado - onde antes havia 'Justiça para Moyo', agora pichavam 'Bandido Não é Herói'.
Ela fez uma pausa, olhando para as próprias mãos, como se ali estivessem gravadas as cicatrizes de todas as mulheres que vieram antes dela.
Mas sabe o que eles nunca entenderam? Eu sobrevivi.
Vivi para ver minha filha crescer. E isso… isso é um privilégio. Porque muitas mães como eu não tiveram esse direito.
E essa conquista não é só minha. É da minha mãe, que criou a gente sozinha. Da minha avó e bisavó, que foram empregadas domésticas, e sacrificaram tudo pelos filhos.
Ela se inclinou para frente, os olhos iluminados por lágrimas.
O mundo diz que as mulheres conquistaram o direito de trabalhar fora. Mas para nós, isso nunca foi uma escolha. Sempre trabalhamos.
Nossa conquista não foi sair para o mercado de trabalho. Nossa conquista foi poder ficar. Foi poder ter tempo para os nossos filhos. Porque nossas mães e avós não puderam.
Desde criança, a gente já aprende a cuidar dos outros. Minha irmã cuidou de mim, eu cuidei da minha outra irmã, minha irmã cuidou da prima, e assim seguimos. Adultas antes do tempo. Sempre colocando todo mundo antes de nós mesmas.
E eu fiz isso por tanto tempo que esqueci de me priorizar. Esqueci que eu também tenho o direito de existir além do cuidado.
Ser mãe preta é ser fortaleza. É ser castelo. É ser o porto seguro de todo mundo. Mas ninguém nunca nos pergunta se a gente também quer ser salva.
Mas sabe o que me deu forças?
Minha filha Lélia.
O olhar dela suavizou.
Quando ela me colocava para dormir. Quando me cobria e dizia: "Boa noite, mamãe. Feche os olhos. Vai ficar tudo bem."
Ela sorriu, e dessa vez foi um sorriso genuíno.
Quando Lélia me abraçava, quando cuidava de mim, eu percebia que, pela primeira vez, não precisava carregar tudo sozinha.
Ela cresceu sabendo que merece tudo de melhor. Que meninas como ela e como eu também merecem viver.
Eu segurei o olhar dela.
O brilho do holograma oscilou. Ela estava desaparecendo.
Nia, espera! Moyo avançou, como se tentasse segurá-la. Sua imagem começou a se dissolver em partículas de luz.
Aroyê.
Meu nome naquela voz fez meu diafragma contrair.
Antes de desaparecer, seus olhos giraram para mim e para Moyo uma última vez.
Eu sempre soube que nos encontraríamos de novo.
Ela fez uma pausa.
O amanhã nasce em nós.
O mundo dentro daquela sala desfocou por um instante. Quando meus olhos se ajustaram, estava num jardim que não existia mais. Nia estava lá com setenta anos, reclinada numa cadeira de vime, observando o pôr-do-sol alaranjado pela poluição.
Estendi a mão, mas meu dedo atravessou seu ombro como névoa. Quando o jardim desmoronou em pixels, restou apenas as marcas em minhas mãos.
A última centelha de Nia se apagou. No espaço vazio que restou, o silêncio pesava como chuva prestes a cair.
Moyo permanecia paralisado. Toquei seu ombro, sentindo os músculos tensos sob a camisa suada.
Nada foi em vão Moyo.
Seus olhos fixaram-se nos meus. Segurei as suas mãos como se pudesse transferir memórias pelo tato, e comecei:
Hoje com o resgate de nossa ancestralidade, quando uma criança nasce, os mais velhos consultam Ifá no terceiro dia de vida. É pra entender que ancestral voltou com ela.
Foi assim comigo.
Ele piscou devagar, como se estivesse tentando enxergar para além do agora. Eu prossegui, escavando palavras do fundo onde guardava minhas próprias dores:
Eu sou mais que sua tataraneta Moyo. Segundo o Atuwná, carrego Nia em cada célula do meu corpo. Seu ciclo não terminou - apenas dobrou a esquina do tempo.
Moyo olhou pro nada, como se puxasse de volta a imagem da planta no quarto.
Lembra das folhas do tinhorão que tinha murchado? A folha mais velha secou. Mas já brotava outra do miolo. Como se recusasse a aceitar o fim. Assim, como a gente. Quando uma parte cai, a outra nasce dentro. Nia foi a folha que secou. Eu sou a que brotou de dentro dela.
E seu maior desejo... Disse, meio sem força.
Era esse reencontro, ele completou, com a voz rouca, enquanto uma lágrima finalmente rompia as barreiras e escorria por seu rosto marcado pelo tempo.
Quando nos abraçamos, seu corpo inteiro tremia como vara verde no vendaval. A pele suava lembrança. E no peito a aceleração de um coração que aprendera a bater sob tiros e agora redescobria seu ritmo original. O silêncio entre nós era espesso, doce-amargo, cheio de fantasmas acolhidos.
Nosso abraço se desfez, deixando marcas de vida nas palmas das mãos. Moyo soube, enfim, que o passado havia sido restaurado. Como uma semente: germinava.
E o sol do amanhã, por mais incerto que fosse nascia em nós.